Pensar o desafio presente, por Ana Kiffer e Gabriel Giorgi

Pensar o desafio presente
Ana Kiffer e Gabriel Giorgi
Este livro se inscreve como acontecimento crítico entre as urgências e as insurgências das nossas vidas hoje. Por um lado, fruto do espanto com que vemos ruir o solo democrático das sociedades contemporâneas, por outro, como efeito do esgarçar das grandes certezas que por tanto tempo pautaram o exercício teórico e interpretativo. Navegamos entre o ativismo e a leitura atenta aos fenômenos que avultam, abordando a questão dos ódios, buscando compreendê-los em suas diferentes aparições sem, no entanto, buscar apaziguá-los, negando-os ou submetendo-os aos regimes das afecções preexistentes ou que nunca deveriam existir. Trata-se de uma tarefa em construção, que exige de nós o esforço tanto de releitura e ressignificação de conceitos, valores e práticas anteriores, quanto o esforço de trabalho com conceitos, valores e práticas que insurgem no contexto atual, ainda de modo tênue, instável e sempre arriscado.
O ódio queima como um fogo das afecções que rasga os tecidos discursivos com uma brutalidade aniquiladora que bordeja a linguagem de sua própria impossibilidade de dizer e com uma força de reivindicação por refazer os modos e as aparições de um poder-dizer. Há, portanto, uma força de vida do ódio que este ensaio busca apresentar. Há também, e sempre, a força mortificante que fixa o corpo do ódio nos corpos – coletivos e individuais – que dele padecem. Há também uma pele performativa nessas novas discursividades do ódio que reabrem as valas dos nossos cadáveres não enterrados. Mas há também uma vitalidade – ruído ou grito –, um poder-dizer que insurge como palavra untada aos corpos antes invisibilizados e ainda hoje sob risco constante de aniquilação. Corpos que, em sua existência, assinalam inevitavelmente outros modos de dizer, de contar e de escrever diferentes do que estruturou nosso campo simbólico/discursivo, onde esses mesmos corpos foram – e ainda são – vistos como impróprios em suas diferenças.
A dimensão performática dos gestos que hoje esboçam política e subjetivamente as afecções do ódio se faz ver no contraponto de escritas muitas vezes precárias, escritas de inscrições mais do que de livros, de gritos mais do que de letras, de forças corpóreas mais do que de forma simbólica. Elas refletem a vulnerabilidade com- partilhada pelos corpos e que buscam se inscrever como necessidade de ligação daquilo que aberto, no horizonte das disputas atuais, findaria apenas como gérmen do caos – forças do apagamento. Quando escrever advém da necessidade de inscrever – nos corpos, meios, cartazes, cadernos, superfícies, redes e correntes abertas –, os regimes das afecções e os do discurso se recolocam de novo face a face. Nada disso significa reinserir a escrita no seio das histórias ou das paixões individuais e fechá-las em seus territórios trágicos ou felizes. Tampouco pensar que o regime das afecções, desafiando o regime dos discursos, funcionaria apenas como efeito de ondas coletivas de submissão por contágio – hordas ignorantes de sua própria vulnerabilidade. Mesmo que tudo isso reapareça no cenário atual, entre a fórmula exemplar do dedo em arma bolsonarista, repetido como emoji, banalizado como se morte e extermínio ali não se inscrevessem, lidamos ainda com um desafio imenso de construir outros arquivos de afecções e de escritas do ódio como forma premente de combate à brutalidade da morte. A morte e a violência já estavam em nossos corpos antes que começássemos a poder-dizê-las. Por que falar do que preferíamos que não estivesse mais entre nós? Porque está em nós. E não apenas de repetição, de matrizes uni- ficadas, de retorno e de atraso é feito o ódio – aposta ar- riscada que tentamos aqui sustentar.
Diante do grande desvio construído por meio de uma ideia feliz e cordial de vida, é comum nos interrogarmos a respeito dos pactos democráticos e de como os novos ódios que surgem os dilaceram. De diferirmos, do interior mesmo das inscrições do ódio, os ruídos, os gestos e os gritos da e pela vida. Isso que aqui analisaremos como necessária diferenciação entre um ódio político e uma política do ódio. Falamos, portanto, de afecções prementes a serem tomadas em seus riscos como desafio ao que insiste em desligar os laços de vida e tudo aquilo que, rasgando, refaz ou exige novos modos de relação e de vida.
O ódio não é um afeto nem uma paixão homogênea ou idêntica a si mesma, mas um condensador e modula- dor de afetos diversos, que conjuga uma constelação de paixões que passam pela reprimenda, pela fúria, pela ira e pela indignação. Escolhemos nos atermos ao ódio como eixo central por ele ser o afeto mais problemático em um sentido específico: ele leva ao limite as formas de relação social, os pactos discursivos, as formas e protocolos da vida civil e as regras da democracia. O ódio empurra  limites, os desloca, enquanto outros afetos – pensemos na reprimenda ou na indignação –podem respeitar canais de expressão e modos de performance mais estabilizados. Já o ódio, em sua vocação mais característica, busca romper pactos, impugnar formas de relação, desmontar protocolos de civilidade e de laços. O ódio, assim, não é um afeto nobre, uma paixão própria ao entusiasmo civil e democrático, como podem ser a reprimenda e a fúria. Trata-se de um afeto profundamente abjeto, ou, ao menos, sempre vizinho à abjeção, fundamentalmente porque se liga ao que uma sociedade, e suas formas de subjetivação, declara como resíduo, detrito, instância de repúdio. Daí, evidentemente, vem a força de sua vio- lência, sua capacidade para evocar e, com vertiginosa frequência, produzir a eliminação de corpos, de vidas e de grupos. O que nos interessa indagar é justamente essa dimensão problemática, ambivalente e complexa do ódio. Por um lado, o ódio adquiriu uma nova centralidade na última década, especialmente na conjuntura mais recente que emergiu com a eleição de Jair Bolsonaro, assim como o que assinalamos todos atualmente como uma nova onda conservadora, com um desejo de exterminar vidas, com um crescimento avassalador da extrema-direita em boa parte do mundo e uma necropolítica que avulta e se institui no lugar do que antes críamos ser o pacto civilizatório. Esses movimentos e modos de ação e organização nos permitem falar de formas contem- porâneas do ódio, se desdobrando em manifestações de racismo, violência patriarcal e sexista e um classicismo ainda mais raivoso. No entanto, por outro lado, o ódio – e sua complexa constelação afetiva – atravessa muitos desejos emancipatórios, criativos e potentes presentes em nossas sociedades e insurgentes através dos discursos e práticas contemporâneas manifestas nos movimentos negro, periféricos, indígena, entre outros.
Antes de tudo, tentamos evitar toda simplificação e moralização fácil perante o ódio, esse gesto – recorrente e compreensível, porém sempre perigoso – de colocar o ódio como exterior, de encarná-lo em figuras reconhecíveis e estabilizadas (o “hater”, o “fascista”, o “bolsomonion” etc.), e de expurgar esses afetos baixos de nossas próprias posições. Acreditamos que faz falta uma aproximação mais matizada, capaz de não apenas analisar sua natureza complexa, instável e diversa daquilo que chamamos usualmente de “ódio”, mas também, e talvez principal- mente, de sua natureza em processo, em transformação, em devir, capaz de fixar-se e converter-se em outra coisa, de descentralizar-se e de afirmar-se em outras linhas e em outras possibilidades. O ódio como afeto coletivo se torna o terreno de uma pedagogia, ao mesmo tempo sensível e política, feitas de formas de expressão e de objetivos ou horizontes coletivos. Mas, para compreendermos esse emaranhado tecido social e político, é necessário pensar sobre o ódio, entrar nele, reconhecer sua proximidade: esse é um dos objetivos que almejamos neste livro.
Para isso, formulamos perguntas a partir de dois lugares diferentes e em tensão. Podemos falar de ódios e não de um monolítico ódio? Então, onde e como se  inscrevem os ódios? Como e onde os ódios escrevem? Os ensaios deste livro exploram, portanto, esses dois cam- pos: as inscrições corporais do ódio – no gesto, na superfície dos rostos, na expressividade dramática do ódio presente nas performances culturais; e também as escri- tas do ódio, sempre ligadas aos corpos, movimentando uma eletricidade que provém do próprio rebordo da voz, do gesto, de uma força háptica das palavras. “Escritas precárias”, “escritas performáticas”: os ensaios trabalham com concepções ampliadas do escrito e da inscrição para tentar capturar precisamente o que excede e põe em ten- são tanto as formas de representação escrita, herdadas da cultura letrada, quanto os modos como a política se tornou um discurso estabilizado sobre certas formas de escrita. Distanciando-se dos repertórios clássicos da cultura letrada e de sua esfera pública (o jornal, o livro) e dos territórios cristalizados da cultura midiática (a televisão, o rádio), essas “escritas precárias” emergem nos territórios da rua, do entre-corpos da manifestação, nas zonas da voz e da cacofonia coletiva, dos fóruns online, dos panfletos e cartazes, das instalações e de práticas performáticas. Buscamos essas zonas onde se enlaçam novas formas de expressividade, outras formas de intervir na língua, outros agenciamentos do coletivo que permanecem opacos, ou nunca perceptíveis, precisamente porque pensamos que são neles que se localizam os laboratórios do presente, isto é, tanto os seus pontos obscuros, suas linhas de pulsão de morte – tão teatralizadas pelos neo- fascismos e suas pedagogias da crueldade – como suas
linhas de fuga, seus saltos emancipatórios, os campos de criação. O ódio marca uma ruptura de certos pactos, protocolos e formas de relações prévias. Mapeia essa ruptura e as linhas que surgem daí: potências negativas, abrasivas, mas também novos territórios coletivos, no- vos lugares de fala, novas formas de ocupação do público, exemplarmente encarnado nos feminismos, especifica- mente no feminismo negro. O ódio marca – e quem poderia duvidar? – nosso momento de maior perigo. Porém, exatamente por isso, marca também a inflexão e a potência de um outro tempo possível.
Um tema que percorre os dois ensaios é o das irrupções e inscrições do ódio como rearticulação dos lugares de fala, das posições de enunciação, dos agenciamentos coletivos que podem ser lidos nesse contexto e as guerras de línguas, nas quais se configuram novas formas e circuitos do público, a exemplo das redes sociais, dos fóruns de discussão online, entre outros. O ódio, aqui, não é tanto (ou não apenas) uma dimensão psicológica, um foco da vida afetiva da subjetividade, mas especial- mente uma energia e uma intensidade que altera os pac- tos discursivos, os laços simbólicos, os protocolos cívi- cos (com suas regras do que pode ser dito), nos quais se basearam as democracias brasileiras e argentinas, e que, como sabemos, se abre hoje como desafio para diferentes povos e culturas. Antes de tudo, o ódio é um terremoto, um estremecimento raivoso dos protocolos da expressão democrática, face às formas, aos canais, às vias de ex- pressão de sentidos e afetos nos quais se conjugam as representações unificadas do “popular”, do “cidadão”, do “nacional-popular”, do “povo trabalhador” etc. São essas cristalizações, que durante muito tempo pareciam ser as únicas formas de articulação política nas democracias regionais, os “marcos” de legibilidade política como tal, que o ódio estremece. O ódio nomeia essa fricção per- manente e implacável sobre as formas civis, e a abertura em direção às intensidades, afetos, linhas de subjetivação que acabam por não encontrar formas de articulação e de representação nos modos políticos existentes: lugares de fala heterogêneos, irredutíveis aos discursos dominantes, estabilizados e reconhecíveis. Uma heterogeneidade que irrompe e altera os protocolos e as liturgias do democrá- tico. Esse tremor da democracia é o que queremos pensar. Para dar conta dessa heterogeneidade nos centramos no contexto das afecções precárias, performáticas, no limite entre o que se pode ou não representar, que tensiona e disputa universos de significação e de enunciação: o ruído, o barulho, o grito, a pura voz que percorre corpos, gestos e palavras. Nos situamos nesse lugar não apenas porque acreditamos que o ódio contemporâneo é uma modelagem política dessas intensidades, mas também porque nesse umbral afetivo se condensam outros tempos, memórias, latências e desejos que não encontram sua articulação política e cuja expressão em novas formas de subjetivação e em políticas emancipatórias é a tarefa urgente do presente. Essa tarefa é estética e política ao mesmo tempo, e se afirma como um exercício ético, de trabalho sobre as subjetividades, trabalho que é, mais do que nunca, necessário: uma “clínica da cultura” e uma “peda- gogia pública” como projeto crítico afirmativo e urgente.
Este livro se escreve a duas mãos, entre gêneros, entre dois países e dois idiomas. Busca fazer com que as fricções entre as línguas, as ideias, as experiências e as histórias não se deixem reduzir por leituras generalizantes. Quer deslocar os mapas previsíveis, as perspectivas conhecidas, conectar-se e amplificar movimentos da sensibilidade a partir de uma tradução sempre tensa e incompleta; entre português e espanhol, mas também entre os mapas sociais e políticos brasileiros e argentinos, entre experiências históricas distintas e entre realidades que têm muito em comum, mas, também, muitas diferenças. E, fundamentalmente, quer pensar, na escrita precária e aberta, a duas mãos, essa tradução simultaneamente imperiosa e agônica entre afeto e linguagem, entre afecção e palavra, entre intensidade e gesto. Essa fronteira, sempre móvel, está aberta a novas escritas, a novas for- mas, a novos canais. Escrever a duas mãos, entre países e entre línguas, é também uma tática formal para que no- vas dobras do sensível e do pensamento emerjam e contaminem nossos saberes e nossas práticas. Escrever no tremor das duas democracias, para abrir a possibilidade de outros circuitos, outros afetos, outras formas de nos afetarmos no desejo e na luta.
Escrever a partir de duas línguas figura aqui também como um escrever entre, lugar por onde se infiltra um desejo de dobra e de nuance. Escrever entre é, até certo ponto, trazer para o cerne da nossa experiência o diálogo em diferença; experimentando a fricção entre os nossos textos como superfície áspera e deslizante. Pele performativa que percorre também os nossos corpos escritos. É sobre esse viés que falamos dos processos de escrita inacabados, precários ou bordejantes da e na linguagem como operadores de subjetivação político-afetiva. Nesse sentido, “clínica da cultura” e “pedagogia pública” funcionam não somente como modos de ler os fenômenos que aqui buscamos tratar, mas também de viver a forma de escrita que monta este ensaio e se conecta aos impasses das afecções difíceis, por vezes inabordáveis, e o limite de muitas das experiências que dão contorno às nossas construções enquanto indivíduos e aos nossos processos de construção crítica do contemporâneo.
A dobra deste livro sobre ele mesmo, estes dois ensaios lado a lado, é um convite ao exercício que nos mostra, aqui e agora, que dobrar não é superpor – o passado fascista sobre o presente neofascista, as ancoragens totalitárias de nossas infâncias sob os grandes regimes ditatoriais sul-americanos, a bronca argentina e a cordialidade brasileira, a insuficiência democrática e as nossas submissões indesejadas, porém presentes – mas abrir a brecha das diferenciações pessoais, próprias, entre cada uma dessas dobras. Em um tempo em que o dizer arrisca-se sobre os territórios do aniquilamento da palavra e em que o poder advém do estado de dominação, repetimos: os regimes das afecções desafiam as materialidades discursivas e vice-versa. Borda dos corpos [bordas das nossas línguas] como desafio de politizar nossas margens e fronteiras. Mais do que demolir ou erguer muros, escrever sobre eles. Foi o que consideramos aqui: tudo se escreve. Incluindo a força mais brutal. Ou o ranger dos dentes do ódio.
Ana Kiffer e Gabriel Giorgio, Paris, Nova York, julho de 2019.
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Texto de apresentação do livro “Ódios políticos e políticas do ódio – lutas, gestos e escritas do presente“.
Ana Kiffer é escritora, pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC -Rio. É colunista da Revista Pessoa na qual vem escrevendo séries de ensaios e de ficções. Em 2018/2019 foi professora visitante sênior pela Capes na Universidade Paris 7, França. Especialista na obra de Antonin Artaud, cujas cartas organizou na publicação “Antonin Artaud, a perda de si” (2018). É autora dos livros de ensaios “Do desejo e devir: o escrever e as mulheres” (2019) e “Antonin Artaud” (2016);e de poemas “Tiráspola e desaparecimentos”(2017) e “Todo mar” (2019).
Gabriel Giorgi é crítico, pesquisador e professor da New York University (NYU). Estudou na Universidade Nacional de Córdoba (Argentina) e na NYU. É autor de “Sueños de extermínio: homosexualidad y representación en la literatura argentina” (2004) e “Formas comuns: animalidade, biopolítica, cultura”, traduzido para o português e publicado no Brasil em 2016. Coeditou uma antologia de ensaios sobre biopolítica, Excessos de vida (2007). Foi professor e pesquisador visitante na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2016. Tem participado de diversos seminários nos Estados Unidos e América Latina.

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