Cara América Branca, tão a cara do Brasil, por André Capilé

Cara América Branca, tão a cara do Brasil
André Capilé

tô aqui com danez na minha frente, falando comigo, falando na minha língua: “não digam que estamos mortos” – é o que repete, incessantemente, no meu ouvido. poucas vezes, entre os vivos, convivi com uma presença tão necessária. a primeira vez que vi, era lá a voz e o corpo deles. “cada noite conto meus irmãos. & pela manhã, quando alguns não sobrevivem pra serem contados, conto as covas que deixaram. estendo a mão ao povo preto & toco apenas o ar”. falava, então, comigo, cara a cara, falava à cara américa branca, tão a cara do brasil. a gente se sacode, cada qual em seu terreiro, e segue. eu não consigo dublar danez. diz muito perto de mim. ouvirão vocês de nós. sim, ouvirão vocês de nós.
daí, escorrego os dedos pela linha do tempo de uma rede qualquer que repete os mesmos infernos diários – os de lá, os daqui – e súbito uma garota preta, punho alto, grita na tela: “sem justiça, sem paz”. tomei. o assunto da vez, lá como aqui, é george floyd. o da vez, escuta. o dessa vez, escuta de novo. escuta como se fosse apenas mais um tiro. escuta. escuta de novo. tá contando? lembra daqueles garotos que foram comemorar o primeiro emprego do amigo? estes nunca souberam a conta. te conto de novo: 100 tiros. é de perder o ar, não é? imagina o floyd?
lá como aqui, quando assisto os dados, os contextos, os textos, penso, inúmeras vezes, nesse desejo de aclimatação que acomete o dublador, coisas do tipo: conhecerão os nomes todos que danez nos apresenta? saberão de marcos vinícius, talvez, ao lerem, por exemplo: “eles não podem matar / o menino em tua camisa de novo”? ou se lembrarão de miguel, em versos como: “às vezes um menino nasce / disparado do céu, caído de uma / ponte entre sóis & barro”? os nomes deles, os nossos nomes, a mesma cor.
durante a semana que passou fui visitar as imagens de ken gonzales-day. repassar memórias. também toda sorte de invisibilidades e apagamentos, ali, espocando na minha fuça. ainda tenho pesadelos com a cara festiva dos assassinos junto dos espectadores. botei pra tocar as frases de lewis allan, e primeiro me disse billie holiday, depois me disse nina simone, os modos de contar um fruto estranho que guilherme gontijo flores arranja assim: “eis o fruto pro corvo bicar / pra chuva colher pro vento sugar / pro sol decompor pra cair depois / eis a colheita estranha e atroz”. e lá foi a pedra morro acima que rola ao começo que começa de novo, como o sem parar da catraca do hades, como se a roda da fortuna girasse a miséria do enforcado pendurado pelos pés, como se a vida, apesar de.
há momentos em que penso que danez nos mostra, pétala por pétala das flores frágeis de nós, que ainda não saímos dessa nênia: “(…) faz uns anos / arrancamos irmãos dos galhos / puxamos seus cachos crespos da casca”. tô aqui com a voz deles na minha frente, falando comigo, falando na minha língua. e há dias em que só penso: você viu. você ouviu. não fez nada?
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André Capilé é tradutor e poeta, mestre e doutor em estudos literários pela PUC-Rio. É tradutor do livro “Não digam que estamos mortos”, de Danez Smith.

CONHEÇA AQUI O LIVRO 

Danez Smith é poeta negr@, queer, soropositiv@ e performer nascido em St. Paul, Minnesota, em 1989. Autor de [insert] boy” (2014), “Don’t Call Us Dead” (2017) e “Homie” (2020). Danez recebeu bolsas da Poetry Foundation, McKnight Foundation, Montalvo Arts Center, Cave Canem e National Endowment for the Arts, e seu trabalho tem sido elogiado pela crítica especializada em veículos como The New York Times, The Guardian, The New Yorker. Danez integra o Dark Noise Collective e apresenta, com Franny Choi, do podcast VS, patrocinado pela Poetry Foundation e Postloudnes. Na última década, Danez Smith – que é não binário e usa os pronomes them/they para se definir – se tornou poeta dos  mais celebrados de sua geração, situando-se na vanguarda de um movimento afro-americano que viu os artistas da poesia falada se moverem dos palcos e bastidores para aparecer em livros e prêmios de sucesso. Seu poema “Cara America branca”  tem viralizado na internet neste período de protestos raciais nos Estados Unidos. Foi convidado oficial da FLIP 2020.

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