“O momento certo não é o da política, é o da vida das mulheres. A cada minuto, uma mulher faz aborto no Brasil.” (Debora Diniz)

Usada pelas mulheres para limpar e cuidar da saúde menstrual, a arruda foi a planta escolhida para simbolizar a luta pela descriminalização do aborto no Brasil. Nesta semana decisiva, em que a ministra Rosa Weber colocou em pauta no STF uma ação que pode descriminalizar o aborto até 12 semanas de gestação, a antropóloga Debora Diniz tatuou a planta no braço. Junto com Rebeca Mendes, fundadora do Projeto Vivas, iniciativa conjunta com a Anis Instituto de Bioética, e outras mulheres que estão na linha de frente das batalha que começou em 2018, quando a ação foi apresentada ao Supremo. O aborto já é previsto em lei no país nos casos de estupro, anencelalia e de risco de vida para a gestante.

Nesta conversa exclusiva com a Bazar do Tempo, Debora Diniz diz que as mulheres não devem temer possíveis retrocessos e que não há outra alternativa se não continuar resistindo ao patriarcado e exigindo a descriminalização do aborto – que, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto e Raça, afeta muito mais as mulheres negras e pardas no Brasil. Os dados foram publicados na Revista Ciência e Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) em artigo assinado por Debora Diniz, Marcelo Medeiros, Pedro H. G. Ferreira de Souza e Emanuelle Goés e podem ser lidos aqui:

CIENCIAESAUDECOLETIVA.COM.BR ▸

 

Durante a campanha eleitoral, muitas feministas evitaram o debate a favor do aborto, temendo uma derrota nas urnas da campanha progressista. Agora que a ministra Rosa Weber colocou a votação em pauta no STF, muitas discutem sobre um possível backlash, achando que a causa não sairá vitoriosa. Você está otimista? O que pode dizer sobre isso? Existe um momento e um contexto certos para levar essa disputa adiante?

Eu queria pensar e estranhar o conceito de backlash, a ideia de que se a gente faz algo, vai vir um retrocesso, quase um castigo anunciado. Nós já vivemos sob o patriarcado, menininhas já entram em porta-malas de carro para um aborto, previsto em lei, por um estupro. O que é backlash se não a introjeção do patriarcado em nós? Há situação pior do que a que já estamos, que é a criminalização total? Mas a criminalização por exceções, como é o estupro ou risco de vida, nos mostra que as mulheres enfrentam barreiras assustadoras. ou seja, nós vivemos no limite de uma crimininalização total. A minha inquietação sobre a sua pergunta “não faça isso, porque o castigo vai ser maior”, é sobre a operação de um patriarcado racista: às meninas e mulheres negras não é permitido a possibilidade de imaginar um mundo diferente, porque senão vai ser pior ainda? Então eu não me qualificaria como otimista, mas como uma pessoa com um dever de persistência, de resiliência porque não resta outra opção. O patriarcado racista nos antecede, nos acompanha, inclusive coloniza nossas possibilidades de futuro sobre uma transformação.

O momento certo não é o da política, é o da vida das mulheres. A cada minuto, uma mulher faz aborto no Brasil. São 500 mil mulheres por ano. Esse é o momento certo. O momento certo não é o momento da Corte, que nós esperamos há cinco anos;  desde 1940 as mulheres lutam pela descriminalização no Brasil. O momento certo é o momento vivido por cada mulher, uma mulher ajuda a outra. Não é o momento do político, jamais vai ser, ainda mais num regime autoritário, e depois das consequências de todas as políticas anti-gênero do governo anterior.

Esta semana foi divulgada a Pesquisa Nacional de Aborto e Raça cujos dados mostram que a probabilidade de uma mulher negra vir a fazer aborto é 46% maior que a de uma mulher branca. Ou seja, a cada dez interrupções realizadas por mulheres brancas, outras 15 terão sido feitas por aquelas que se declaram pretas e pardas. Na prática, os dados revelam que as mulheres negras estão mais sujeitas aos riscos da criminalização do aborto. Você poderia comentar esses dados?

Esses dados só comprovam o que já sabíamos, que a criminalização do aborto tem um impacto perverso nas mulheres mais vulneráveis, que estão nas regiões mais vulneráveis do Brasil, no Norte e Nordeste, as que são atravessadas pelas desigualdades históricas do país. São desde sempre as desigualdades sociais. A crimininalização do aborto é uma operação do patriarcado racista brasileiro. São mulheres e meninas negras e pardas que têm maior risco de morrer.

Complementando a pergunta anterior, como a campanha crescente pela indicação de uma mulher negra ao STF pode favorecer as pautas dessa parte da população, assim como, claro, uma maior diversidade na Justiça do país?

A diversidade da Justiça é a diversidade da capacidade de imaginar o justo. E pensar o justo sob diferentes perspectivas. A homogeneidade do Judiciário brasileiro faz com que haja uma desimaginação sobre a necessidade da vida. Então, aqui a Justiça com venda é uma Justiça incapaz de imaginar, porque os regimes de participação são provocações de uma outra forma de imaginar como as injustiças atravessam o vivido. Não tenho a menor dúvida de que precisamos de mulheres negras em todas as esferas de poder e operação do Judiciário, em particular na Suprema Corte.

Como o uso de símbolos como a arruda e o lenço verde, além da difusão de filmes e livros sobre o aborto, e mesmo as notícias de países da América Latina que já promoveram a descriminalização podem fortalecer as campanhas das mulheres a favor do aborto seguro no Brasil?

São mecanismos de aproximação, de conexão, mas também de permitir a imaginação. O que o patriarcado racista faz é desimaginar sobre as dores das mulheres, sobre o sofrimento das mulheres negras no Brasil, desde peças ficcionais a filmes como “Incompatível com a vida”, a campanhas. Trazer um elemento do vivido como é a arruda, de um conhecimento ancestral das mulheres, as negras em particular, é dizer: olha como faz parte da vida da mulher comum brasileira.

Sobre a legalização do aborto na França, veja o livro Uma lei para a história, de Simone Veil, com postácio de Débora Diniz.

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