Italo Campofiorito: uma defesa afetiva da história, por Luiz Camillo Osorio

Italo Campofiorito: uma defesa afetiva da história
Luiz Camillo Osorio
Italo Campofiorito (1933-2020) foi testemunha direta da história cultural brasileira no pós-guerra. Poucos viveram tão de perto as promessas e as decepções de uma geração afirmativamente condenada ao moderno. Filho de Quirino e Hilda Campofiorito, acompanhou do berço debates acirrados entre artistas e intelectuais. Nasceu em Paris, lá estudou anos depois História da Arte e foi ali que encontrou sua vocação profissional – fazer pontes entre o mundo das ideias e a intervenção política. Sempre falava das aulas de Chastel na Sorbonne, das conversas com Mario Carneiro e do quanto, nesse período parisiense, se deu conta do vínculo inexorável entre arte, vida e cidade. História da cidade como história da arte.
Trabalhou ao lado de Oscar Niemeyer, Lucio Costa e Darci Ribeiro. Tinha uma relação afetuosa e produtiva com os três. Quando Le Corbusier veio conhecer Brasília, coube ao Italo acompanhá-lo. Sua foto na pista molhada do aeroporto, andando ao lado do arquiteto francês, revela uma sem cerimônia típica de quem estava acostumado às decisões – para usar o jargão futebolístico de quem não se intimida nos grandes momentos. Seu relato da ocasião é memorável pela simplicidade. Le Corbusier passou um bom tempo com seu caderninho em punho desenhando pela cidade e sua primeira frase foi: “como é feminina!”.

Essa observação foi determinante para a leitura original que o próprio Italo fará da arquitetura brasileira e de seu lugar na história do modernismo arquitetônico. Segundo ele, até o projeto da Pampulha de Niemeyer, fizemos uma arquitetura moderna no Brasil, depois dali – e muito especialmente com Brasília – começou a grande aventura de uma arquitetura brasileira moderna. A partir dali passaria a haver uma contribuição de fato brasileira no escopo de uma história moderna da arquitetura. Foi se constituindo uma arquitetura plasticamente insinuante, acolhedora e integrada ao seu entorno. Italo era apaixonado pelas super quadras, pela articulação original ali proposta entre intimidade e sociabilidade.
Diria que uma das maiores contribuições do Italo tenha sido o desenvolvimento de um modo oxigenado de juntar urbanismo e patrimônio, a vontade experimental do modernismo com a defesa afetiva da história, a necessidade de construir com o desejo de habitar. No caso de Brasília, ele concebeu um novo modelo de tombamento, preservando as escalas e não os imóveis, defendendo a convivência das escalas monumental, gregária, residencial e bucólica.
Depois de ter vivido tão diretamente a construção de Brasília, a invenção da UNB e o baque do golpe militar, sua outra contribuição decisiva dar-se-á na retomada democrática, com Darcy Ribeiro e Brizola, quando vai conduzir diretamente o Patrimônio e criar o projeto do corredor cultural. Sua experiência modernista de Brasília e sua paixão pela vida das cidades tiveram aí uma nova composição. Para dar uma ideia do que estava em jogo nesse projeto, reproduzo uma passagem dele falando sobre o centro do Rio: “a nossa Biblioteca Nacional é um dos prédios mais monstruosos que eu conheço no mundo, mas eu me bateria para que não a tirassem de lá. Ela faz parte da minha vida. No Centro do Rio, o Teatro Municipal é gracioso; a Escola de Belas-Artes é nobre; o Tribunal de Justiça é um horror e a Biblioteca é um desastre. É feia, uma fortaleza verde-oliva, mas eu amo. Por esta razão, acho que é preciso levar à Baixada, levar as zonas pobres do mundo, que vão ser incontáveis por incontáveis séculos, uma maneira de fazer corredores culturais. E aprender a gostar dos lugares, de tal modo que eles pareçam bonitos para quem ama. Assim já estou falando de patrimônio. Quer dizer, o urbanismo que é impraticável leva ao patrimônio.”
Não poderia deixar de mencionar o MAC-Niterói, onde convivemos muito de perto, ele como Diretor-Geral e eu como Diretor de Teoria e Pesquisa. Foi ele que me levou para lá, por indicação de nosso amigo comum Eduardo Jardim. Ali aprendi, com ele, a admirar imensamente aquele prédio inusitado. Quem gosta de museu e de gente não pode desmerecer o disco voador e sua capacidade de seduzir, convidar para entrar e pôr o visitante em contato com o maravilhamento do dentro e do fora. Como escreveu Antonio Cícero no livro de visitas do museu, e eu cito de memória, “até o MAC existir o melhor de Niterói era a vista do Rio, depois dele surgir naquela encosta, o melhor do Rio é ser visto de Niterói”.
Uma última história de bastidores. Na comemoração dos 500 anos do Brasil resolvemos convidar dois artistas “luso-brasileiros” para ocuparem o salão central e a varanda – Artur Barrio e Antonio Manuel. Foram comissionadas obras para lidar e enfrentar aquela arquitetura impositiva. Quando chegaram as propostas, Italo me chamou no canto e disse: vamos fazer, é super importante, mas temos que combinar com a Anna Maria Niemeyer para ela não deixar o Oscar pôr os pés aqui. E eu vou para a Grécia para ficar longe do telefone! Assim foi: Barrio e Antonio fizeram a meu ver uma das mais importantes exposições daquele espaço, o Italo deslumbrou-se com a Grécia e o Oscar não viu nada. Se visse, gostaria. O Italo tinha uma das cabeças mais livres e agudas que conheci. Vai fazer uma falta danada.
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Luiz Camillo Osorio é professor associado do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, pesquisador do CNPQ e curador do Instituto PIPA. Entre 2009 e 2015 foi Curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e em 2015 foi o curador do pavilhão brasileiro na Bienal de Veneza. É autor dos  livros “Flavio de Carvalho”  (Cosac&Naify, 2000); “Abraham Palatnik” (Cosac&Naify, 2004); “Razões da crítica” (Zahar, 2005), e “Olhar à margem” (SESI-SP e Cosac&Naify, 2016).

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