Escritora-ambígua-anfíbia na lagoa do patriarcado: Um diálogo com Rita Segato

Laís Romero


Por negar a satisfação irrestrita do sujeito dominante, a mulher escritora se torna alvo de punição exemplar. Sacrifício. Levanto esta visão como mulher e escritora, sobretudo como leitora e vivente nessa seara de areia grossa, difícil de correr, difícil de andar, difícil de ficar em equilíbrio, num cansaço que é projeto. As entranhas que revolvemos ao escrever não são bem-vindas ao sujeito político literário: sujam as histórias bem inventadas, ou, em polo oposto, as histórias de violências desumanizadas, o exaustivo espetáculo da mulher morta, da mulher estuprada, das crianças violentadas em todas as instâncias do que se conhece como dignidade. Pego mais de Rita Segato no levante deste texto: de repente o impossível se torna real, a tolerância ao que pode acontecer se alarga, o violento é o cotidiano, é o normal, é assim mesmo, são os meninos, deixa os meninos.

 

Juntei as palavras e trilhos de pensamentos depois de constatar que não há mulher ao meu redor que tenha escapado de violência, de violação, de crime contra a dignidade sexual, de rebaixamento moral e, sobretudo, de culpa. Convido os olhos que deslizam nestas palavras a uma observação delirante da arquitetura que sussurra uma estrutura antiga, fervorosa, uma verdadeira corporação protetora de artifícios sofisticados de controle: o patriarcado.

 

Há este perigo indelével no alvo que carregamos.

 

“O patriarcado é uma gramática”, sujeito e objeto numa dança em que os objetos são o caminho de validação do sujeito. O que se pensa e como se pensa, a organização do que era abstrato, a sistematização da realidade, tudo passa nessa normativa gramatical que opera de forma solar, ocupando e quase alcançando nossas frestas de escape. Daí que escrevo em uma gramática extrapolada, um idioma que não domino, não crio, não corroboro, estrangeira, mais ainda como uma imigrante num mundo que muda as regras sempre que acredito estar chegando ao lugar ideal.

 

Gosto de pensar em Eva, a fundadora, o sacrifício necessário ao controle desse ímpeto de criação que temos nas carnes. Eva digeriu o conhecimento do bem e do mal e ali, dentro de si, criou como um deus. O fruto trazia a sintaxe de uma língua compartilhada com o divino, uma língua na qual ela passou a esticar os conceitos, fazendo metáforas que sussurravam sua autonomia. Brincar de deus aqui é dominar a linguagem, é criar coisas que parecem com a verdade, que derrubam a verdade, que desnudam as verdades. Eva expandiu o universo na recém-humanidade.

 

Uma mulher nua e sem medo, penso que não poderia ser pior ao deus homem dos homens. Uma mulher nua, sem medo e com o poder da criação se alargando em seus olhos. Antes de moldar o barro, de soprar sua linguagem nas narinas dos novos humanos, Eva foi descoberta, mas o conhecimento já estava à sua disposição.

 

Volto ao pensamento de Rita Segato, à lealdade que ela constata que há entre homens, e aos atos, dos mais sutis aos mais grotescos, que afirmam a masculinidade para que esses sujeitos existam e se mantenham em sua corporação, para que sejam enfim respeitados em iguais. Adão se junta ao masculino invisível onipotente quando é seduzido, aparenta ser vítima daquilo que lhe afasta da semelhança com deus, o homem estava feliz antes de saber, agora está diante do conhecimento. Cognição e dor. Conhecimento e punição.

 

Preciso rever o baldrame do meu ser, criada como católica-cristã, toda uma memória de garota experimentando o horror ao se deparar com um mito de fundação da humanidade pautado em crime e castigo. Um crime que eu cometeria muitas e muitas vezes pela eternidade circular, dada a profunda vaidade e prazer que sinto ao conhecer as coisas. O mais curioso é a sentença do homem ter que viver do suor do trabalho, enquanto à mulher fica a dor de parir sua prole. A lei é um deus masculino, a punição vem como uma resposta ao que representa esse deus.

 

Dentre os castigos divinos, a mortalidade me chega em outro viés, como apenas consciência, não como parte da sentença. Já iriam morrer Adão e Eva, mas, tal qual outros seres vivos, poderiam viver sem essa informação, o que resultaria em não haver a necessidade de inventar propósitos em suas misérias, em seu saber de si. A ignorância como salvação, a obediência como projeto. Eventualmente ainda esquecemos que a morte está em toda parte, na poeira que se deita nos vincos de nossa pele, nos ossos, na água que some do nosso corpo envelhecido. A morte é. 

Não há originalidade nesse pensamento, admito, mas há o transtorno de saber que a mulher trouxe ao homem a consciência de si, de sua mortalidade, de sua vergonha em estar perante o masculino invisível que olha tudo o que ele faz, e é sob esse olhar que o homem mortal precisa subjugar, perseguir e assentar sua bandeira nos que não são sujeitos como ele. Mulheres e crianças primeiro.


O feminino será o excesso nele, o outro dele que, no entanto, permanece nele e que ele deve negar e expurgar por toda a vida a fim de diferenciar-se. Aquilo que ele vem a silenciar de si mesmo. Mas o feminino também é sua origem, o universo completo, inteiramente prazeroso e satisfatório do qual ele provém. 


Rita mostra essa presença pantanosa da mulher-anfíbia-ambígua transitando entre objeto e sujeito, abafada pela constante negação. Este percurso leva ao lugar da ficção, e em saber, de forma central, o que pode a ficção de dentro deste mundo aterrador e molhado em que se fecunda a realidade de ser mulher. Sendo o feminino um universo completo, prazeroso e satisfatório, e ao mesmo tempo um contrário sanguíneo e barulhento, a ficção que brota daí pode. Pode muito.

 

Sem vocabulário que permita experienciar as bases de nossas ações, creio, é impossível mobilizar qualquer força no desmonte desse cenário de esmagamento do feminino. A fantasia é como o feminino, ambígua, mostra o que acontece, deixa pontas soltas, inconclusões, é um trânsito e, sobretudo, permite a experiência do impossível. Viver e morrer, decerto sonhar.

 

Uma memória de infância me ajuda nesse fio: fazia uma pintura com lápis de cor em alguma imagem genérica, uma paisagem com casinha e árvore, enquanto a professora transitava sentinela observando o desempenho de cada criança. Uma frase suspensa em repetição ecoava na sala, ela dizia para pintarmos dentro dos limites, que deveríamos respeitar os limites, dentro da regra, não escapar da fronteira do desenho.

 

A metáfora não é tão forte, talvez não se segure por muitos anos em meus cabelos, mas no agora ela pode demonstrar o funcionamento dessa ânsia em escrever. Esta escolha é também uma necessidade em desrespeitar as fronteiras. Negar a satisfação irrestrita ao outro. Pintar a literatura para fora dos limites, em especial dos limites do tempo, permitindo a lerdeza da reflexão em palavras que se arrastam e imagens abissais de um corpo que resiste. Talvez assim eu seja uma candidata ao sacrifício exemplar, mas qual mulher estaria protegida dessa oferta? 

 

Em silêncio apenas conseguimos morrer invisíveis, nada mais.

 

Discursos e imagens que possam trazer fagulha de pensamento, aquela machadada na camada de gelo em nós, esse é o desmanche dessa água que insiste em querer nos cobrir.  Discordo ainda de uma “identificação cega” diante da ficção, esse deslizar para um mundo perfeito e “sem lado de fora”. Estaríamos presas. Provocar, fornecer vocabulário, remexer a sintaxe, refazer uma gramática que possa sustentar toda forma de ser, que permita performances ainda desconhecidas.

 

Gosto de imaginar Eva perplexa em sua finitude. Eva desdobrando as palavras, estruturando o pensamento e o repertório interno. Eva contando os dias, desejosa de mais espaço e mais conhecimento. Eva entrando num rio, olhando para si, uma outra Eva refletida e livre das garras dos homens reais e imaginários de seu tempo. Eva inexistente, nua, uma ancestral odiada em ciclos e ciclos. Eva e a sabedoria de Eva, perene. E eu nem sei se ela queria ficar no paraíso de Adão.


*Todas as citações são da obra As estruturas elementares da violência, de Rita Segato (Bazar do Tempo, 2025)

 

 




Laís Romero nasceu e vive em Teresina, Piauí. É escritora, revisora, mãe do Luís e do Júlio e autora dos livros de poemas Mátria (Paraquedas, 2023) e Exames aleatórios de imagem (Mórula, 2024).

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