Liberdade na política, apresentação do livro de Hannah Arendt por Pedro Duarte

Liberdade na política
Pedro Duarte
É bem conhecida a sentença de Hannah Arendt segundo a qual a liberdade é a razão de ser da política. Raras vezes, contudo, ela falou de forma tão sintética e penetrante a esse respeito quanto na palestra “Liberdade para ser livre”. Não se sabe com toda exatidão quando ou onde ela foi proferida, mas seu manuscrito é datado de 1966-7, época em que a autora trabalhou em Chicago e Nova York. O texto só foi publicado postumamente. Nele, o pensamento ensaístico de Hannah Arendt é exemplar. Rodeada por revoluções em vários cantos do mundo, ela as comenta e as entende na tradição política moderna, buscando definir, portanto, o que é liberdade.
O título da palestra é tão intrigante quanto emblemático. Intrigante pois se ampara em uma redundância: liberdade para ser livre. Emblemático pois aí está a chave para o sentido da política, de acordo com a própria autora. Em geral, o termo “para” indica funcionalidade: o martelo serve para pregar um quadro, por exemplo. Seguimos uma lógica semelhante ao concebermos que a liberdade serve para outras coisas distintas dela mesma. Nesse caso, parece que a liberdade não tem valor em si própria, é apenas a garantia para outros valores. Ela existiria “para” que pu- déssemos fazer isso ou ter aquilo, produzir ou consumir.
Na expressão que Hannah Arendt colheu da tradição política dos Estados Unidos, porém, a redundância – “liberdade para ser livre” – quebra esse conceito instrumental. Liberdade é para ser livre. Pela repetição, a liberdade é remetida a ela mesma e, assim, há uma reversão súbita da expectativa instrumental contida no “para”. Como razão de ser da política, e não como valor privado, a liber- dade é (apenas) para ser livre. Ela não tem objetivo ulterior. Não carece de justificativa fora de si. Para que serve a liberdade? Para ser livre. Ela é um fim em si mesma.
Essa definição de liberdade política deve muito às análises conceituais de A condição humana, de 1958, e acompanha o exame histórico de Sobre a revolução, de 1963. No primeiro livro, aponta-se a distinção entre necessidade social e liberdade política. Para Hannah Arendt, satisfazer a fome, solucionar a pobreza e garantir a saúde são respostas a necessidades sociais. Dizem respeito ao labor e mantêm nossa sobrevivência biológica, o que é fundamental. Porém não garantem ação e discurso, condições da experiência propriamente política da liber- dade. Um povo pode estar bem alimentado, mas apartado das decisões de sua polis. O autoritarismo pode resolver o problema da saúde sem dar o direito de agir às pessoas. Em Sobre a revolução, obra em que figuram trechos completos retomados na palestra “Liberdade para ser livre”, apresenta-se a distinção entre a Revolução Americana e a Francesa: se a primeira, ocorrida depois que a miséria estava mitigada, pôde apontar o problema da pluralidade da liberdade política, já a segunda precisou se de- dicar a tirar o povo da pobreza. Deve-se observar porém que, na palestra sobre a liberdade, Hannah Arendt aponta criticamente que tal comparação só se sustenta porque nos Estados Unidos os escravos sequer eram reconheci- dos como pessoas, portanto a “miséria negra” não contava. No exame das revoluções, a palestra aproveita ci- tações não apenas de teóricos, mas de homens de ação. Frases de Thomas Jefferson, John Adams e Robespierre esclarecem alguns dilemas da política: por exemplo, como manter a liberdade, passadas as revoluções? Ninguém soube dar uma resposta conclusiva a essa questão, mas todos estavam cientes do problema, buscando instituições com mais participação popular ou algo parecido com uma “revolução permanente”, sem o medo e a prática da violência.
Nesse ponto, o desafio político que Hannah Arendt apresentou ainda nos anos 1960 é de grande atualidade. Tratava-se de conferir às pessoas maior participação, pela ação e pelas palavras, na vida republicana, por meio da qual elas poderiam discutir sua existência pública e, quem sabe, experimentá-la como um prazer – e não um fardo. O sucesso da fundação política dos Estados Uni- dos, por exemplo, residiria no fato de que as pessoas já se organizavam, pela lei, em assembleias nos distritos. Estavam desde cedo na prática da vida pública comunitária.
Essa simpatia de Hannah Arendt pela história americana talvez tenha sido aguçada pelo acolhimento que recebeu nos Estados Unidos depois de seu exílio, infligido pela chegada de Hitler ao poder em 1933 e pela con- sequente perseguição antissemita. Judia alemã, Hannah Arendt fugiu de seu país, chegou a Nova York em 1941 e se naturalizou americana em 1951. Passou a escrever ensaios em inglês e às vezes adotava a primeira pessoa do plural, nós, ao falar dos norte-americanos – como na palestra “Liberdade para ser livre”. Nem por isso, contudo, deixou de ver a situação do país com um olhar crítico.
Pode-se destacar, por exemplo, o caso da Revolução Cubana. Para Hannah Arendt, atribuir o incidente da Baía dos Porcos, em 1961, apenas às falhas nos serviços secretos dos Estados Unidos demonstrava a profunda in- compreensão do que se passara em Cuba, ou seja, do que significa quando pessoas atingidas pela pobreza em um país corrompido escutam pela primeira vez sua condição sendo discutida abertamente e se veem convidadas a participar nessa discussão. Não é sua pobreza social que desaparece da noite para o dia; é sua liberdade política que aparece. Muitas vezes, na era moderna, a revolução significou essa possibilidade.
Entretanto, sentimos aqui a distância entre os dias atuais e os contextos analisados por Hannah Arendt. Não vivemos mais as revoluções como fatos cotidianos. No fim do século xx, assistimos ao declínio dessas rupturas radicais. Hannah Arendt era ambígua em sua relação com tais movimentos: reconhecia neles uma irrupção espontânea da política, mas lamentava a violência e o terror, bem como seu costumeiro destino autoritário. Logo, é impossível saber se consideraria o declínio das revoluções como algo positivo ou negativo.
Mesmo que as revoluções, em si, tenham deixado de ser frequentes entre nós, o pensamento de Hannah Arendt sobre elas é permeado de comentários que não envelheceram. Deve-se notar sua condenação das intervenções militares, que, até quando bem-sucedidas em casos isolados, teriam sido incapazes de preencher o vácuo de poder, uma vez que nem mesmo a vitória substituiria o caos pela estabilidade, a corrupção pela honestidade, a decadência pela autoridade ou a desintegração pela confiança no governo. Mais uma vez, nada legitima o poder, a não ser a política.
Contudo, até na ausência da política, homens e mulheres podem, pelo simples fato de aparecerem no mundo, encarnar seu significado. Tempos sombrios contam com pequenas iluminações, como aquelas vindas dos pensa- dores Waldemar Gurian e Karl Jaspers no século xx. Os textos de Hannah Arendt sobre eles, incluídos neste volume, dão testemunho pessoal dessa visão, já que ambos eram seus amigos: o primeiro discurso é de 1955, um ano após a morte de Gurian (e, apesar de integrar a edição original do livro Homens em tempos sombrios, não consta da edição brasileira); o segundo foi lido logo após a morte de Jaspers, em 1969, em uma homenagem feita pela Universidade de Basel. Os dois textos são, portanto, inéditos no Brasil, assim como a palestra sobre a liberdade.
O perfil e a coragem de Gurian e Jaspers reforçam a tímida esperança com que termina “Liberdade para ser livre”. Recuperam aquilo que a palestra sugere: que a política é a abertura do espaço da convivência dos ho- mens e das mulheres entre si no qual se pode começar algo novo, imprevisível. Ser livre, para Hannah Arendt, é isto: iniciar algo novo, fazendo justiça ao fato de que cada um de nós veio ao mundo como um recém-chegado ao nascer. Em suas palavras, “podemos iniciar alguma coisa porque somos inícios e, portanto, iniciantes”. Isso é precisamente a liberdade para ser livre.
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Apresentação do livro “Liberdade para ser livre”, de Hannah Arendt.
Pedro Duarte é professor doutor de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (puC-Rio) e autor dos livros “Estio do tempo: Romantismo e estética moderna” (2011); “A palavra modernista: Vanguarda e manifesto” (2014); e “Tropicália ou Panis et circencis” (2018). Tem diversos artigos sobre Hannah Arendt publicados em periódicos especializados e na grande mídia.

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