Três poemas de João Cabral de Mello Neto
Ramon Nunes Mello
O poeta João Cabral de Melo Neto (6 de janeiro de 1920 – 9 de outubro de 1999) será sempre celebrado como o “arquiteto das palavras”, devido ao rigor de seu trabalho linguístico. Reler, neste momento, a obra de João Cabral me faz reviver as aulas do mestrado na faculdade de Letras da UFRJ, onde passei a conhecer mais e, assim, apreciar mais intensamente a sua poesia, a partir das leituras de Eucanaã Ferraz, em companhia de Rafaela Cardeal e Bruno Cosentino, leitores cabralinos apaixonados.
Para o centenário do poeta, seleciono três poemas de sua lírica amorosa e de seus versos engajados: “O fim do mundo” (“O Engenheiro”, 1945), tão lúcido e atual em tempos de agora; o trecho IV (Discurso do Capibaribe) do poema “O cão sem plumas” (“O cão sem plumas”, 1950), em que a cidade é atravessada pelo rio Capibaribe, ampliando as margens da linguagem; e um trecho do poema “Os três mal-amados” (publicado em 1943 na Revista do Brasil), com um recorte das falas inspiradas e obsessivas de Joaquim.
Ao fim de “Os três mal-amados”, acrescento o link para leitura realizada por José Paes de Lira, o Lirinha, que se tornou antológica, desde apresentações em êxtase nos shows do Cordel do Fogo Encantado.
O FIM DO MUNDO
No fim de um mundo melancólico os homens leem
jornais.
Homens indiferentes a comer laranjas que ardem como o sol.
Me deram uma maça para lembrar a morte.
Sei que cidades telegrafam pedindo querosene.
O véu que olhei voar caiu no deserto. O poema final ninguém
escreverá desse mundo particular de doze horas.
Em vez de juízo final a mim
me preocupa o sonho final.
O CÃO SEM PLUMAS
IV
(Discurso do Capibaribe)
Aquele rio está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.
Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.
O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.
Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.
Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.
Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.
E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geleias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.
Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.
Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).
OS TRÊS MAL AMADOS
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade,
minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis
onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de
gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O
amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas,
minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as
citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unha,
canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no
banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o
pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca
engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava
na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo
sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré.
Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros
regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana
cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento
de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão me asseguram. Comeu o futuro grande atleta, o futuro
grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu
meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
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No link abaixo, a leitura de Os três mal amados por José Paes de Lira, Lirinha, no show de O Cordel do Fogo Encantado:
https://www.youtube.com/watch?v=42SSxH3wSsU
Ramon Nunes Mello é poeta, escritor, jornalista e ativista dos Direitos Humanos. Formado em jornalismo e em Artes Dramáticas, é mestre em Literatura (Poesia Brasileira) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autor dos livros de poemas Vinis mofados (2009); Poemas tirados de notícias de jornal (2011) e Há um mar no fundo de cada sonho (2016). Organizou as edições Escolhas (2009), autobiografia intelectual de Heloisa Buarque de Hollanda, com quem coorganizou Enter, antologia digital (2009) e na Bazar do Tempo, Tente entender o que tento dizer (2018). É curador da obra dos poetas Rodrigo de Souza Leão (1965-2009) e Adalgisa Nery (1905-1980).