Uma pandemia racial dentro de uma pandemia viral, por Ibram X. Kendi

Uma pandemia racial dentro de uma pandemia viral
Ibram X. Kendi
Eu cresci em um ambiente cristão; sou o segundo filho de dois ministros da igreja. Não costumo fazer referências bíblicas sobre a minha vida, mas meu pai faz.
Duas semanas atrás, ele me comparou com João Batista, uma voz pregando no deserto, mostrando os dados com os recortes raciais sobre a pandemia. Tive que lembrá-lo que, diferentemente de João, eu não faço esse clamor sozinho. A senadora Elizabeth Warren, a democrata Ayanna Pressley, e um grupo de médicos negros da Universidade de Virginia também têm chamado atenção para essa questão.
Ocorre que, na verdade, estávamos no deserto. No dia 1º de abril, quase nenhum estado, cidade, hospital ou laboratório tinha divulgado dados com marcadores raciais sobre as pessoas que foram testadas para Covid-19, nem as que foram contaminadas, hospitalizadas ou que morreram da doença. Cinco dias depois, citando as disparidades raciais nos números de contaminados e mortos de cinco estados ou cidades, e os dados com marcadores raciais dos piores epicentros do coronavírus, fiz a seguinte especulação: os Estados Unidos estão vivendo uma pandemia racial, dentro da pandemia viral. Mas precisávamos de mais dados para ter certeza disso.
Agora – depois de tantos americanos se juntarem ao nosso coro, depois de tantos estados e cidades divulgarem seus primeiros conjuntos de dados com marcadores de raça, depois de tantos dados mostrarem assustadoras disparidades raciais – temos certeza.
Pelo menos 29 estados divulgaram números com marcador racial dos casos confirmados de coronavírus, das taxas de mortalidade, ou de ambos, de acordo com o Covid Racial Data Tracker [Rastreador de Dados Raciais do Covid]. Este rastreador, uma colaboração entre o projeto de rastreamento do vírus da revista The Atlantic e meus colegas do Centro de Pesquisa e Políticas Antirracistas, está sendo desenvolvido na intenção de rastrear, analisar e atualizar regularmente dados com marcadores raciais sobre a pandemia nos Estados Unidos. Esses números iniciais nos dão uma ideia ainda incompleta das disparidades do surto no país. Até 12 de abril, não havia marcador racial vinculado à 38% dos 194 mil casos que esses 29 estados já tinham registrado, e alguns estados misturam categorias raciais e étnicas na divulgação dos seus números. Mas a incompetência do governo federal na reunião desses dados fez com que sobrasse para a gente a responsabilidade de criar esse recurso, ainda que incompleto, para pesquisadores, militantes e a população como um todo.
O quadro geral piora a cada dia. No marco zero da cidade de Nova York, a população latina representa 34% das mortes por coronavírus registradas, número maior que a parcela que ocupam na população geral da cidade (29,1%). Dois pequenos povoados indígenas no Novo México, até a última sexta-feira, tinham uma taxa de contaminação maior do que qualquer cidade do país.
Mas a essa altura da pandemia, as disparidades entre o tamanho da população negra e a porcentagem de pessoas negras infectadas, hospitalizadas ou que morreram por Covid-19 parecem ser as mais graves. Uma análise realizada pelo jornal Washington Post mostra que cidades de maioria negra têm taxas de infeção três vezes maior que cidades de maioria branca. Uma análise realizada pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos mostra que, de aproximadamente 1.500 hospitalizações em 14 estados, 1/3 delas é de negros – ainda que apenas 18% da população das áreas analisadas seja negra. Uma análise feita pela Associated Press dos dados disponíveis sobre as mortes no país, mostra que 42% das vítimas da doença são negras – o dobro da quantidade percentual que representam nos estados incluídos pela análise. Na Louisiana, mais de 70% das pessoas que morreram, até agora, em decorrência da Covid-19 são negras – mais do que o dobro dos 32% que representam da população do estado. Esse número também é bem maior que os 60% que representam da população de Nova Orleans, onde o surto é ainda pior. Em Nova York, afro-americanos compõem 9% da população do estado e 17% das mortes.
Em meio a todos esses dados divulgados na semana passada, algumas vozes antirracistas saíram do deserto, ficaram visíveis por um breve momento, e depois foram enviadas de volta para ele. Hoje, as disparidades raciais são inegáveis. Mas os americanos não têm certeza de que o racismo está por trás dessas disparidades raciais. O racismo continua negável. Então, mais uma vez, nossas vozes pregam no deserto por um milagre que salve os Estados Unidos de seu pecado original – pecado que os americanos aparentemente nunca conseguem confessar.
Ao longo das últimas duas semanas, cada resposta encontrada nos levou a novas perguntas. Os estados deveriam estar coletando dados com marcadores de raça? Sim. Esses dados mostram disparidades raciais? Mostram. E isso nos levou à questão debatida nos Estados Unidos desde o início da república: Por que existem disparidades raciais? Por que pessoas negras, em geral, estão se infectando e morrendo mais do que outros grupos racializados? Agora, essa é a pergunta que não quer calar, para qual muitos americanos estão dando uma resposta velha e familiar. Eles culpam a pobreza, mas se recusam a reconhecer como o racismo cria uma diferença entre pessoas pretas pobres e pessoas brancas pobres, e faz com que essas pessoas pretas pobres estejam mais vulneráveis a um contágio letal.
Os americanos culpam as pessoas pretas. Para explicar as disparidades nas taxas de mortalidade, muitos políticos e comentaristas apontam o fato de que pessoas negras tem mais condições médicas agravantes – mas eles não explicam o porquê disso. Eles culpam as escolhas feitas pelos negros, ou a pobreza, ou a obesidade – mas não o racismo.
“Agora, se contarmos a diabetes, a obesidade, a hipertensão, então os afro-americanos terão mais desses receptores” que o coronavírus atinge, disse o senador Bill Cassidy no programa Morning Edition da emissora NPR. “Mas, enquanto médico, eu diria que precisamos tratar da epidemia de obesidade, que desproporcionalmente atinge os afro-americanos. Isso diminuiria a prevalência de diabetes, de hipertensão”.
Quando confrontado com a possibilidade dessas “condições médicas agravantes” estarem “enraizadas em anos de racismo sistêmico”, Cassidy respondeu: “Essa é uma pergunta retórica, e talvez esteja. Mas enquanto médico, estou olhando para a ciência”.
Sem sombra de dúvidas, afro-americanos sofrem desproporcionalmente de doenças crônicas como hipertensão, doenças cardiovasculares, diabetes, doenças pulmonares, obesidade e asma, o que piora suas chances de sobreviveram ao Covid-19. Mas se Cassidy estivesse realmente olhando para a ciência, ele também estaria perguntando: Por que afro-americanos sofrem mais dessas doenças crônicas? Por que afro-americanos estão mais propensos a serem obesos que pessoas latinas ou brancas?
Saindo em defesa de Cassidy, Rod Dreher, editor sênior na revista The American Conservative, argumentou que “no Sul, pessoas brancas e pretas comem o mesmo tipo de comida” e se perguntou “até que ponto os negros por todo o país ainda se alimentam de dietas tradicionais com muita gordura, sal, carne de porco, açúcar e carboidratos?”. Ao que um dos leitores de Dreher respondeu: “É especialmente impressionante, para mim, a sugestão de que uma conspiração racista impede que cheguem couve de bruxelas em bairros negros. Se as pessoas quisessem vegetais frescos e saladas e tofu, as lojas teriam isso”. Se existe uma dificuldade, geograficamente marcada, de acesso à comida fresca e de qualidade, aparentemente, a culpa é das pessoas pretas.
Se as pessoas negras recebem um atendimento inferior por parte dos hospitais e dos médicos, a culpa é delas? Se as pessoas pretas têm menos probabilidade de receberem seguros de saúde, a culpa é delas? Se os hospitais em cidades de maioria negra estão lotados com pacientes com coronavírus, a culpa é das pessoas pretas?
De acordo com essa lógica, o racismo não mata; as pessoas negras estão se matando. Ser negro nos Estados Unidos é ser suicida. As pessoas negras são culpadas por apareceram em tantos necrotérios nesta terra esquecida por Deus.
Outros adotaram uma teoria diferente sobre a culpabilidade dos negros. “A falta de informação em algumas comunidades negras… fez com que falsos rumores de que pessoas negras eram imunes a doença se espalhassem”, segundo o The New York Times. “Ainda que artificial, os rumores iniciais de que os negros seriam imunes ao vírus da Covid-19 deu uma esperança fantasiosa para alguns afro-americanos”, declarou o Los Angeles Sentinel.
“Agora estamos tentando combater essa ideia e espalhar a informação de que a doença pode afetar todos nós”, explicou Cindy Bass, integrante da câmara municipal da Filadélfia. “Figuras influentes nas comunidades negras precisam se unir na tentativa de corrigirmos essa desinformação que está correndo solta, sobre afro-americanos serem imunes ao Covid-19”, declarou Van Jones, comentarista da CNN. Ou, como a ativista Najee Ali de Los Angeles disse ao Los Angeles Times: “Esse mito se espalhou que nem fogo nas redes sociais, mas nunca houve um esforço concentrado de lideranças para dissipar o mito”.
O que, na verdade, se espalhou como fogo foi outro mito: de que a fábula da imunidade das pessoas negras afetou seu comportamento. Onde estão as evidências de que essa ideia foi amplamente admitida por negros? Onde estão as evidências de que isso fez com que pessoas negras não levassem o vírus tão a sério quanto outros grupos levaram? Anedotas servem de evidência sobre comportamentos individuais, não comportamentos de grupo.
Mais uma vez, no que diz respeito aos negros, sempre que os americanos vêem um indivíduo negro agindo de forma auto-destrutiva, eles vêem a população negra agindo de maneira auto-destrutiva. Sempre que os americanos vêem um indivíduo negro desrespeitando a indicação de distanciamento social, eles vêem a população negra desrespeitando a indicação de distanciamento social. Sempre que os americanos vêem um grupo de indivíduos negros se reunindo em uma festa ou funeral, eles vêem todos os americanos negros se reunindo em uma festa ou funeral. Todos os indivíduos negros são, sempre, substitutos da sua raça, nunca indivíduos. Como Barack Obama diz em seu livro “A Origem dos Meus Sonhos”: “apenas a cultura branca tem indivíduos”.
Não devia ser surpresa para ninguém que muitos americanos generalizariam o comportamento de indivíduos negros, alegando que as pessoas negras estão sendo contaminadas e morrendo de Covid-19 de maneira tão numerosa porque eles não estão levando a ameaça a sério ou não estão cumprindo devidamente as recomendações de distanciamento social. “A indicação do distanciamento social parece que não chega em todos, com pessoas ainda jogando basquete, se encontrando para jogar cartas e dormindo fora de casa, dizem prefeitos negros”, relatou o USA Today. “Acho que nossa comunidade não está levando isso tão a sério quanto deveria”, disse Lovely Warren, prefeita de Rochester, cidade em Nova York, e segunda vice-presidente da African American Mayors Association [Associação de Prefeitos Afro-Americanos]. Em vez disso, os afro-americanos adotaram uma “abordagem frouxa do distanciamento social”, segundo Marc Veasey, representante na cidade de Fort Worth, no Texas. Uma enfermeira de Cleveland simplificou: “a ignorância está fazendo com que tenhamos esse rápido aumento do contágio”.
Como eles acreditam que a causa das maiores taxas de contaminação de negros é a sua ignorância e ceticismo, um grupo de pastores e líderes comunitários da região metropolitana do Texas, lançaram recentemente a campanha #WeNeed2Survive [#NósPrecisamosSobreviver], com o objetivo de “prevenir a desinformação”, “educar céticos sobre o distanciamento social”, e “conscientizar sem medo”. Como o diretor Tyler Perry implorou à comunidade negra em um post no Instagram: “Por favor, por favor, por favor, eu imploro que vocês levem isso a sério”.
Não tem nada de errado em implorar para que todos levem esse vírus cruel a sério. Não tem nada de errado em implorar para o seu avô preto, ou filha branca, ou irmã latina, ou pai asiático, ou amigo indígena respeitar a recomendação de distanciamento social. Mas tem tudo de errado na proposta de ensinar todo um grupo racial como se comportar melhor, como solução para as disparidades raciais – como Jerome Adams, chefe operacional do Corpo de Comissionados do Serviço de Saúde Pública dos Estados Undios, fez na última sexta-feira durante uma conferência de imprensa na Casa Branca.
Muitos americanos estão contaminados com a crença de que uma das causas ou a causa que explica as maiores taxas de contágio e morte de pessoas negras é o fato delas não levarem a ameaça viral a sério, enquanto as pessoas brancas têm menores taxas de contágio e morte porque, elas sim, estão levando o Covid-19 a sério.
Mas as evidências apontam na direção oposta. Uma pesquisa nacional realizada pelo Pew Research Center, entre 10 e 16 de março, muito antes das disparidades raciais nas taxas de contágio serem registradas, mostrou que negros (46%) estavam duas vezes mais propensos que brancos (21%) a ver o coronavírus como uma grande ameaça à própria saúde. Ainda, 32% das pessoas negras que responderam a pesquisa consideravam o vírus uma ameaça pequena. O número de pessoas brancas (23%) que não consideravam o coronavírus uma ameaça era levemente maior que o número de negros (21%), segundo a pesquisa.
Dias depois, os institutos Pew e Dynata, realizaram uma pesquisa que, mais uma vez, mostrou que pessoas pretas (59%) estavam significativamente mais preocupadas com sua saúde durante esta pandemia que pessoas brancas (44%). De acordo com a pesquisa, negros estavam mais inclinados que brancos à comprar alimentos não-perecíveis, álcool em gel, produtos de limpeza, papel higiênico e garrafas d’água. Ironicamente, as próprias pessoas que estão chamando pessoas pretas de desinformadas, não tem informações sobre pessoas pretas.
E se os negros estão levando o coronavírus tão a sério quanto os brancos? E se os negros estão levando o coronavírus mais a sério que os brancos há semanas, como sugerem os dados coletados nessas pesquisas? E se, independentemente disso, os negros ainda têm maiores taxas de contágio e morte por Covid-19?
A resposta está audível. Nossas vozes ainda pregam no deserto: Os negros não são culpados pelas disparidades raciais. A culpa é do racismo.
Gosto de imaginar o dia em que finalmente sairemos do deserto, em que nossas vozes antirracistas finalmente serão ouvidas, em que os americanos não vão mais culpar pessoas negras pelas próprias mortes. Gosto de imaginar o dia em que “todos os vales serão levantados, todos os montes e colinas serão aplanados; os terrenos acidentados se tornarão planos, e as escarpas serão niveladas”.
Mas ainda não consigo ver esse dia, porque ainda estou no deserto.
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Ibram X. Kendi é historiador, escritor, professor e diretor do Centro de Pesquisa e Políticas Antirracistas na American University. É uma das principais lideranças antirracistas nos Estados Unidos, autor dos premiados livros “Stamped from the Beginning: The Definitive History of Racist Ideas in America” e “How to Be an Antiracist.”
Texto publicado na revista The Atlantic. Tradução Pê Moreira.

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