Por Cláudia Lamego
“Numa dessas sessões, um torturador da Operação Bandeirantes que tinha o nome de Mangabeira ou Gaeta [...] eu amarrada na cadeira do dragão, ele se masturbando e jogando a porra em cima do meu corpo. Eu não gosto de falar disso, mas eu vejo a importância desse momento de tratar a verdade e gênero pensando nessas desigualdades entre homens e mulheres, em que os agentes do Estado, os repressores usaram dessa desigualdade para nos torturar mais, de certa forma. De usar essa condição nossa. Nós fomos torturadas com violência sexual, usaram a maternidade contra nós. Minha irmã acabou tendo parto, tendo filho na prisão. [...] Nós sabemos o quanto a maternidade, o ônus da maternidade, que nós carregamos. (Maria Amélia de Almeida Teles, jornalista, escritora e ativista pelos Direitos Humanos, em audiência pública da Comissão Nacional da Verdade)” [1]
Logo após a vitória do Brasil no Oscar de 2025, com a estatueta de melhor filme estrangeiro para “Ainda estou aqui”, a ex-presidenta Dilma Rousseff parabenizou a conquista e ressaltou a importância da Comissão Nacional da Verdade durante o seu governo para investigar os crimes da ditadura. Criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012, a CNV apresentou, em seu relatório final, uma lista com 377 nomes de pessoas que violaram os Direitos Humanos durante a ditadura e recomendou a responsabilização criminal, civil e administrativa de 196 dessa lista que permanecem vivos.
O Relatório da Comissão Nacional da Verdade, dividido em três volumes, apresenta o histórico da criação da CNV; discorre, baseado em leis nacionais e internacionais do Direito, sobre todas as violações cometidas; traz depoimentos sobre as prisões e torturas; perfis das vítimas mortas, torturadas e desaparecidas e recomendações finais sobre a Justiça para reparação de danos.
Além de ser um documento de extrema importância para o registro da história do Brasil, o texto da Comissão Nacional da Verdade também foi fundamental para a literatura brasileira, principalmente para a literatura escrita por mulheres sobre a ditadura. Ana Kiffer, autora de No muro da nossa casa, disse, em várias entrevistas, que a leitura do relatório foi uma de suas inspirações para escrever o relato de sua família. Para o blog da Bazar do Tempo, ela contou:
“Depois, houve o mergulho nos arquivos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e nos arquivos do DOPS, os da prisão do meu pai. Essa experiência também foi penosa. E ainda, talvez o mais difícil tenha sido essa ‘evocação’ constante da minha mãe, a busca por construir a sua personagem, que se misturava, obviamente, aos meus afetos e memórias da nossa relação, os bons afetos, e a falta que ela me faz, e também os difíceis.”
No muro da nossa casa traz um diálogo ficcionalizado com a sua mãe, Cléa, presa durante a ditadura, grávida da autora. Seu pai, deputado cassado pelo regime, também foi preso. A casa da família, em Niterói, foi pichada com os dizeres: “Aqui mora um bandido comunista”. A obra foi listada pela imprensa entre as melhores de 2024 e vem arrebatando leitoras e leitores com a sua escrita refinada e, ao mesmo tempo, cortante, como no trecho abaixo:
“Também é preciso saber que na hora em que é presa, você é analisada pelo serviço da repressão, que tenta detectar onde você é mais e menos forte. E aí, óbvio, a maternidade pesa. E ameaçavam os filhos como forma de abater o ânimo, a disposição daquela pessoa. Eu vivi assim, abatida, para não te abaterem, filha. Uma forma de sobrevivência no mato, abater-se para não nos abaterem.”
Em entrevista, Marcelo Rubens Paiva também confessou que a CNV foi a grande responsável pela escrita de seu livro: “Por conta da Comissão da Verdade, tive elementos para escrever Ainda estou aqui, e agora temos esse filme deslumbrante. E Dilma pagou um preço alto pelo necessário resgate da memória", disse.
No livro Mulheres contra a ditadura - Escrever é (também) uma forma de resistência, a professora de literatura Eurídice Figueiredo também comenta a importância da CNV para o aumento das publicações do gênero. O livro é uma espécie de inventário dos romances escritos por mulheres que têm a ditadura como tema. Foram 95 obras analisadas, das quais 14 foram publicadas antes do ano 2000; 81 saíram a partir do novo milênio, sendo que 54 livros foram lançados no país depois de 2014, sob o impacto justamente do relatório da CNV.
A jornalista Miriam Leitão, presa e torturada, também grávida, durante a ditadura, decidiu vir a público contar a sua história, depois que militares das Forças Armadas produziram documentos para negar as revelações da Comissão Nacional da Verdade. Ela já havia revelado a tortura, inclusive com uso de animais, num depoimento em 1973, ao Tribunal Militar. Mas, segundo ela, durante anos não contou nada aos seus dois filhos.
“Decidi comigo mesma e minha consciência e estou tranquila com isso. Sei que estou me expondo, é uma história dolorosa, mesmo sabendo que foi menor, comparando com a de outras pessoas. Tenho cicatrizes, mas não me arrependo de ter dado esse depoimento. Não tenho mágoa nem ódio, só gostaria que minha palavra ajudasse num esforço nacional para que reconheçam o erro", disse, numa entrevista em 2014. Sua história, assim como a de Eunice Paiva, Cléa e de tantas outras mulheres, também virou livro, escrito pelo seu filho, o jornalista Matheus Leitão.
Ana Kiffer levou alguns anos até decidir falar, escrever e revelar a experiência de sua família, não vivida por heróis ou militantes famosos, mas pessoas que ficaram no Brasil, vivendo uma espécie de in-xílio. No muro de nossa casa também é sobre esse exercício literário de escrever sobre o indizível:
“Às vezes ainda não tenho coragem para dizer, sozinhas, eu e você, mãe. Porque dizer sempre foi, é ou pode ser perigoso. Entre mães e filhas, entre filhas e mães. Me imagine dizer, assim, para a minha filha: a sua avó foi presa, eu na barriga, a barriga grande pesava. O seu avô foi preso. O seu pai foi preso. Ainda prendem sem julgar no Brasil. Uma parte deste país nunca mudou.”
No muro da nossa casa é o livro do mês no Clube de Leitura Todo Nosso. A autora vai participar do encontro, após o debate entre as leitoras.
[1] O Relatório Nacional da Verdade é um documento público e pode ser lido aqui: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/volume_1_digital.pdf