Para bagunçar a Bíblia: Yehuda Amichai e a reinvenção da tradição, por Moacir Amâncio

Para bagunçar a Bíblia: Yehuda Amichai e a reinvenção da tradição
Moacir Amâncio
Yehuda Amichai é, de longe, o mais celebrado poeta israelense desde o século XX, até o ponto em que sua importância ganha ares de obviedade. Dentro de seu país, ele é um marco na conquista do idioma hebraico como língua à altura dos desafios expressivos enfrentados na recuperação e criação de vocabulário aberto às sutilezas e à diversidade da literatura, durante a construção do estado judaico na Palestina daquela época. Esse processo ocorreu de modo programático a partir do final do século XIX, com o recrudescimento das perseguições às comunidades judaicas, ataques repetitivos, os pogroms e seus massacres na Europa. Em Israel, os recém-chegados encontravam judeus ali estabelecidos ao longo da história, em migrações intermitentes.
Foi em 1891 que o jornalista e escritor judeu austríaco Theodor Herzl tornou-se correspondente em Paris do jornal Neue Freie Presse, de Viena. Na capital francesa, testemunhou a fúria antissemita movida contra o oficial francês, judeu, Alfred Dreyfus, acusado de alta traição e severamente condenado por isso. Trata-se do histórico Caso Dreyfus, que mobilizou o escritor Émile Zola, autor do panfleto “Eu acuso”, em defesa do oficial sob suspeita. A acusação era inverídica, como se esclareceria mais tarde. Herzl desencadeou o movimento denominado sionismo político, tendo por objetivo a criação de um país onde seu povo estaria a salvo das agressões históricas. Apoiado e também negado pelos judeus, o movimento provocaria ondas migratórias da Europa Central e Oriental, sobretudo, sob a influência das ideias revolucionárias da época – o anarquismo, o comunismo e o laicismo – implantando os modelos básicos do que seria o futuro Estado de Israel. Mas acontecerá em 1948, três anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, a proclamação de Israel como Estado, pela Organização das Nações Unidas (ONU), após a divulgação da calamidade conhecida como Holocausto – ou Shoá, termo hebraico proposto em substituição à discutível e popularizada palavra de tom sacrificial.
De modo convergente, e premonitório, o processo de recuperação do hebraico tivera início no final do século XVIII, na Alemanha, com a chamada Instrução ou Hascalá – Iluminismo em hebraico –, em torno do filósofo Moses Mendelssohn (1729-1786), que se propunha a abrir caminhos para a adaptação dos judeus numa Europa em transformação econômica, social e política. Era preciso, de acordo com os iluministas judeus, como se tornaram conhecidos, romper os limites do gueto e enfrentar as novas condições de vida que se impunham. Passo gigantesco foi a decisão de recuperar o idioma hebraico como língua de expressão judaica em geral, após quase dois mil anos de silêncio, período em que era usado marcadamente na escrita de cunho religioso, pelos rabinos, com exceção para o caso da Ibéria, na passagem do primeiro para o segundo milênio, quando a literatura laica surgiu de modo irrefreável entre os sábios de Israel – filósofos, poetas, gramáticos, homens de negócios, rabinos, místicos, por vezes simultaneamente.
Durante a Idade Média, passagem do primeiro para o segundo milênio, o hebraico viveu uma transformação inovadora, dando origem a uma literatura laica. No ambiente árabe-muçulmano, os judeus adotaram o hebraico na escrita da poesia, considerando-o como sua língua nacional por excelência. Depois da reconquista cristã, a eliminação do poder árabe da Ibéria e, mais tarde, a inquisição, que expulsaria os judeus da região caso não se convertessem ao cristianismo, os intelectuais hebraicos de raízes ibéricas ressurgiriam em outras áreas da Europa: na Holanda, Itália, Inglaterra e no Império Otomano. Mas foi em fins do século XVIII que teve início a ascensão europeia do judaísmo chamado asquenazita, falante do iídiche (a língua judaica de base alemã), com características próprias e um tanto distantes do mundo judaico hispano-português, o chamado sefardita (de Sefarad, Ibéria em hebraico) – sem mencionar o judaísmo médio oriental e norte-africano.
Frise-se, no entanto, que o hebraico nunca deixou de ser praticado na literatura religiosa das comunidades judaicas em geral, do Iêmen à Pérsia, do Egito ao Marrocos, assim como entre os asquenazitas do centro e do leste europeus. Na primeira metade do século XIX, ressurgiria com força a narrativa e a poesia hebraicas, laicas, sob a fina roupagem da linguagem bíblica – o registro da matriz e da expressão hebraico-judaica de todos os tempos. Assim como havia acontecido na Ibéria medieval (Espanha e Portugal), o hebraico saía da Bíblia para a vida atual, com suas necessidades e exigências inéditas, ocasionando não apenas a recuperação do idioma, como também a sua renovação. O iídiche, a língua popular, considerada naquele tempo um idioma vulgar e desprezível, acabaria por se impor como a língua judaica cotidiana do mundo asquenazita.
Escritores passaram a utilizar, na sequência, tanto o hebraico como o iídiche, de acordo com a hora e sua ideologia judaica (a tradição das línguas judaicas, ou seja, vernáculos utilizados pelos judeus, como o alemão, o castelhano, inclusive o português, e, sobretudo, o árabe medieval), ambos escritos com o alfabeto hebraico, adquirindo características próprias. Dessa forma, os filósofos judeus escreviam suas obras. No capítulo oitocentista, o hebraico passaria a representar a problemática dos judeus na Europa Central e Oriental, formando uma literatura de acordo com os modelos europeus e suas tendências, porém, de temática predominantemente judaica: a tensão com o mundo não judaico, a imensa crise de identidade que se instalara desde o século XVIII, a situação da mulher, o operariado, o laicismo, o uso do alemão, do francês e de outras línguas.
A existência pioneira de uma literatura hebraica ocidental é um aspecto da cultura europeia muito negligenciado, o que pode ser comprovado pela existência de poucas traduções dessa produção, sem que haja motivo razoável para isso. Autores como Hayim Nachman Bialik, Micha Berdichevski, Yossef Hayim Brenner, Uri Nissan Gnessin, Avraham Ben Yitzhak e David Vogel fazem parte desse universo hebraico europeu e, portanto, do painel cultural e literário respectivo, embora quase invisível no seu idioma tão histórico quanto ignorado. Desse contexto surgiria o gênio literário chamado Shmuel Yossef Agnon, que receberia o Prêmio Nobel de Literatura de 1966, juntamente com a poeta judia alemã Nelly Sachs. Tais autores, entre vários outros, na prosa e na poesia, absorveram as tendências modernistas do momento (o expressionismo, o imagismo, o surrealismo), injetando-as na corrente cultural hebraica, devendo-se destacar que, fora do hebraísmo, é notável a presença de escritores judeus no modernismo de vários idiomas europeus. Escritores de expressão hebraica chegaram a se transferir para os Estados Unidos, mas o grande foco seria mesmo a Palestina, já sob o impacto da Primeira Guerra Mundial, do fim do Império Otomano, do domínio britânico na região e de outros fatores que precederam o Estado de Israel.
No dia 3 de maio de 1924, em Würzburg, Alemanha, nasceria Ludwig Pfeufer, em uma família judia ortodoxa. Família que, em 1935, sob o regime nazista e às vésperas da Segunda Guerra Mundial, conseguiria migrar para a Palestina, onde Ludwig, na maioridade, trocaria o nome para Yehúda Amichai – na pronúncia corrente em Israel, que inspiraria um poema sobre as diferenças de acento na pronúncia do seu nome: Yehudá (clássico) e Yeúda, popular israelense. Conforme o hábito da época, a adoção de um sobrenome completamente hebraico afastaria a lembrança de humilhações do passado. De modo signficativo, Amichai carrega o sentido de “Meu povo vive”, clara resposta ao passado então recente na Europa. Depois de Hayim Nachman Bialik [1] , Yehuda Amichai passaria a ser considerado o poeta nacional de Israel.
A biografia do poeta está, portanto, inscrita em dois países e dois continentes, assim como sua expressão poética, como demonstra a autora Nili Scharf Gold [2] em estudo biográfico-literário sobre o grande nome internacional da poesia hebraica. Amichai desenvolve intenso diálogo com o passado bíblico, com a Espanha medieval e com a Alemanha natal, na elaboração de um novo universo criativo, que é o hebraico recuperado como literatura respaldada pela condição vernacular. Amichai, que carregou consigo a memória do nazismo, integrou o exército britânico na Segunda Guerra, lutou na Guerra da Independência – deflagrada pelos países árabes após a fundação do Estado judaico em 1948 –, participou da Guerra do Sinai em 1956, da Guerra do Yom Kipur em 1973, ao mesmo tempo em que se tornava professor, atividade exercida durante toda a sua vida profissional, ao lado da literatura. Na trajetória do poeta, o idioma alemão o acompanhou à sombra, assim como as memórias da infância, como a pequena Ruth, amiga do poeta quando garoto, que foi assassinada num campo de extermínio. O hebraico, no entanto, o acompanhou desde a infância ortodoxa, na escola e nas orações em casa e na sinagoga, o que, é claro, propiciou a adaptação a Israel e ao idioma que aos trancos transforma-se numa das línguas faladas e escritas da humanidade, após tanto tempo de silêncio, fato único na história até o momento. Israel também é isso: resultado da reunião de judeus procedentes de cem países, com idiomas e culturas próprias, dando origem a um país tão reduzido quanto matizado.
Foi a partir da leitura de uma antologia de poemas ingleses, quando servia no Exército Britânico, que Amichai despertou para a poesia. O modernismo foi absorvido de forma direta, portanto, e também a partir dos autores hebraicos do  início do século XX. Acrescente-se a isso a participação de Amichai em um grupo de vanguarda no qual pontificou outro grande poeta israelense, Natan Zach, como professor e pensador da literatura em Israel, formulador da ideia do “poema correto”, livre de excessos emocionais e derramamentos estilísticos. Há certos pontos de contato entre o “poema correto” de Zach e a rigorosa “Procura da poesia”, de Carlos Drummond de Andrade, em sintonia com o momento. Há muitos exemplos específicos dessa tendência estilística em Amichai, o que se verifica, de modo geral, no uso que faz do idioma ao falar, de maneira coloquial, dos mais diversos temas de sua trajetória.
O divino e o humano se misturam, como é possível verificar no poema “Jacó e o anjo”, incluído neste livro (p. 71), expressão de certa síntese de humanidade contemporânea que ele busca em toda a sua obra, formada por mais de vinte volumes em verso e prosa. Amichai recebeu os grandes prêmios literários em seu país, foi aclamado por intelectuais do porte de Octavio Paz e hoje pode ser lido em mais de quarenta idiomas.
Embora seja relativamente conhecido no Brasil, objeto de estudos universitários, são poucos e esparsos seus poemas publicados no país. A saída tem sido as traduções para o inglês e o francês, quando se trata de divulgação além do público que tem acesso ao hebraico. Nesta seleção não foram aplicados critérios didáticos convencionais, como sequência histórica rigorosa, classificações estilísticas e fases do escritor – também romancista e contista. Afinal, como mostra Yehuda Amichai, antes de nascer e após a morte o ser humano está no campo da totalidade possível. Ou seja, as convenções de tempo e espaço dão lugar à eternidade intangível, mas presente nos poemas. Além disso, Amichai pode ser lido a partir de qualquer um de seus textos, pois ali o leitor certamente encontrará todo o poeta possível.
A erudição especificamente hebraica, inclusive bíblica, está nos originais, nos jogos de palavras, em sugestões sutis que, de algum modo, permeiam a tradução, assim como o diálogo com a poesia de seu tempo em todo o mundo. Mas, como se verá, trata-se de uma poesia marcadamente israelense, judaica e universal, pela história e condição do escritor, do poeta de Jerusalém, onde tive a alegria de conhecê-lo no início dos anos 1980 e lugar que ele recria ao longo da obra. Como atesta nos versos a seguir – assim como em outros poemas seus –, Amichai não deixa esquecer que escreveu num dos umbigos do mundo, em seu tempo agora sem tempo que se refaz nas possibilidades da leitura, partilhando conosco o seu propósito de refazer o mundo a partir de sua casa e lançando mão de acento próprio na busca do universal. Cada leitor buscará também o seu próprio Yehuda Amichai, que ainda circula em sua cidade-mundo:
Neste dia claro de outono
eu fundo Jerusalém de novo.
Dos pergaminhos da fundação
voam pássaros, pensamentos.
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Texto publicado na apresentação do livro Terra e Paz – Antologia poética, lançado pela Bazar do Tempo.
Moacir Amâncio (1949) é  jornalista, ensaísta, poeta, professor e doutor em Língua hebraica e Literatura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP). Autor de diversos livros de poesia, entre eles “Do objeto útil”, vencedor do Prêmio Jabuti em 1993, e de “Samaritanos e outros filhos de Israel (1997), livro de reportagem e crônicas, e “Dois palhaços e uma alcachofra” (2001), de ensaios.
Notas:
[1] Hayim Nachman Bialik (Rússia, 1873-Áustria, 1934), poeta que deu início à modernização da poesia hebraica.
[2] Nili Sharf Gold, Yehuda Amichai – The Making of Israel’s National Poet. Waltham: Brandeis University Press, 2008.

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