"Desde quando os brancos morrem como moscas?", por Lionel Manga

“Desde quando os brancos morrem como moscas?”
por Lionel Manga
Irão os parisienses amanhã cedo a Rungis gastar com produtos frescos sem ter um furtivo arrepio retrospectivo, sabendo que um hangar ali foi requerido para servir provisoriamente de necrotério? O cruzeiro letal do Covid-19 sobre o teatro do frenesi provedor não para de espalhar banzé por todo canto. No que concerne à origem do agente patógeno, um Nobel ligou recentemente a um incidente de manipulação genética. os estudos sobre a etiologia da infecção se sucedem e se contradizem.
Pesquisadores evocam doravante a pista de uma fixação deficiente do oxigênio pela hemoglobina para explicar a dificuldade respiratória: o vírus não atacaria diretamente os pulmões. Empirismo e cientificismo pelejam em torno ao uso da cloroquina, pior que trapeiros.
Parece que estamos no pátio de um jardim de infância. Com estouros de vozes ásperas e um campo de tinhosos que não largam o osso do dogma positivista, contra um elétron livre, alto e colorido, que tira-os do jogo o tempo todo. Os metodistas, eu diria, sobre os quais pairam suspeitas de conivência com o lobby invasor e ativo da Big Pharma, uma vez que estão em Sursis pelo sufocamento até a morte de várias dezenas de milhares de vidas no planeta. Na torre de marfim e no campo das ciências humanas, as controvérsias semânticas reaparecem: crise ou catástrofe, como então designar propriamente um evento tão disruptivo?
De tal maneira que o WTI (o índice de referência do bruto texano) mergulhou numa zona negativa. Com estoques consideráveis de petróleo extraído do subsolo em suas mãos, os corretores estão prontos a pagar para se livrar deles, com a demanda repentinamente decrescida pelo confinamento e as capacidades de estocagem estando, por hora, saturadas em Cushing (Oklahoma). A rotina da quebra não agiu suficientemente a tempo do breque provocado pelo confinamento na atividade econômica mundial e, particularmente, o setor do transporte atingido em pleno chicote. Será permitido rir de uma tal inércia/inépcia?
AMALA
Como só ele, o Covid-19 suscita “barulho” – no sentido preciso da teoria da informação. Visto de Douala, o quadro traz à tona muita coisa inefável. O espetáculo visível em todo o mundo dos sistemas de saúde colapsados na Itália, França, Estados Unidos e Inglaterra, deixa entre nós um bom número de atordoos, numa Zona Incômoda. Quem em qualquer tempo imaginou que um tal desastre podia se produzir ali, na Zona Cômoda? Na Faustolândia? Lá onde vai se tratar a elite vintage, que não encontra hospitais confiáveis aos seus olhos nesta terra?
Esta revelação escabrosa incinera alguns estoques de certezas bem secos e arde bastante dentro da multidão de armários interiores. Os necrotérios transbordando em Veneza pela inundação de macabeus? A mítica Cidade dos Doges? Quem teria acreditado nisso em Douala, em Brazzaville ou em Libreville? Quase ninguém, de tanto que a Europa encarna a perfeição da organização, o senso de previsão, o rigor, logo tudo o que falta dramaticamente sob nossos céus pós-coloniais paralisados pelo que foi erigido a uma norma do fazer.
Os “geniais” Europeus de joelhos ou quase, empurrados assim na sua suficiência canônica? Uma deflagração tão enorme quanto sem precedentes sacode nesses dias os imaginários, o coletivo e os indivíduos, onde o verbo “PARTIR” pisca o olho o tempo todo, à imagem da cruz verde by night de uma farmácia. Aquele fulano, comentando essa atualidade escabrosa enquanto toma uma cerveja na companhia de seus camaradas de intemperança etílica, se surpreende então da hecatombe, florido a seu modo, e não desprovido de uma ironia estridente: “Desde quando os Brancos morrem como moscas, gente?”. Sem supor que assim ele ecoa Michel Serres erigindo o estado sanitário da humanidade atual em linha de partilha absolutamente radical: “Sob as baixas latitudes, eis aqui os mortais a quem a tradição reserva o nobre nome de homens; nas altas, os imortais que não cessam de mamar no néctar dos deuses”.(1)
O uso homologado pelos cronistas quer, com efeito, que tanto sob as chamadas “baixas latitudes”, quanto na vasta Zona Incômoda, aqui ou lá, se morra frequentemente em grandes carregamentos.. Não é? Diante desse maciço inédito, impensável ainda ontem de caixões se empilhando dia após dia na Faustolândia, atordoado(a)s no ponto mais alto estão, neste lado infame do mundo, os/as Espertos(as) que o confinamento, mesmo em modo semi, mergulha numa espessa e viscosa miséria financeira. Minha língua banto, o Ewondo, reserva um vocábulo aliás eufônico para a experiência universal do inefável e do temor naquilo que ele pode produzir de congelante: amala.
Mais que uma palavra que conota um conteúdo do real basicamente negativo, desestabilizante, amala assinala a irrupção nesse campo de uma potente radiação entrópica. Ela constituía recentemente e  de fato uma demarcação / descontinuidade temporal, abrindo para/impondo uma atualização imperativa dos termos estabelecidos da harmonia social perturbada de cima abaixo por seu fato. Entre os arrogantes faustianos? Amala castigando a uma tal escala? Damned! Justamente invertendo o que? A vizinhança norte da latitude zero, os Bagunçados (2) verde-vermelho-amarelo (cores da bandeira camaronesa) não retornam dessa culpa maior sobrevinda na usual soberba dos Brancos. Geralmente discreta em tempos de paz, a morte está na moda supostamente inesperada e invade o espaço público.

DESMISTIFICAÇÃO POPULAR
Colossal neste dia é a biblioteca que denuncia a perversidade histórica do capitalismo. Ainda mais na sua versão financeira e paleozoica, inaugurada pelo primeiro choque petroleiro no outono de 1973, com a entrada de dólares que a FED (Reserva Federal dos Estados Unidos) imprime para que os países importadores de petróleo bruto do Oriente Médio, pegos pelo pescoço e desprevenidos, honram a fatura multiplicada por quatro sem prazo e expressa em dólares que retornariam nos bancos americanos. Um sutil torneio de passa-passa possível graças ao direito de senhoriagem do dólar.
Mediando numerosas obras nem sempre traduzidas em francês (ou em português), os historiadores americanos situam então o hall de entrada dessa saga moderna do lucro nos brancos campos de algodão e a última temporada da escravidão no Sul dos futuros Estados Unidos. Corpos devotados por definição da “whiping machine” (3) ao labor, os escravos foram titularizados na ocasião de grandes manobras financeiras sob a forma de hipoteca, por seus proprietários e protoespeculadores da América Nascente. Não se sabe ainda tudo e pontos cegos subsistem, sabiamente confinados – que a curiosidade se mistura com essas obscuridades persistentes na narração histórica com o aval desses tempos que foram chamados com ênfase de modernos, recentemente…
Marx, Weber & cia fizeram uma bolha dessa sequência histórica mas crucial. O algodão, na segunda metade do século XIX, tinha, com efeito, a importância do petróleo ontem e dos dados hoje na economia mundial. A classe média europeia que se vestia até então com linho, um tecido grosseiro, se inflama por essa nova matéria, mais suave. Essa paixão constituiu uma enorme saída para os industriais do setor têxtil impulsionado pela invenção da máquina a vapor. A abertura das minas de carvão, onde trabalham até a morte crianças, lança o ciclo da entropia que se prossegue. Charles Dickens passou por lá com sua pena. Manchester e Liverpool são procedentes desse formidável boom algodoeiro. Os Fab Four e todo o rock inglês teriam talvez alguma consciência desses dados históricos? O mundo do futebol profissional? And she’s buying a stairway to heaven…
Era preciso então achar um uso frutífero a esse supranumerário que se acumulava sem contrapartida na economia real e culpado, por consequência, de inflação nas alturas no início dos anos 1970. Portanto de perda de valor monetário para os tesoureiros cujas economias se derretem então como manteiga no sol. Essa alta tendencial dos preços alimenta o descontentamento social se os salários não a seguem. Uma palavra inicia a finança tal como a conhecemos doravante: swap. Esse primeiro instrumento de mercado da nova era monetária, transferível a terceiros, simples e relativamente líquida, tem como função proteger os operadores econômicos contra o risco de perda ligado ao regime de câmbios flutuantes, desde que a administração Nixon pôs unilateralmente fim ao sistema fundado no padrão-ouro, dia 15 de agosto de 1971.
Os investidores institucionais também chamados Zinzins fazem assim sua aparição no jargão, ao lado do conceito de “hot money” e o dinheiro passa a contar daquela estação, uma mercadoria por si mesma, como um sabonete, o painel publicitário ajudando. O bestiário dos “futuros” apresenta doravante tanta diversidade quanto a vitrine empalhada de um caçador. O mercado de “assets under management” [ações sob gestão] deveria avizinhar a bagatela de 100 trilhões de dólares em 2020. Essa cifra nada modesta remete a uma realidade objetiva/tangível? Insensato, não diz essencialmente o fenomenal inchaço desta esfera financeira destacada as such da economia real, mas a afetando via estrutura de taxas de lucros representando o papel de correia de transmissão?
Onde diabos se encontravam então as “consciências cultivadas” quando seus Estados se viraram rumo aos mercados para emprestar, no lugar dos bancos centrais? Onde tinham eles/elas então os olhos e os ouvidos quando os que tiveram benefício desde então entregaram a dívida soberana às manobras dos Malucos? nas delícias organolépticas da Nutella? Na Guerra nas Estrelas? Nas aventuras de tirar o fôlego de Indiana Jones? Na fornida zona X da web? Onde estavam os contribuintes enquanto partes acionistas até mesmo individuais, a princípio certas de poder constituir um corpo/formar um sujeito coletivo? Onde estavam então os sindicatos, corpos constituídos, eles, a princípio responsáveis de vigiar o grão? Que compreenderam mesmo em suas disposições financeiras os partidários entusiastas do “Sim” no tratado de Maastricht, endossando essa sujeição institucional de Estados soberanos à racionalidade acanhada e orientada dos mercados?
As mutações contemporâneas do capitalismo tiveram campo livre em quatro décadas para fazer prosperar uma miragem tão cativante quanto alienante, sem encontrar obstáculo particular no caminho. Sob a forma, por exemplo, de programas transversais de desmistificação popular que tivessem sido concebidas para instruir as massas sobre essas transformações e lhes colocar então o dedo no ouvido através desse mediador. O integral dos comportamentos individuais não esclarecidos dos Faustianos e Faustianas terá favorecido o status quo na Zona das Comodidades. Há ainda tempo para que as esquerdas europeias mordam até o sangue os seus dedos e chacoalhem um torpor patético, que assusta a vista ao renascimento dos populismos de todo tipo sobre o qual os tribunos um pouco morenos podem surfar a gosto, num pastiche desavergonhado da democracia.
VÍCIOS
Os fetichistas zelosos da propaganda não se fizeram de rogados e arregaçaram as mangas para prometer felicidade através da saciação de necessidades deliberadamente suscitadas. Do tipo “você sonhou e nós realizamos” do walkman da Sony, símbolo excelente do individualismo e das inclinações de massa organizadas. A injunção de consumir espirala o espaço público em 360 graus e cerca o cliente. Comprar é ser e vice-versa. Identificada tanto quanto largamente condenada pelos sociólogos, essa compulsão atiçada de mil e uma maneiras por uma vasta exposição de cartazes nos polígonos urbanos se porta entretanto bem nas “sociedades intensamente midiatizadas”. Ela alimenta o cofrinho dos suculentos dividendos derramados aos acionistas das empresas do CAC 40 e os outros não costeados que não contribuem menos para o cruel manejo do lucro para tanto.
Ilustrando-se por taxas de abstenção cada vez mais importantes, a despolitização e uma fração consistente das cidadãs e cidadãos terá todo esse tempo feito par com uma adesão massiva à vacuidade consumista. Apesar do alto custo, o sucesso monstruoso dos tênis made by Nike nas ruas weedificadas dos territórios sobrecarregados/corroídos pela precariedade e a desesperança em testemunho ou aquele botão com o número 501 gravado, na  descoladíssima calça Levis..
Longa é a lista vermelha elegante desses vícios orquestrados pela triunfante Futilidade e testemunha de uma entrega coletiva a seus slogans provocantes, se você não tem isso ou aquilo, você não existe. Sob risco de invalidação estrondosa das grandes narrativas que estruturaram os dois últimos séculos e de erguer em potencia inexorável formas variadas de “solidão coletiva (4)”, assim como de distrações úteis/propícias à configuração de um golpe do programa neoliberal, debaixo do nariz de suas vítimas quase consensuais.
Elas não diziam nada há quarenta anos e houve o acesso de febre Coletes Amarelos para apitar o fim da hibernação e colocar na órbita política a conjunção das santas iras. “É uma guerra, uma guerra que se deflagra em todos os frontes e que se intensifica desde que ela é, de agora em diante, contra tudo o que parecia impossível de extrair do valor”, resume a quarta capa do último livro de Annie Lebrun, no qual sua elegante lucidez e sua fria ferocidade se volta para o “novo enfeiamento do mundo”, direta, sem meias palavras. Não se poderia ter antecipado melhor que isso, a irrupção do Covid-19.
Não há melhor abolição de todo horizonte e manifestação de seu niilismo telúrico que a demolição do sistema de saúde de um país pela lógica do rendimento a curto prazo. A vida tem, no fundo, um preço? Não mais que a beleza enquanto tal não é calculável em dólares ou Yens. Eu vejo daqui sorrirem pelos cantos os seguradores que gerem o risco das firmas no centro da atividade econômica voltada para a maximização a qualquer preço do lucro. Os cat bonds [pulos de gato] endossados às antecipações de desastres naturais flambam sobre os mercados? É uma prova pelo absurdo da asserção acima e da pertinência dos dizeres como o da senhora Annie Lebrun, tão fina e sem complacência nenhuma com essa violência do dinheiro que “trabalha para liquidar nossa noite sensível, para nos fazer esquecer o essencial, o que não tem preço”.
Enfeiadores rima com Investidores, e esse enésimo produto de capa dedicado à ocorrência ao risco securitário mostra até onde pode forçar o cinismo do capital contemporâneo em sua lógica do “profit without production” [lucro sem produção], motor da presente sequência do processo de acumulação. Da fronteira confusa entre o inerte e o vivo vindo (5), um invisível assaltando estourou o abcesso e os humores pútridos se espalhando no ar: obrigado a colocar máscaras para respirar sem se sufocar, tanto o fedor assim espalhado é atroz, insuportável sem uma proteção adequada.
Você não queria ouvir, nem ver? Você tratava aqueles e aquelas que soam incansavelmente o alarme já de longa data dos doidões organizados? Ora, respirem fundo então, agora, senhoras e senhores, esse gostoso aroma que sobe  dos caixões alinhados num entreposto frigorífico de Rungis, dos necrotérios de Veneza e de Nova York, inalem sem moderação, é gratuito. Aí está o preço do resgate na moda CQFD de seus vícios consumistas de longo curso, assim como o troco lamentável das instâncias do Lucro e das miragens rutilantes entregues pelo Ócio.
LIGHT AS LIGHT
A nova presidente da Comissão europeia, a alemã aristocrata Ursula von Layen, tem a partir de agora a matéria em seus despachos para fazer um processo argumentado àqueles que colocam em perigo o modus vivendi europeu que ela se esforça longamente para proteger. Quando o fundo do pensamento é largado, fruído lá fora, um retropedal não serve estritamente para nada. Sua saída nesse tema mostrou a profundeza da cegueira na qual o comum dos Faustianos brinca no Norte e onde vai se esconder a pulsão de dobra sobre um entre-si cômodo, sem Outro decretado assim dissimuladamente como fonte de mal estar, persona non grata.
Depois, acontece que numa categoria e num formato diferentes, um totalmente Outro ainda é levado então em esfregão planetário para o teatro das vaidades de provedor com uma virulência assustadora. Um golpe tão viral quanto monumental perpetrado à pretensão faustiana. O tempo do inelutável descarrilamento sem cessar repisado e de parar a caravana da entropia capitalista sobre a terra terá chegado? Com o Covid-19, essa civilização do Detrimento chegou a um ponto em que as narrativas dos Outros, reduzidas ao silêncio recente pela hegemonia dos terceiros-excluídos, assistiam ao colapso de uma sociedade dos valores que funda sua persistência através do tempo (6). Situação imputável, nesses contextos, a uma série/soma de infrações aos preceitos que fundam uma ordem cósmica e que fazem que as coisas se ergam. Várias línguas bantos, talvez todas, dizem serenidade com o mesmo vocábulo.
Esta fusão/mutualidade lexical edifica melhor que um grosso tratado filosófico de 1000 páginas sobre uma objetiva inseparabilidade, quando se trata de seus estados, entre o corpo e o espírito. Quando o hospital se encontra lotado, com falta de leitos para reanimação, os cuidadores acuados e constrangidos a triar entre quem deixar viver e quem deixar morrer, fica claro que alguma coisa soa e isso requer uma reparação que não seja superficial, mas por completo. A reclamação que se eleva acima do “barulho” para um outro mundo no dia de depois é louvável em si, para o que ela visa.
Mas isso não será suficiente para fazer vir esse “novo mundo”. Não seria  senão porque o capitalismo entrado numa fase de estabilização sem precedentes (7), é doravante uma máquina inteligente que sabe aprender com os acidentes maquiando-os e fortalece a todos. Este não fará exceção. Ele não está pronto sob esta luz para se enfraquecer em suas contradições e jogar a esponja. Para tanto, essa estase evidenciou o peso considerável da demanda e portanto do consumo que pode se tornar a alavanca para travar as rotinas dessa Máquina de Dinheiro cruel.
Mediando uma faísca de desistências orientadas/convergentes, agindo em grãos de areia infiltrados nas rodas das histeresis, as miríades remontadas contra essa crueldade alcançam ali uma pista de ação plausível. Reduzindo os véus das necessidades sem que a qualidade do cotidiano tenha que sofrer, num sutil agenciamento do necessário e do supérfluo, não se trata de opô-los, o programa pós-Covid-19 diz em uma palavra: let’s go light as light. Tornemo-nos tão leves como a luz.
EXIT
 A felicidade de uns, essa ínfima e orgulhosa minoria compósita e cosmopolita do Riquistão, não pode mais repousar sobre a espoliação dos outros, a grandíssima maioria das e dos Provedores. Esperando que se confirme ou não o prognóstico do pior sobre o continente africano pelas Cassandras do serviço, a aceleração não se acontece sempre. Os Covardes estarão então cada vez mais inclinados a ver no pesado balanço do Adversário em Zona Cômoda e nessa assimetria tão espetacular, se ela nunca se viesse a se confirmar, o sinal irrefutável e sobretudo inseparável de uma reconfortante e vingativa Nemesis.
Maltratados na História, humilhados e desumanizados por seus agentes ignóbeis, crápulas dementes sem fé nem lei, como se dariam como pacientes atolados numa zona de desesperança pela imperícia de longo curso dos despotismos pós-coloniais? A descolonização na África foi mais canalizada que uma partida de poker num salão esfumaçado em Macau no tempo da guerra do ópio. Os efeitos deletérios dessa inicialização torcida parasitam o presente gravemente numa escala e numa profundeza insuspeitas dos observatórios dedicados a essas temáticas.
Tem poeira – e um pouco mais – sob o tapete suave do hedonismo faustiano descomplexado. Alguns cadáveres, nada agradáveis, colocados lá pelo pôncio-pilatismo sem-vergonha da desova canalha que lava os punhos vigorosamente no sabão universal da covardia desde sempre na odisseia provedora. Ou como a profilaxia para circunscrever a propagação do vírus no palheiro da pusilanimidade caracterizada na narrativa fundadora da fé cristã, uma das que contam com maior rebanho no mundo. Os glosadores se regalam…
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Lionel Manga é ensaísta camaronês, autor de “L’Ivresse du papillon” [A embriaguez da borboleta] (2008), o primeiro ensaio sobre a cena das artes plásticas em seu país. Intelectual atuante, participa de movimento musicais, crônicas no rádio e publica artigos e ensaios em diversas revistas na África e Europa, como Mouvements, Riveneuve Continents, Local Contemporain, Chimurenga e Multitudes. Participou de uma série de conferências no Musée du Quai Branly pelos cinquenta anos das Independência Africanas, em 2009. Leitor e comentador do filósofo Michel Serres, foi convidado por Achille Mbembe e Felwine Sarr para abrir a segunda edição do evento Ateliers de la pensée, em Dakar, 2017.

Texto publicado no site AOC em 11 de junho de 2020. Tradução de Leo Gonçalves.

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(1) Hominescence, Le Pommier, 2001, p. 32
(2) Empresto de Sony Labou Tansi.
(3) O uso do chicote em todas as circunstâncias para quebrar a resistência dos escravos, mulheres e homens.
(4) Aldo Haesler, Hard modernity, la perfection du capitalisme et ses limites, Éditions Matériologique, 2018, p. 6.
(5) Pour la Science nº 350, Décembre, 2006.
(6) Amadou Hampâté Bâ, Njeddo Dewal, Mère de la Calamité, Nei-Edicef, 1994
(7) Aldo Haesler, op. cit.
(8) No sentido de Paul Ricœur em Histoire, mémoire, oubli, Seuil, 2000

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