Uma carta de Angola: Dignificar o país e os mortos
Jacques Arlindo dos Santos
Tal como prevíamos há 15 dias, foi decretado o fim da emergência. Entramos agora no estado de calamidade. O futuro dir-nos-á se a medida foi ou não acertada. Pessoalmente, receio a palavra. Como estado, tal como é visto, não viu a sua figura jurídica contemplada na “atípica” Constituição da República, o que levou à revisão e consequente alteração, necessariamente apressada, da Lei de Bases da Protecção Civil.[1] Ignorante que sou, e independentemente da premência dos ajustamentos ao quadro constitucional, não deixo de opinar sobre a matéria. Mais uns dias de emergência ajudariam neste processo de luta. Com esta abertura, também eu abandono o ciclo da quarentena. Todos esperamos bons augúrios desta nova fase. Não há ninguém que não o deseje. Voltar à normalidade, significa também sair ilesos tanto deste, como do outro estado de calamidade que nos martiriza há longo tempo. Uma situação que, sem receio de entrar para o universo dos números, nos aniquila e tem sido responsável, ao longo das épocas, pela perda de milhões de vidas de compatriotas nossos.
A perda inqualificável de vidas humanas é, e será sempre, uma tragédia. Em qualquer sítio, seja em que circunstância for. Principalmente na que deriva da insensatez, negligência, más decisões, enfim, até da maldade dos homens. A perda da vida humana verificada por causas naturais, frequentes e inesperadas, acontecida a qualquer momento e em todo o mundo, exemplo de desastres, inundações, tsunamis, tornados, acidentes aéreos, deslizamento de terras, e mesmo as provocadas por pandemias, como a que assola a humanidade neste preciso momento, sendo extremamente difíceis de enfrentar, tem impacto emocional diferente daquelas que são movidas pelo instinto das pessoas. Por vezes, o instinto humano não é mais que a reacção inata dos animais, gravoso quando guiado por interesses próprios, arvorados em ideologias políticas e ainda por ambições de poder, provocam a morte inglória de homens e mulheres, quase sempre e na sua maioria, jovens que são retirados brutalmente da vida, sem motivo que justifique a barbárie de tais gestos.
A África, onde nesta semana que termina e em todos os países que a compõe, se assinalou o dia do continente, tem sido palco de actos animalescos, primitivos, terríveis. Uma violência desmedida que se abater em constante permanência sobre os seus próprios cidadãos. Crises endémicas, desastres climatéricos, miséria, fome, desnutrição, golpes de estado ou falhadas tentativas, regulares genocídios, vão, ano atrás de ano, surpreendendo, destruindo, enegrecendo, humilhando e envergonhando todos os africanos. Nos vários quadrantes, África é considerada pela sua imensa riqueza, mostrando-se insuperável no que toca à génese do seu povo e na parte pior do seu instinto, aquela que guarda a maldade do homem. Por isso é que os seus governantes são sistematicamente denunciados de modo aviltante sem que lhes seja permitida a hipótese de defesa. Porque as acusações são fortes e categóricas. Estão de acordo com a realidade, com a verdade dos factos. E é normal vir então à tona, a incapacidade governativa dos africanos, razão das fortes amarras que resignam o continente à dependência do estrangeiro, em quase todos os domínios. Há uma gritante falta de visão para apostar na escola, na ciência e na universidade de qualidade, e uma desesperante e palpável insensibilidade pelas questões sociais. A grande maioria dos dirigentes africanos, pródigos em mostrar as suas fraquezas, encontram-se vergonhosamente cativos do seu velho compromisso com a corrupção. Juntam a isso, uma crença estupidificada em feitiços e bruxedos, claro reflexo de um atraso milenar, de amplo espectro, injustificado e assustador. Desgraçadamente, não conseguimos fugir do desígnio e nós, angolanos, somos parte assumida desta África infeliz e permanentemente castigada. Sabemos todos que em Angola acontecem, também, muitas das desgraças apontadas acima.
Nesta semana que ora termina, tivemos por cá, inevitavelmente, a reposição dos lamentos da tragédia [de 27 de maio de 1977][2], vibrantes neste mês inesquecível. Ainda não se vislumbra o fim do choro interminável, deste óbito monumental que enlutou milhares e milhares de famílias angolanas. Uma situação que, do meu ponto de vista, poderia há muito, senão sanada, ao menos apaziguada. Por isso tenho falado com insistência num tema que uns acham exagerado, outros dizem que escusado. Bastariam, quanto a mim, um ou dois simples gestos, para amenizar o desentendimento. A tragédia terá que ser assumida. Mas, POR TODOS. Com a mesma consciência de culpa, tanto dos que iniciaram e mataram barbaramente, como dos que com idêntica violência liquidaram os outros. Para mim, um gesto, uma palavra que signifique o pedido de PERDÃO, e através do qual se inocentem os que não mancharam as suas mãos com sangue e, por outro lado, se denunciem implicitamente os que as têm verdadeiramente sujas. Não foi só de um lado que se feriu e se matou. De todos os lados houve vítimas, de todos os lados houve luto, famílias e corações destroçados. Sendo todos filhos da mesma pátria, irmãos uns dos outros, o Estado, em meu entender, para além das medidas louváveis que tem promovido neste campo, deveria ir a terreiro e convidar TODOS, inclusive os partidos com assento parlamentar e as associações ligadas ao evento, para numa atitude colectiva, se pedir PERDÃO às famílias e à Nação. Imitando Sua Santidade, o Papa. Não fica mal a ninguém, pelo contrário, só enobrece.
São necessárias as palavras certas, para perpetuar esse acto de coragem e dignidade. Emitam-se depois as certidões, assumam-se as responsabilidades devidas, construam-se os memoriais. Se a dor e o choro são compreensíveis, também é compreensível que se tente dar, aliás, tem que ser dado, término ao ódio e à vingança. Temos que ter a força e a obrigação de irmos por novos caminhos, para, desde logo, sairmos vitoriosos na luta contra o Covid-19, e depois, seguirmos rumo à construção de um país de que nos orgulhemos. Decente, livre e democrático.
Luanda, 30 de maio de 2020
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Jacques Arlindo dos Santos é escritor e editor angolano, um dos mais respeitados nomes do meio literário de seu país. Fundou em 1989 a Associação Cultural Recreativa Chá de Caxinde, editora responsável pela publicação de importantes livros de autores angolanos e revistas literárias. É autor de obras como “Chove na Grande Kitanda” e “Berta Ynari ou Pretérito imperfeito da vida.”
[1] Mantivemos neste texto a grafia original do autor. (N.E.)
[2] Em 27 de maio de 1977 ocorre uma tentativa de golpe liderado por Nito Alves, a partir de uma dissidência dentro do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que estava no poder desde a libertação de Angola. O governo do então presidente Agostinho Neto reage, com a ajuda de tropas cubanas que estavam no país, e os apoiadores da ação são neutralizados e executados, incluindo membros de importantes setores do Exército. Os anos que seguiram são de extrema repressão, prisões, tortura, julgamento sumários e fuzilamentos dos “traidores”. Calcula-se que em dois anos (entre 1977 e 1979), cerca de 15.000 mil angolanos foram mortos pelo governo de Agostinho Neto, incluindo importantes intelectuais, jovens militantes, estudantes e combatentes das lutas pela independência do país. (N.E.)