por Flavia Trocoli
“Esse desejo está em busca de um narrador, porque as histórias de vida, assim como os destinos, não têm autor.”
Adriana Cavarero
Olha-me e narra-me: filosofia da narração, de Adriana Cavarero, acaba de chegar ao Brasil pelo Clube F., da Bazar do Tempo. Assim, começo dizendo que ele tem “uma cegonha como introdução” e sua primeira frase escreve: “Karen Blixen conta uma história que lhe foi narrada quando era criança.” (Cavarero, 2025, p.7). A leitora que atravessar as quatros partes do livro – “Heróis”, “Mulheres”, “Amantes”, “Narradoras” - poderá escutar que seus elementos fundamentais estão condensados nessa primeira frase: um nome que singulariza uma mulher ou, que nos termos de Cavarero, seguindo Hannah Arendt, instaura sua “unicidade”, isto é, a narração de uma vida única, irrepetível e narrável, e, sobretudo, uma narração que precisa ser ouvida contada por um outro. Instaura uma memória de infância, como a criança, inicialmente, não pode narrar sua história. Não temo adiantar que, meu ver, o fio mais instigante deste livro é tornar imprescindível um entrelaçamento entre a autobiografia e a biografia como uma forma de subverter um modo de filosofar sem a narração.
Não é a primeira vez que Cavarero começa um livro por uma fábula. Na história contada por Blixen, um homem, que vivia nas margens de uma lagoa, percebe que há um vazamento por onde escoam água e peixes. Na noite escura, corre de um lado para o outro, tropeça, contém o vazamento, vai dormir e, na manhã seguinte, percebe que suas pegadas tinham desenhado no terreno a figura de uma cegonha. A voz de Cavarero deixa-nos escutar a pergunta de Blixen: “Quando o desenho de minha vida estiver completo, verei, ou outros verão, uma cegonha?” (Cavarero, 2025, p.7) É com esta pergunta que a autora revisitará Édipo Rei, um episódio da Odisseia, a história de duas amigas milanesas, - Amalia e Emilia, o mito de Orfeu e Eurídice, uma biografia escrita por Jorge Luis Borges, Gertrude Stein e Karen Blixen.
Diante da pergunta que lhe faz a esfinge, Édipo responde, apontando para si mesmo, “o Homem”. Na leitura de Cavarero e, ela nos deixa saber, também na de María Zambrano, Édipo cai na armadilha de, autobiograficamente, dar uma resposta geral, universal, filosófica. Será só-depois que ouvirá sua biografia contada pelos outros, conhecerá sua história pelo relato externo, passando da dimensão da pureza filosófica à narração feita por outras vozes. Será a partir desse giro que ele poderá atar sua autobiografia à sua biografia. É com essa perspectiva de leitura que Cavarero retornará à cena em que Ulisses chora ao ouvir suas aventuras contadas por um aedo, será depois delas que ele assumirá sua autonarração. Feitas essas passagens, Cavarero poderá pensar que a cisão entre a filosofia e a narração é masculina, feita em nome do universal, em uma língua abstrata que impede de ver o desenho de cada vida como único, efêmero, e insubstancial e que, para ser transmitido, precisa de relações entre ouvidos que escutam e bocas que narram. A partir desse ponto, Cavarero passa às mulheres e retoma uma história célebre na Itália. Amalia e Emilia frequentam uma escola na periferia para operárias que não concluíram seus estudos por causa de uma prematura vida de trabalho. Emilia é aquela amiga que repete suas histórias à exaustão. Diante dessa repetição, Amalia escreve a história da amiga, a transforma em texto. Como Ulisses, Emilia também chora ao ouvir a amiga contá-la, algo da repetição se apazigua em torno desse desenho de sua vida, de sua cegonha, contado por Amalia. É a partir da figura do aedo e de Amalia que Cavarero sugere pensar uma certa função do psicanalista – uma outra escuta e uma outra voz que permitem que ações soltas, sem destino, muitas vezes mortíferas, encontrem um endereçamento, uma direção e possam ser contadas a partir do desejo de uma narração singular da vida.
Ainda no capítulo dedicado a Amalia e Emilia, Cavarero nos diz que a amizade feminina tem caráter narrativo e indica uma “típica pulsão feminina à autonarração”. Como uma mão amiga estendida, essas palavras de Cavarero chegaram até mim quando eu retornava e mergulhava em textos de autoras que me colocam, porque se colocam, o desafio de pensar e de repensar as práticas críticas, teóricas, autobiográficas e narrativas, são elas: Hélène Cixous, Barbara Jonhson e Shoshana Felman.
O livro A life with Mary Shelley, de Barbara Jonshson, publicado depois da morte prematura da autora, desenha um círculo formado por um Prefácio de Cathy Caruth, uma Introdução de Mary Wilson Carpenter e dois ensaios absolutamente geniais de Judith Butler e de Soshana Felman. De Shoshana, destaco a pergunta que norteia o percurso e ilumina o livro: “Como Barbara Jonhson passou de teórica à narradora?” Os ensaios dessas amigas e leitoras circundam os seguintes escritos de Jonhson: “The last man”, “My monster, myself”, “Gender Theory and the Yale School”, “Mary Shelley and her circle”. Se o desenho da cegonha narrava uma vida, o que esse círculo de mulheres faz além de nos oferecer esse desenho? Ele descentra o círculo de Percy Shelley que constituiu o centro do Romantismo inglês e que manteve Mary à margem. Assim, se a poesia de Shelley será o centro do círculo de homens que compõem a Yale School: Geoffrey Hartmann, Paul de Man e Harold Blomm, Jonhson irá ao que ficou na margem Mary Shelley e seu Frankenstein: o Prometeu moderno. À margem porque escrito em prosa, à margem porque escrito por uma mulher de 19 anos. Também ela à margem de um círculo, em um gesto desconstrutor radical que, aliás, atribui a Mary Shelley, Barbara Jonhson não buscará consagrar Frankenstein como um grande romance, mas dirá que ele pode ser lido como a autobiografia reprimida de Mary Shelley. Shoshana, dando mais uma volta no parafuso, dirá que a leitura de Barbara Jonhson em “My monster myself” e em “Mary Shelley e seu círculo” são também formas de autobiografia não-escrita de Jonhson. Desse modo, nos termos de Cavarero, poderíamos dizer que Shoshana oferece a Barbara a sua biografia. No livro O que quer uma mulher? Leitura e Diferença sexual, Shoshana já fizera uma formulação imprescindível em torno do que chamou de “Ler autobiograficamente”. Traduzo: “Feminismo, sugiro, é para mulheres, entre outras coisas, ler literatura e teoria com sua própria vida – uma vida, contudo, que não está em sua posse consciente. (Felman, 1993, p.13) E, para agora dizermos, com Cavarero, a não posse consciente da vida é o que engendra a pulsão da autonarração e o laço com o outro.


Hélène Cixous | Gertrude Stein
No dia seguinte em que comecei a escrever as linhas acima, escuto Hélène Cixous enunciar em seu Seminário: “As questões são universais, as respostas singulares.” Diante de sua dor autobiográfica e fazendo da literatura esse outro que lhe oferece, em biografia, um desenho dessa dor antes sem narração, Hélène Cixous escreve, ensina, teoriza, filosofa. Diante da exclusão de um círculo de homens, de uma série de mortes e da oposição masculina à escrita das mulheres, Mary Shelley, Barbara Jonhson e Shoshana Felman escrevem autobiografias reprimidas através de um romance em estilo menor ou em teorias desconstrutoras que abalam a repetição do mesmo pela diferença. Diante de uma língua abstrata e de vidas sem narração, Adriana Cavarero pôs-se a reler Sófocles, Homero, Hannah Arendt, Gertrude Stein, Karen Blixen, Amalia e Emilia, não para queimar a tragédia, o poema épico, não para instaurar uma monarquia de rainhas, mas para colocá-los juntos em um ato político que permite a vida ser contada, filosofada, desenhada. Olhem o desenho da cegonha, ele dura uma manhã e chama o olhar, a língua, a mão única de cada uma. Aquela que (o) contará.

Karen Blixen
Flavia Troccoli é professora da Faculdade de Letras da UFRJ, doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e cofundadora do Centro de Pesquisas Outrarte – a psicanálise entre a ciência e a arte (IEL/Unicamp). Coorganizadora dos livros "Um retorno o Freud" (2008), "Giros da interpretação" (2016), "Teoria literária e suas fronteiras" e "Da sublimação à invenção" (2021). É autora de "A inútil paixão de ser: figurações do narrador moderno" (2015) e "Hélène Cixous - A sobrevivência da literatura" (2024), pela Bazar do Tempo.