Colonialidade e gênero, por María Lugones

Colonialidade e gênero
María Lugones[1]
Investigo a intersecção entre raça, classe, gênero e sexualidade na tentativa de entender a preocupante indiferença dos homens com relação às violências que, sistematicamente, as mulheres de cor[2] sofrem: mulheres não-brancas; mulheres vítimas da colonialidade do poder e, inseparavelmente, da colonialidade do gênero; mulheres que criam análises críticas do feminismo hegemônico, precisamente por ele ignorar a interseccionalidade das relações de raça/classe/sexualidade/gênero. Principalmente, já que é importante para nossas lutas, quero falar de uma indiferença vinda dos homens que foram e continuam sendo vítimas da dominação racial, da colonialidade do poder, homens que são inferiorizados pelo capitalismo global. A partir da problematização dessa indiferença diante das violências que o Estado, o patriarcado branco e eles mesmos perpetuam contra as mulheres de nossas comunidades em todo o mundo, chego a esta investigação teórica. É interessante notar que essas comunidades, tanto as que estão em grandes centros urbanos do mundo (como Brooklyn, Los Angeles, Cidade do México, Londres) quanto as que estão nas comunidades rurais indígenas (do Novo México, do Arizona, da Mesoamérica, da região Andina, da Nova Zelândia, da Nigéria), nunca aceitaram a invasão colonial passivamente. Entendo a indiferença diante da violência sofrida pelas mulheres em nossas comunidades como uma indiferença frente às transformações sociais profundas em nossas estruturas comunais, e por isso totalmente relevantes à recusa da imposição colonial. Procuro entender a maneira como essa indiferença é construída para, então, convertê-la em algo cujo reconhecimento seja inevitável para aqueles que se dizem envolvidos em lutas libertadoras. Essa indiferença é traiçoeira porque coloca barreiras intransponíveis em nossas lutas, enquanto mulheres de cor, por integridade e autodeterminação – o próprio cerne das lutas pela libertação das nossas comunidades. Ela se faz na vida cotidiana e nos esforços teóricos sobre as ideias de opressão e libertação. É uma indiferença que não aparece apenas na separação categorial[3] de raça, gênero, classe e sexualidade – separação que não nos deixa perceber com clareza a violência. Não se trata somente de uma questão de cegueira epistemológica cuja origem reside nessa separação categorial.
As feministas de cor têm frisado aquilo que só é revelado, em termos de dominação e exploração violentas, quando a perspectiva epistemológica se concentra na intersecção dessas categorias[4]. Ainda assim, isso não tem sido suficiente para fazer os homens de cor, que também são vítimas de dominações e explorações violentas, perceberem que em certa medida são cúmplices ou colaboradores na efetivação da dominação violenta das mulheres de cor[5]. Em especial, a teorização sobre a dominação global continua sendo conduzida como se fosse irrelevante reconhecer e resistir às traições e colaborações como essas.
Neste projeto, conduzo uma investigação sobre marcos de análise que não têm sido suficientemente explorados de maneira conjunta. De um lado, temos o importante trabalho sobre gênero, raça e colonização que constitui os feminismos de mulheres de cor dos Estados Unidos, os feminismos das mulheres do Terceiro Mundo, e as versões feministas das escolas de jurisprudência Lat Crit e Critical Race Theory. Esses marcos analíticos enfatizam o conceito de interseccionalidade e demonstram a exclusão histórica e teórico-prática de mulheres não-brancas nas lutas libertárias travadas em nome da mulher[6]. O outro marco é introduzido por Aníbal Quijano, e é central em sua análise do padrão de poder global capitalista. Falo do conceito de “colonialidade do poder”, [7] que é central aos trabalhos sobre colonialidade do saber, colonialidade do ser e decolonialidade. [8] Fazer um cruzamento dessas duas linhas de análise me permite chegar ao que estou chamando, provisoriamente, de “sistema moderno-colonial de gênero”. Acredito que esse entendimento de gênero é pressuposto nos dois marcos de análise de maneira geral, mas ele não se expressa de maneira explícita – ou não o faz na direção que considero necessária para revelar o alcance e as consequências de certa cumplicidade com ele, dois dados que motivam esta investigação. Caracterizar esse sistema de gênero como colonial/moderno, tanto de maneira geral, como em sua concretude específica e vivida, nos permitirá ver a imposição colonial em sua real profundidade; nos permitirá estender e aprofundar historicamente seu alcance destrutivo. Minha tentativa é a de fazer visível a instrumentalidade do sistema de gênero colonial/moderno na nossa subjugação – tanto dos homens como das mulheres de cor – em todos os âmbitos da vida. Ao mesmo tempo, esse trabalho torna visível a dissolução forçada e crucial dos vínculos de solidariedade prática entre as vítimas da dominação e exploração que constituem a colonialidade. Também quero fornecer uma forma de entender, ler e perceber nossa lealdade para com esse sistema de gênero. Precisamos nos colocar em uma posição que nos permita rechaçar esse sistema, enquanto promovemos uma transformação das relações comunais. [9] Neste ensaio inicial, apresento e complico o modelo de Quijano, porque ele nos fornece, com a lógica dos eixos estruturais, uma boa base para entendermos os processos de entrelaçamento e produção de raça e gênero.
A colonialidade do poder
Aníbal Quijano percebe a intersecção de raça e gênero em termos estruturais amplos. Para entender essa intersecção através do seu olhar, precisamos compreender a análise que ele faz do padrão de poder capitalista eurocêntrico e global. Tanto “raça” [10] como gênero ganham significados a partir desse padrão. Quijano entende que o poder está estruturado em relações de dominação, exploração e conflito entre atores sociais que disputam o controle dos “quatro âmbitos básicos da vida humana: sexo, trabalho, autoridade coletiva e subjetividade/intersubjetividade, seus recursos e seus produtos”. [11] O poder capitalista, eurocêntrico e global está organizado, precisamente, sobre dois eixos: a colonialidade do poder e a modernidade. [12] Esses eixos ordenam as disputas pelo controle de todas as áreas da vida de tal maneira que o significado e as formas da dominação em cada uma são inteiramente atravessados pela colonialidade do poder e pela modernidade. Assim, para Quijano, as lutas pelo controle do “acesso ao sexo, seus recursos e produtos” definem a esfera sexo/gênero e são organizadas a partir dos eixos da colonialidade e da modernidade. Essa análise da construção moderna/colonial do gênero e seu alcance são limitados. O olhar de Quijano pressupõe uma compreensão patriarcal e heterossexual das disputas pelo controle do sexo, seus recursos e produtos. Ele aceita o entendimento capitalista, eurocêntrico e global sobre o gênero. Seu quadro de análise – capitalista, eurocêntrico e global – mantém velado o entendimento de que as mulheres colonizadas, não-brancas, foram subordinadas e destituídas de poder. Conseguimos perceber como é opressor o caráter heterossexual e patriarcal das relações sociais quando desmistificamos as pressuposições de tal quadro analítico.
Não é necessário que as relações sociais sejam organizadas em termos de gênero, nem mesmo as relações que se consideram sexuais. Mas, uma vez dada, uma organização social em termos de gênero não tem por que ser heterossexual ou patriarcal. E esse não ter por que é uma questão histórica. Entender os traços historicamente específicos da organização do gênero em seu sistema moderno/colonial (dimorfismo biológico, a organização patriarcal e heterossexual das relações sociais) é central para entendermos como essa organização acontece de maneira diferente quando acrescida de termos raciais. Tanto o dimorfismo biológico e a heterossexualidade, quanto o patriarcado são característicos do que chamo o lado iluminado/visível da organização colonial/moderna do gênero. O dimorfismo biológico, a dicotomia homem/mulher, a heterossexualidade, e o patriarcado estão inscritos – com letras maiúsculas e hegemonicamente – no próprio significado de gênero. Quijano não percebeu sua conformidade com o significado hegemônico de gênero. Ao incluir esses elementos na análise da colonialidade do poder, quero expandir e complicar as suas ideias, que considero centrais ao que chamo de sistema de gênero moderno/colonial.
A colonialidade do poder introduz uma classificação universal e básica da população do planeta pautada na ideia de “raça”. [13] A invenção da “raça” é uma guinada profunda, um giro, já que reorganiza as relações de superioridade e inferioridade estabelecidas através da dominação. A humanidade e as relações humanas são reconhecidas através de uma ficção em termos biológicos. É importante notar que Quijano nos oferece uma teoria histórica da classificação social em substituição ao que ele denomina “teorias eurocêntricas sobre as classes sociais”. [14] Sua análise nos permite entender a centralidade da classificação da população em raças no capitalismo global. Ela também abre um espaço de reflexão para entendermos as disputas históricas pelo controle do trabalho, do sexo, da autoridade coletiva e da intersubjetividade, como lutas que se desenrolam em processos de longa duração, em vez de entendermos cada um desses elementos como anteriores a essas relações de poder. Os elementos que constituem o modelo capitalista de poder eurocêntrico e global não estão separados uns dos outros, e nenhum deles pré-existe aos processos que constituem o padrão de poder. De certo, a apresentação mítica desses elementos como anteriores, em termos metafísicos, é uma importante faceta do modelo cognitivo desse capitalismo, eurocêntrico e global.
Ao produzir essa classificação social, a colonialidade permeia todos os aspectos da vida social e permite o surgimento de novas identidades geoculturais e sociais. [15] “América” e “Europa” estão entre essas novas identidades geoculturais; “europeu”, “índio”, “africano” estão entre as identidades “raciais”. Essa classificação é “a expressão mais profunda e duradoura da dominação colonial”.[16] Com a expansão do colonialismo europeu, a classificação foi imposta à população do mundo. Desde então, tem atravessado todas e cada uma das áreas da vida social, tornando-se, assim, a forma mais efetiva de dominação social, tanto material como intersubjetiva. Deste modo, “colonialidade” não se refere apenas à classificação racial. Ela é um fenômeno mais amplo, um dos eixos do sistema de poder e, como tal, atravessa o controle do acesso ao sexo, a autoridade coletiva, o trabalho e a subjetividade/intersubjetividade, e atravessa também a produção de conhecimento a partir do próprio interior dessas relações intersubjetivas. Ou seja, toda forma de controle do sexo, da subjetividade, da autoridade e do trabalho existe em conexão com a colonialidade. Entendo a lógica da “estrutura axiforme”, no uso que Quijano faz dela, como expressão de uma interrelação: todo elemento que serve como um eixo se move constituindo e sendo constituído por todas as formas assumidas pelas relações de poder, referentes ao controle sobre domínios particulares da vida humana. Por fim, Quijano também esclarece que a colonialidade e o colonialismo são duas coisas distintas, à medida que o colonialismo não inclui, necessariamente, relações racistas de poder. Ainda assim, o nascimento e extensão da colonialidade, enraizada e espalhada pelo planeta, se fazem estreitamente relacionados com o colonialismo. [17]
No padrão de poder capitalista eurocêntrico e global de Quijano, capitalismo se refere à “articulação estrutural de todas as formas historicamente conhecidas de controle do trabalho ou exploração, a escravidão, a servidão, a pequena produção mercantil, o trabalho assalariado, e a reciprocidade, sob a hegemonia da relação capital-salário”. [18]
Nesse sentido, a estrutura das disputas pelo controle da força de trabalho é descontínua: nem todas as relações de trabalho no capitalismo eurocêntrico e global se encaixam no modelo de relação capital/salário, ainda que este seja o modelo hegemônico. Para começar a entender o alcance da colonialidade do poder é importante frisar que o trabalho assalariado sempre foi reservado, quase exclusivamente, para os europeus bancos. A divisão do trabalho é racializada e geograficamente diferenciada. Aqui, vemos a colonialidade do trabalho como um cuidadoso entrecruzamento de trabalho e raça.
Quijano entende a modernidade, outro eixo do capitalismo eurocêntrico e global, como “a fusão das experiências do colonialismo e da colonialidade com as necessidades do capitalismo, criando um universo específico de relações intersubjetivas de dominação sob uma hegemonia eurocentrada”. [19] Para caracterizar a modernidade, ele se concentra na produção da forma de conhecimento que se diz racional e que emerge do interior de um universo subjetivo do século XVII, nos encontros hegemônicos mais importantes desse sistema-mundo de poder (Holanda e Inglaterra). Essa forma de conhecimento é eurocêntrica. Quijano entende que o eurocentrismo diz respeito à perspectiva cognitiva não só dos europeus, mas de todo o mundo eurocêntrico, daqueles que são educados sob a hegemonia do capitalismo mundial. “O eurocentrismo naturaliza a experiência das pessoas dentro do padrão de poder”.[20]
As necessidades cognitivas do capitalismo e a naturalização das identidades, das relações de colonialidade e da distribuição geocultural do poder capitalista mundial guiam a produção dessa forma de conhecimento. As necessidades cognitivas do capitalismo incluem: a medição, a quantificação, a padronização (ou objetificação, tornar objeto) daquilo que pode ser conhecido, em relação ao sujeito conhecedor, para controlar tanto as relações entre as pessoas e a natureza, quanto, em especial, a propriedade dos meios de produção. [21]
Essa forma de conhecimento foi imposta, em todo o mundo capitalista, como a única racionalidade válida e como emblemática da modernidade. De modo mitológico, a Europa, centro capitalista mundial que colonizou o resto do mundo, passou a figurar como pré-existente ao padrão capitalista mundial de poder e, assim, estaria no ponto mais avançado da temporalidade contínua, unidirecional e linear das espécies. De acordo com uma concepção de humanidade que se consolidou com essa mitologia, a população mundial foi dividida em dicotomias: superior e inferior; racional e irracional; primitiva e civilizada; tradicional e moderna. Na lógica de um tempo evolutivo, primitivo se refere a uma época anterior na história das espécies. A Europa é concebida miticamente como pré-existente ao capitalismo global e colonial, e como tendo alcançado um estado muito avançado nesse caminho unidirecional, linear e contínuo. Assim, a partir do interior desse ponto de partida mítico, outros habitantes do mundo, outros seres humanos, passaram a ser miticamente concebidos não como dominados através da conquista, nem como inferiores em termos de riqueza ou poder político, mas como uma etapa anterior na história das espécies nesse caminho unidirecional. Esse é o significado da qualificação “primitivo”.[22]
Conseguimos ver, então, o encaixe estrutural dos elementos que formam o capitalismo global e eurocêntrico no padrão de Quijano. A modernidade e a colonialidade nos fornecem uma compreensão complexa da organização do trabalho. Deixam-nos ver o encaixe entre a racialização total da divisão do trabalho e a produção de conhecimento. A análise do padrão cria um lugar para pensarmos a heterogeneidade e a discontinuidade. Quijano argumenta que essa estrutura não é uma totalidade fechada. [23]
O que foi dito até agora nos permite abordar a pergunta da interseccionalidade entre raça e gênero[24] dentro do esquema de Quijano. Acredito que a lógica dos “eixos estruturais” nos dá algo a mais, mas também algo a menos que a interseccionalidade. A interseccionalidade revela o que não conseguimos ver quando categorias como gênero e raça são concebidas separadas uma da outra. A denominação categorial constrói o que nomeia. Enquanto feministas de cor, temos feito um esforço conceitual na direção de uma análise que enfatiza a intersecção das categorias raça e gênero, porque as categorias invisibilizam aquelas que são dominadas e vitimizadas sob a rúbrica das categorias “mulher” e as categorias raciais “negra”, “hispânica”, “asiática”, “nativo-americana”, “chicana”; as categorias invisibilizam as mulheres de cor. Como já indiquei, a autodenominação mulheres de cor não é equivalente aos termos raciais impostos pelo Estado racista, e sim proposta em grande tensão com eles. Ainda que na modernidade eurocêntrica capitalista sejamos todos/as racializados e um gênero nos seja atribuído, nem todos/as somos dominados ou vitimizados por esse processo. O processo é binário, dicotômico e hierárquico. Kimberlé Crenshaw, eu e outras mulheres de cor feministas argumentamos que as categorias são entendidas como homogêneas e que elas selecionam um dominante, no seu grupo, como norma; dessa maneira, “mulher” seleciona como norma as fêmeas burguesas brancas heterossexuais, “homem” seleciona os machos burgueses brancos heterossexuais, “negro” seleciona os machos heterossexuais negros, e assim sucessivamente. Então, é evidente que a lógica de separação categorial distorce os seres e fenômenos sociais que existem na intersecção, como faz a violência contra as mulheres de cor. Devido à maneira como as categorias são construídas, a intersecção interpreta erroneamente as mulheres de cor. Na intersecção entre “mulher” e “negro” há uma ausência onde deveria estar a mulher negra, precisamente porque nem “mulher” nem “negro” a inclui. A intersecção nos mostra um vazio. Por isso, uma vez que a interseccionalidade nos mostra o que se perde, ficamos com a tarefa de reconceitualizar a lógica da intersecção, para, desse modo, evitar a separação das categorias existentes e o pensamento categorial.[25] Somente ao perceber gênero e raça como tramados ou fundidos indissoluvelmente, podemos realmente ver as mulheres de cor. Isso significa que o termo “mulher”, em si, sem especificação dessa fusão, não tem sentido ou tem um sentido racista, já que a lógica categorial historicamente seleciona somente o grupo dominante – as mulheres burguesas brancas heterossexuais – e, portanto, esconde a brutalização, o abuso, a desumanização que a colonialidade de gênero implica.
A lógica dos eixos estruturais mostra o gênero como formado por e formando a colonialidade do poder. Nesse sentido, não existe uma separação de raça/gênero no padrão de Quijano. Acredito ser correta a lógica que ele apresenta. Mas o eixo da colonialidade não é suficiente para dar conta de todos os aspectos do gênero. Que aspectos se tornam visíveis depende do modo como o gênero se conceitualiza no modelo. No padrão de Quijano, o gênero parece estar contido dentro da organização daquele “âmbito básico da vida”, que ele chama “sexo, seus recursos e produtos”.[26]Dentro do quadro que ele elabora existe uma descrição de gênero que não é questionada, e que é demasiadamente estreita e hiper-biologizada – já que traz como pressupostos o dimorfismo sexual, a heterossexualidade, a distribuição patriarcal do poder e outras ideias desse tipo.
Não encontrei uma elaboração sobre gênero como conceito ou como fenômeno nas leituras que fiz de Quijano. Parece-me que em seu trabalho, ele assume que as diferenças de gênero são formadas nas disputas pelo controle do sexo, seus recursos e produtos. As diferenças se configurariam de acordo com a maneira como esse controle está organizado. Quijano entende o sexo como atributos biológicos[27] que podem ser elaborados como categorias sociais. Diferente do sexo, o fenótipo não possui atributos biológicos de diferenciação. De um lado, “a cor da pele, a forma e a cor do cabelo, dos olhos, a forma e o tamanho do nariz etc. não têm nenhum impacto na estrutura biológica da pessoa”.[28] Mas para Quijano, o sexo parece ser inquestionavelmente biológico. Ele descreve a “colonialidade das relações de gênero”,[29] ou melhor, descreve o ordenamento das relações de gênero no eixo da colonialidade do poder da seguinte maneira:
(1) Em todo o mundo colonial, as normas e os padrões formais-ideais de comportamento sexual dos gêneros e, consequentemente, os padrões de organização familiar dos “europeus” foram fundados sobre uma classificação “racial”: a liberdade sexual dos homens e a fidelidade das mulheres foram, em todo o mundo eurocêntrico, a contrapartida do “livre” – sem sujeição a pagamentos, como na prostituição, mais antiga na história – acesso sexual dos homens “brancos” às mulheres “negras” e “índias”, na América, “negras”, na África, e de outras “cores” no resto do mundo em submissão.
(2) Na Europa, ao contrário, foi a prostituição das mulheres a contrapartida do padrão burguês de família.
(3) A unidade e a integração familiar, impostas como eixos do padrão burguês de família no mundo eurocêntrico, foram a contrapartida da contínua desintegração das unidades de parentescos pais-filhos nas “raças” “não-brancas”, apropriáveis e distribuíveis não apenas como mercadoria, mas como “animais”. Isso, principalmente entre os escravos “negros”, já que sobre eles essa forma de dominação foi mais explícita, imediata e prolongada.
(4) A marcada hipocrisia subjacente às normas e valores formais-ideais da família burguesa não é, desde então, alheia à colonialidade do poder.
Como podemos ver nessa importante e complexa citação, o quadro que Quijano elabora reduz o gênero à organização do sexo, seus recursos e produtos, e parece cair em uma certa pressuposição sobre quem controla o acesso a ele e quem é entendido como “recursos”. Quijano parece dar como certo que a disputa pelo controle do sexo é uma disputa entre homens, competindo entre si pelo controle de recursos que são entendidos como femininos. Parece que ele não entende os homens como “recursos” nos encontros sexuais. Assim como parece que as mulheres não disputam em nenhum nível o controle do acesso ao sexo. As diferenças são pensadas nos mesmo termos em que a sociedade entende a biologia reprodutiva.

Intersexualidade
No livro Dilemas de definición,[30] Julie Greenberg diz que as instituições legais têm o poder de designar a cada indivíduo uma categoria sexual ou racial em particular.[31] “Assume-se que o sexo é binário e facilmente determinável através de uma análise de fatores biológicos. Ainda que estudos médicos e antropológicos sustentem o contrário, a sociedade é adepta de um paradigma sexual binário sem ambiguidades no qual todos os indivíduos podem ser classificados prolixamente como masculinos ou femininos.”[32]
Greenberg diz que em toda a história dos Estados Unidos, as leis do país não reconheceram a existência de pessoas intersexuais, ainda que de 1% a 4% da população mundial seja intersexual. Essa é uma população que não se encaixa prolixamente dentro de categorias sexuais onde não há espaço para ambiguidade; “que conta com alguns indicadores biológicos tradicionalmente associados aos machos e alguns indicadores biológicos tradicionalmente associados com as fêmeas. A maneira como as leis definem os termos masculino, feminino e sexo sempre terá um impacto profundo nesses indivíduos.”[33]
As designações revelam que o que se entende por sexo biológico é socialmente construído. Do final do século XIX até a Primeira Guerra Mundial, a função reprodutiva era considerada característica essencial de uma mulher. A presença ou ausência de ovários era o critério mais definidor do sexo.[34] Porém, existe um grande número de fatores que intervêm “na definição do sexo ‘oficial’ de uma pessoa”: cromossomos, gônadas, morfologia externa, morfologia interna, padrões hormonais, fenótipo, sexo designado, e aquele que a própria pessoa designa a si mesma.[35] Atualmente, os cromossomos e as genitálias são parte dessa designação, mas de tal maneira que conseguimos ver como a biologia é uma interpretação e é, por ela mesma, cirurgicamente construída.
“Crianças XY com pênis “inadequados” devem ser convertidas em meninas, porque a sociedade acredita que a essência da virilidade é a habilidade de penetrar uma vagina ou urinar de pé. Porém, crianças XX com pênis “adequados” serão designadas ao sexo feminino, porque a sociedade, e muitos membros da comunidade médica, acreditam que para a essência da mulher é mais importante a capacidade de ter filhos que a de participar em uma troca sexual satisfatória.”[36]
Frequentemente, indivíduos intersexuais são convertidos, cirúrgica e hormonalmente, em machos ou fêmeas. Esses fatores são levados em consideração em casos legais envolvendo o direito de mudar a designação sexual em documentos oficiais, a capacidade de fazer uma denúncia de discriminação sexual dentro do ambiente de trabalho ou no mercado de trabalho, e o direito ao casamento.37[37] Greenberg fala das complexidades e da variedade de decisões que são tomadas em cada um dos casos de designação sexual. A lei não reconhece a intersexualidade. Ainda que permitam que um indivíduo autoidentifique seu sexo em certos documentos, “na maioria das situações, as instituições legais continuam baseando a designação sexual nas pressuposições tradicionais sobre o sexo como algo binário e que pode ser determinado, com facilidade, somente com uma análise de fatores biológicos.”[38]
O trabalho de Julie Greenberg me permite sinalizar uma pressuposição importante presente no modelo que Quijano nos oferece. O dimorfismo sexual é uma característica importante para aquilo que chamo “o lado iluminado/visível” do sistema de gênero moderno/colonial. Aqueles localizados no “lado obscuro/oculto” não são necessariamente entendidos em termos dimórficos. Os medos sexuais dos colonizadores[39] os fizeram imaginar que os indígenas das Américas eram hermafroditas ou intersexuais, com pênis enormes e enormes peitos vertendo leite.40[40]Mas como esclarece Paula Gunn Allen[41] e outros/as, indivíduos intersexuais eram reconhecidos em muitas sociedades tribais anteriores à colonização sem serem assimilados à classificação sexual binária. É importante levar em conta as mudanças que a colonização trouxe, para entendermos o alcance da organização do sexo e do gênero sob a força do colonialismo e no interior do capitalismo global eurocêntrico. Se o capitalismo global eurocêntrico só reconheceu o dimorfismo sexual entre homens e mulheres brancos/as burgueses/as, não pode ser verdade que a divisão sexual seja baseada na biologia. As correções substanciais e cosméticas sobre o biológico deixam claro que o “gênero” vem antes dos traços “biológicos” e os preenche de significado. A naturalização das diferenças sexuais é outro produto do uso moderno da ciência que Quijano sublinha quando fala de “raça”. É importante perceber que as pessoas intersexuais não são corrigidas ou normalizadas em todas as tradições. Por isso, como fazemos com outras suposições, é importante se perguntar de que maneira o dimorfismo sexual serviu, e serve, à exploração/dominação capitalista global eurocêntrica.
Igualitarismo ginocêntrico ou não-atribuído de gênero
Como o capitalismo eurocêntrico global se constituiu por meio da colonização, diferenças de gênero foram introduzidas onde antes não havia nenhuma. Oyéronké Oyewùmi[42] mostra que o opressivo sistema de gênero imposto à sociedade Iorubá fez bem mais que transformar a organização da reprodução. Seu argumento nos mostra que o alcance do sistema de gênero imposto por meio do colonialismo inclui a subordinação das fêmeas em todos os aspectos da vida. Conseguimos perceber, assim, como a análise de Quijano acerca do alcance do gênero no capitalismo global eurocêntrico é bem mais limitada do que parece, à primeira vista. Gunn Allen afirma que muitas comunidades tribais de nativo-americanos eram matriarcais, reconheciam positivamente tanto a homossexualidade como o “terceiro” gênero, e entendiam o gênero em termos igualitários – não nos termos de subordinação que foram, depois, impostos pelo capitalismo eurocêntrico. Seu trabalho nos permite ver que o alcance das diferenças de gênero era muito mais abrangente e não era baseado em fatores biológicos. A autora também fala de produção de conhecimento e uma aproximação a certo entendimento da “realidade” que são ginocêntricos. Dessa forma, ela aponta para o reconhecimento de uma construção “atribuída de gênero” do conhecimento e da modernidade, outro aspecto oculto na descrição que Quijano faz sobre o alcance do “gênero” nos processos que constituem a colonialidade do gênero.
Igualitarismo sem gênero
Em La Invención de las Mujeres [A invenção das mulheres], Oyéronké Oyewùmi se pergunta se patriarcado é uma categoria transcultural válida.[43] Ao colocar essa questão, ela não opõe o patriarcado ao matriarcado, mas propõe que “o gênero não era um princípio organizador na sociedade Iorubá antes da colonização ocidental”.[44] Não existia um sistema de gênero institucionalizado. Inclusive, Oyewùmi diz que o gênero não ganhou importância nos estudos Iorubá como um artefato da própria cultura, e sim porque a vida Iorubá, passada e presente, passou a ser traduzida para o inglês para caber no padrão ocidental de separação do corpo e da razão.45[45] Admitir que a sociedade Iorubá tinha o gênero como um princípio da sua organização social é outro caso de “dominação ocidental sobre a documentação e interpretação do mundo; uma dominação que é facilitada pelo domínio material que o Ocidente exerce sobre o globo”.[46] Oyewùmi afirma que os/as investigadores/as sempre encontram o gênero quando o estão buscando. [47] “Traduzir as categorias Iorubá obinrin e okunrin como “fêmea/mulher” e “macho/homem”, respectivamente, é um erro. Essas categorias não se opõem de forma binária, nem se relacionam na forma de uma hierarquia.” [48]
Os prefixos obin e okun fazem referência a uma variação anatômica. Oyewùmi traduz os prefixos como referentes à anatomia da fêmea e do macho, podendo ser lidos como anafêmea e anamacho. É importante ressaltar que essas categorias não são entendidas como binariamente opostas.
Oyewùmi entende o gênero, introduzido pelo Ocidente, como uma ferramenta de dominação que produz duas categorias sociais que se opõem de maneira binária e hierárquica. “Mulheres” (enquanto gênero) não é um termo definido pela biologia, ainda que seja designado a anafêmeas. A associação colonial entre anatomia e gênero é parte da oposição binária e hierárquica, central à dominação das anafêmeas introduzida pela colônia. As mulheres são definidas em relação aos homens, a norma. Mulheres são aquelas que não têm um pênis; não tem poder; não podem participar da arena pública.[49] Nada disso pertencia às anafêmeas Iorubás antes da colônia.
“A imposição do sistema de estado europeu, com seu aparato jurídico e burocrático, é o legado mais duradouro da dominação colonial europeia na África. A exclusão das mulheres da recentemente criada esfera pública colonial é uma tradição que foi exportada para a África durante esse período […] O mesmo processo que categorizou e reduziu as fêmeas a “mulheres”, as desqualificou para papeis de liderança […] O surgimento de mulher como uma categoria reconhecível, definida anatomicamente e subordinada ao homem em todo tipo de situação, é resultado, em parte, da imposição de um estado colonial patriarcal. Para as mulheres, a colonização foi um processo duplo de inferiorização racial e subordinação de gênero. Uma das primeiras conquistas do estado colonial foi a criação da categoria “mulheres”. Portanto, não é de todo surpreendente que o reconhecimento de fêmeas como líderes populares entre os colonizados, inclusive entre os Iorubá, era impensável para o governo colonial […] Em certa medida, a transformação do poder do estado em poder masculino se deu com a exclusão das mulheres das estruturas estatais. Essa dinâmica estava em profundo contraste com a organização do estado Iorubá, na qual o poder não era determinado pelo gênero.”[50]
Oyewùmi trata dois processos como cruciais para a colonização: a imposição de raças, com a consequentemente inferiorização dos africanos, e a inferiorização das anafêmeas. Esta última estendeu-se amplamente, abarcando desde a exclusão dos papeis de liderança até a perda da propriedade sobre a terra e outros importantes espaços econômicos. A autora diz que a introdução do sistema de gênero ocidental foi aceita pelos machos Iorubá, que assim foram cúmplices e colaboraram para a inferiorização das anafêmeas. Portanto, quando pensamos na indiferença dos homens não-brancos diante da violência contra as mulheres não-brancas, podemos começar a compreender parte do que acontece na colaboração entre anamachos e colonizadores ocidentais contra anafêmeas. Oyewùmi deixa claro que tanto homens como mulheres resistiram, em diferentes níveis, às mudanças culturais. Então, enquanto “no Ocidente, o desafio do feminismo é encontrar uma via para passar da categoria “mulher”, saturada-em-termos-de-gênero, para a plenitude de uma humanidade assexuada. Para as Yorùbáobinrin, o desafio é obviamente diferente porque, em determinados níveis da sociedade e em algumas esferas, a noção de uma “humanidade assexuada” não é nem um sonho nem uma memória a ser recuperada. Essa ideia já existe, ainda que esteja concatenada com uma realidade de sexos hierárquicos e separados imposta durante o período colonial.” [51]
Vemos que o alcance da colonialidade de gênero na análise feita por Quijano é limitado demais. Para definir o alcance do gênero, ele admite a maior parte dos termos do hegemônico lado visível/iluminado do sistema de gênero colonial/moderno. Assim, fiz um caminho por fora da colonialidade de gênero de Quijano, para revelar o que o modelo oculta, ou se nega a considerar, sobre o próprio alcance do sistema de gênero do capitalismo global eurocêntrico. Ainda que eu acredite que a colonialidade do gênero, como Quijano cuidadosamente a descreve, nos mostre aspectos muito importantes da intersecção de raça e gênero, seu quadro refaz o apagamento e a exclusão das mulheres colonizadas da maioria das áreas da vida social, em vez de trazê-las de volta à vista. Em vez de produzir um rompimento, ele se acomoda no reducionismo da dominação de gênero. Ao recusar a lente do gênero quando caracteriza a inferiorização das anafêmeas pela colonização moderna, Oyewùmi deixa clara a extensão e o alcance de tal inferiorização. Sua análise do gênero como construção capitalista eurocêntrica e colonial é muito mais abrangente que a de Quijano. Ela nos deixa ver a inferiorização cognitiva, política e econômica, mas também a inferiorização das anafêmeas com respeito ao controle reprodutivo.
Igualitarismo ginocêntrico
Designar este grande ser à posição de “deusa da fertilidade” é extremamente degradante: trivializa as tribos e o poder da mulher. [52]
Ao caracterizar muitas tribos de nativo-americanos como ginocêntricas, Paula Gunn Allen enfatiza a importância de uma dimensão espiritual em todos os aspectos da vida indígena e, portanto, uma intersubjetividade, com a qual se produz conhecimento, muito diferente daquela da colonialidade do saber moderna. Muitas tribos indígenas americanas “pensam que a primeira força do universo é feminina e esse entendimento autoriza todas as atividades tribais”.[53] Velha Mulher Aranha, Mulher do Milho, Mulher Serpente, Mulher Pensamento são alguns dos nomes de criadoras poderosas. Para as tribos ginocêntricas, a Mulher está no centro e “nada é sagrado sem sua bênção, seu pensamento”.[54]
Substituir essa pluralidade espiritual ginocêntrica por um ser supremo masculino, como fez o cristianismo, foi crucial para a submissão das tribos. Allen sustenta que é preciso realizar quatro objetivos para que haja a passagem das tribos indígenas de igualitárias e ginocêntricas a hierárquicas e patriarcais:

  1. A primazia do feminino como criador é destituida e substituída por criadores masculinos.[55]
  2. São destruídas as instituições de governo tribal e as filosofias sobre as quais eles estão organizados, como aconteceu com os Iroqueses e Cheroquis.[56]
  3. As pessoas são “expulsas de suas terras, privadas de seu sustento econômico, e forçadas a diminuir ou abandonar por completo todo empreendimento do qual depende sua subsistência, filosofia e sistema ritual. Depois de transformados em dependentes das instituições brancas para sua sobrevivência, os sistemas tribais não conseguem manter o ginocentrismo, quando o patriarcado – na verdade, sua sobrevivência – exige uma dominação masculina”.[57]
  4. A estrutura do clã precisa ser substituída de vez, ao menos em teoria, pela família nuclear. Com esse esquema, as mulheres líderes dos clãs são substituídas por oficiais machos eleitos e a rede psíquica formada e mantida pela ginocêntricidade não autoritária baseada no respeito e na diversidade de deuses e pessoas é destruída. [58]

Assim, para Allen, a inferiorização das mulheres indígenas está intimamente ligada à dominação e transformação da vida tribal. A destruição da ginocracia é crucial para a “dizimação de populações através da fome, de doenças e da quebra de todas as estruturas econômicas, espirituais e sociais”. [59]O programa de des-ginocentrização requer um impressionante “controle de informação e imagem”. Então, “a readaptação de versões tribais arcaicas da história, dos costumes, das instituições tribais e da tradição oral aumenta a probabilidade de que revisões patriarcais da vida tribal sejam incorporadas dentro das tradições espirituais e populares das tribos, dissimuladas ou simplesmente inventadas por patriarcas que não são índios e índios que se ‘patriarcalizaram’”. [60]
Entre as características das sociedades indígenas condenadas à destruição encontravam-se: a estrutura social bilateral complementar; o entendimento do gênero; e a distribuição econômica que normalmente seguia um sistema de reciprocidade. Os dois lados da estrutura social complementar incluíam uma chefa interna e um chefe externo. A chefa interna presidia a tribo, a vila ou o grupo, se ocupando de manter a harmonia e administrar assuntos internos. O chefe, macho, vermelho, presidia as mediações entre a tribo e aqueles que não pertenciam a ela.[61] O gênero não era entendido fundamentalmente em termos biológicos. A maioria dos indivíduos se encaixavam nos papeis de gênero tribais “baseados em sua propensão, inclinação e temperamento. Os Yuma tinham uma tradição para designar o gênero que era baseada em sonhos; uma fêmea que sonhava com armas transformava-se em macho para todos os efeitos.” [62]
Assim como Oyewùmi, Allen está interessada na colaboração entre homens indígenas e homens brancos para minar o poder das mulheres. Para nós, é importante pensar nessas colaborações quando pensamos na indiferença frente às lutas das mulheres contra as múltiplas violências sofridas por elas e por suas comunidades – racializadas e subordinadas. O colonizador branco construía uma força interna nas tribos à medida que cooptava homens colonizados para ocupar papeis patriarcais. Allen descreve as transformações das ginocracias dos Cheroquis e Iroqueses e do papel dos homens índios na passagem para o patriarcado. Os britânicos levaram homens indígenas para a Inglaterra e os educaram à maneira britânica. Esses homens acabaram participando do Ato de Remoção.
“No começo dos anos 1800, em um esforço para garantir as remoções, sob a liderança de homens como Elias Boudinot, Major Ridge, John Ross e outros, os Cheroquis redigiram uma constituição que eliminava os direitos políticos das mulheres e dos negros. Tendo como modelo a constituição dos Estados Unidos, a quem eles estavam agradando, e em sintonia com os cristãos que simpatizavam com a causa Cheroqui, a nova constituição colocou as mulheres no lugar de coisas, objetos.” [63]
As mulheres Cheroqui tinham poder de declarar guerra, decidir o destino dos prisioneiros, falar ao conselho de homens, intervir em decisões e políticas públicas, escolher com quem (e se) queriam casar, e também tinham o direito de portar armas. O Conselho de Mulheres era poderoso política e espiritualmente. [64]À medida que os Cheroquis foram expulsos e arranjos patriarcais foram introduzidos, as mulheres Cheroqui perderam todos esses poderes e direitos. Quando foram subjugados, os Iroqueses passaram de um povo centrado na Mãe e no direito materno, organizados politicamente sob a autoridade das Matriarcas, à uma sociedade patriarcal. Essa realidade se concretizou com a colaboração de Handsome Lake e seus seguidores.
Segundo Allen, muitas tribos eram ginocráticas, entre elas os Susquehanna, Hurões, Iroqueses, Cheroquis, Pueblo, Navajos, Narragansett, Algonquinos da Costa, Montagnais. Ela também diz que entre as 88 tribos que reconheciam a homossexualidade, dentre aquelas que a reconhecia de maneira positiva estavam os Apaches, Navajos, Winnebagos, Cheyennes, Pima, Crow, Shoshoni, Paiute, Osage, Acoma, Zuñi, Sioux, Pawnee, Choctaw, Creek, Seminole, Illinois, Mohave, Shasta, Aleut, Sac e Fox, Iowa, Kansas, Yuma, Astecas, Tlingit, Maias, Naskapi, Ponca, Maricopa, Lamath, Quinault, Yuki, Chilula, e Kamia. Vinte dessas tribos tinham referências específicas ao lesbianismo.[65]
Michael J. Horswell[66] comenta, de maneira útil, o uso da expressão terceiro gênero. Ele diz que um terceiro gênero não significa que existam três gêneros. E sim que se trata, mais especificamente, de uma forma de se desprender a bipolaridade do sexo e do gênero. O “terceiro” é emblemático para outras possíveis combinações para além do dimorfismo. O termo berdache é usado, por vezes, como “terceiro gênero”. Horswell conta que o berdache homem foi registrado em quase 150 sociedades da América do Norte e a berdache mulher, na metade desse mesmo número.67[67]Ele também fala que a sodomia, incluindo a ritual, foi registrada em sociedade andinas e em muitas outras sociedades nativas das Américas.[68] Os Nahuas e Maias também tinham um espaço para a sodomia ritual.[69] É interessante o que Sigal[70] revela em relação à concepção dos espanhóis sobre a sodomia. À medida que a entendia como pecado, a lei espanhola condenava, com punição penal, o participante ativo do ato sodomítico, mas o participante passivo não era punido. Na cultura popular espanhola, a sodomia foi racializada pela vinculação da prática com os mouros, nesse momento o participante passivo começa a ser punido já que era considerado como um mouro. Os soldados espanhóis eram vistos como os participantes ativos em relação aos mouros passivos. [71]
O trabalho de Allen não só nos permite reconhecer a limitação das ideias de Quijano sobre o gênero em relação à organização econômica e a organização da autoridade coletiva; ele também nos faz ver que tanto a produção do conhecimento quanto todos os níveis de concepção da realidade são “atribuídos de gênero”. Allen também coloca um questionamento da biologia e sua incidência na construção das diferenças de gênero, e apresenta a importante ideia da possibilidade de se escolher e sonhar com papeis de gênero. Além disso, a autora também mostra que a heterossexualidade característica da construção colonial/moderna das relações de gênero é produzida, construída miticamente. Mas a heterossexualidade não está apenas biologizada de maneira fictícia, ela também é obrigatória e permeia toda a colonialidade do gênero – na concepção mais ampla que estamos dando a esse conceito. Nesse sentido, o capitalismo eurocêntrico global é heterossexual. Acredito que seja importante vermos, enquanto tentamos entender a profundidade e a força da violência na produção tanto do lado oculto/obscuro como do lado visível/iluminado do sistema de gênero moderno/colonial, que essa heterossexualidade tem sido coerente e duramente perversa, violenta, degradante, e sempre funcionou como ferramenta de conversão de pessoas “não-brancas” em animais e de mulheres brancas em reprodutoras da Raça (branca) e da Classe (burguesa). Os trabalhos de Sigal e de Horswell complementam o de Allen, particularmente no que diz respeito à presença da sodomia e da homossexualidade masculina na América pré-colombiana e colonial.
O sistema moderno/colonial de gênero
Entender o lugar do gênero nas sociedades pré-colombianas a partir de um ponto de vista mais complexo, como sugiro neste trabalho, nos permite fazer um giro paradigmático no nosso entendimento da natureza e do alcance das mudanças na estrutura social dos povos colonizados, imposta pelos processos constitutivos do capitalismo eurocêntrico colonial/moderno. Essas mudanças foram introduzidas através de processos heterogêneos, descontínuos, lentos, totalmente permeados pela colonialidade do poder, que violentamente inferioriza as mulheres colonizadas. Entender o lugar do gênero nas sociedades pré-colombianas faz rotacionar nosso eixo de compreensão da importância e magnitude do gênero na desintegração das relações comunais e igualitárias, do pensamento ritual, da autoridade e do processo coletivos de tomada de decisões, e das economias. De um lado, o reconhecimento do gênero como uma imposição colonial – a colonialidade do gênero complexificada – afeta profundamente o estudo das sociedades pré-colombianas, questionando o uso do conceito “gênero” como parte da organização social. Por outro lado, uma compreensão da organização social pré-colonial feita a partir das cosmologias e práticas pré-coloniais é fundamental para entendermos a profundidade e o alcance da imposição colonial. Mas não podemos fazer um sem o outro. E, portanto, é importante entender o quanto a imposição desse sistema de gênero forma a colonialidade do poder, e o tanto que a colonialidade do poder forma esse sistema de gênero. A relação entre eles segue uma lógica de formação mútua[72]. Até agora, acredito estar claro que o sistema de gênero moderno/colonial não existe sem a colonialidade do poder, já que a classificação das populações em termos de raça é uma condição necessária da sua existência.
Conceber o alcance do sistema de gênero do capitalismo eurocêntrico global, é entender até que ponto o processo de redução do conceito de gênero à função de controle do sexo, seus recursos e produtos, constitui a dominação de gênero. Para entender essa redução e a estrutura da racialização e o enegrecimento, precisamos pensar em que medida a organização social do “sexo” pré-colonial inscreveu a diferenciação sexual em todos os âmbitos da vida, inclusive no saber e nas práticas rituais, na economia, na cosmologia, nas decisões de governo interno e externo da comunidade. Isso nos permite ver se o controle sobre o trabalho, sobre a subjetividade/intersubjetividade, a autoridade coletiva e sobre o sexo – os “âmbitos da vida” no trabalho de Quijano – eram “atribuídos de gênero”. Dada a colonialidade do poder, acredito que também podemos afirmar que a existência de um lado oculto/obscuro e um lado visível/iluminado é uma característica da coconstrução entre a colonialidade do poder e o sistema de gênero colonial/moderno. Problematizar o dimorfismo biológico e considerar a relação entre ele e a construção dicotômica de gênero é central para entender o alcance, a profundidade e as características desse sistema de gênero. A redução do gênero ao privado, ao controle do sexo, seus recursos e produtos, é uma questão ideológica, apresentada como biológica, e é parte da produção cognitiva da modernidade que conceitualizou a raça como “atribuída de gênero” e o gênero como racializado de maneiras particularmente diferenciadas para europeus brancos/as e para colonizados/as não brancos/as. A raça não é nem mais mítica, nem mais fictícia que o gênero –  ambos são ficções poderosas.
Durante o desenvolvimento dos feminismos do século XX, não se fizeram explícitas as conexões entre o gênero, a classe e a heterossexualidade como racializados. Esse feminismo fez sua luta, e suas formas de conhecer e teorizar, com a imagem de uma mulher frágil, fraca, tanto corporal como intelectualmente, reduzida ao espaço privado e sexualmente passiva. Mas não explicitou a relação dessas características com a raça, já que elas são parte apenas da mulher branca e burguesa. Dado o caráter hegemônico que tal análise alcançou, ele não apenas não explicitou como ocultou essa relação. Começando o movimento de “liberação da mulher” com essa caracterização da mulher como o branco da luta, as feministas burguesas brancas se ocuparam de teorizar o sentido branco de ser mulher, como se todas as mulheres fossem brancas.
Também é parte dessa história só as mulheres burguesas brancas serem contadas como mulheres no Ocidente. As fêmeas excluídas por e nessa descrição não eram apenas subordinadas, elas também eram vistas e tratadas como animais, em um sentido mais profundo que o da identificação das mulheres brancas com a natureza, as crianças e os animais pequenos. As fêmeas não-brancas eram consideradas animais no sentido de seres “sem-gênero”,73[73] marcadas sexualmente como fêmeas, mas sem as características da feminilidade.[74] As fêmeas racializadas como seres inferiores foram transformadas de animais a diferentes versões de mulher – tantas quantas foram necessárias para os processos do capitalismo eurocêntrico global. Portanto, a violação heterossexual de mulheres índias ou de escravas africanas coexistiu com o concubinato, bem como com a imposição do entendimento heterossexual das relações de gênero entre os colonizados – quando isso foi conveniente e favorável ao capitalismo eurocêntrico global e à dominação heterossexual das mulheres brancas. Mas vale lembrar que os trabalhos de Oyewùmi e de Allen deixaram claro que o status das mulheres brancas não foi estendido às mulheres colonizadas, nem quando estas últimas foram convertidas em versões alternativas de mulheres brancas burguesas. Quando “atribuídas de gênero” através da transformação nessas versões, as fêmeas colonizadas receberam o status de inferioridade que acompanha o gênero mulher, mas não receberam nenhum dos privilégios que esse status significava para as mulheres burguesas brancas. As histórias apresentadas por Oyewùmi e Allen mostram às mulheres burguesas brancas que seu status no capitalismo eurocêntrico é muito inferior ao status das fêmeas indígenas na América pré-colonial e das fêmeas Iorubá. As autoras também explicam que o entendimento igualitário das relações entre anafêmeas, anamachos e as pessoas do “terceiro gênero” segue presente na imaginação e nas práticas dos/das nativo-americanos/as e do povo Iorubá. Isso é parte da história de resistência à dominação.
Apagando toda história, inclusive a oral, da relação entre as mulheres brancas e não-brancas, o feminismo hegemônico branco igualou mulher branca e mulher. Mas é evidente que as mulheres burguesas brancas, em todas as épocas da história, inclusive a contemporânea, sempre souberam orientar-se lucidamente em uma organização da vida que as colocou em posições muito diferentes daquelas das mulheres trabalhadoras ou de cor.[75] A luta das feministas brancas e da “segunda liberação da mulher” nos anos 1970 em diante passou a ser uma luta contra as posições, os papeis, os estereótipos, traços e desejos impostos na subordinação das mulheres burguesas brancas. Elas não se ocuparam da opressão de gênero de mais ninguém. Conceberam “a mulher” como um ser corpóreo e evidentemente branco, mas sem explicitar essa qualificação racial. Ou seja, não entenderam a si mesmas em termos interseccionais, na intersecção de raça, gênero e outras potentes marcas de sujeição ou dominação. Como não perceberam essas diferenças profundas, não viram nenhuma necessidade de criar coalizões. Assumiram que existia uma irmandade, uma sororidade, um vínculo já existente forjado pela sujeição do gênero.
Historicamente, a caracterização das mulheres europeias brancas como sexualmente passivas e física e intelectualmente frágeis as colocou em oposição às mulheres colonizadas, não-brancas, inclusive as mulheres escravizadas, que, ao contrário, foram caracterizadas ao longo de uma vasta gama de perversão e agressão sexuais e, também, consideradas suficientemente fortes para aguentar qualquer tipo de trabalho. A seguinte descrição das escravas e seu trabalho no regime escravocrata do sul dos Estados Unidos deixa muito claro que as fêmeas escravizadas não eram vistas nem como frágeis nem como fracas:
“Primeiro vieram, pelas mãos de um condutor velho que carregava um chicote, quarenta das mulheres mais fortes e grandes que já vi; todas estavam vestidas com um uniforme feito de um material azulado, as saias só cobriam até pouco abaixo do joelho, suas pernas e pés descobertos; avançavam com altivez, cada uma com uma enxada no ombro, caminhando com uma cadência marcada e livre, como chasseurs em marcha. Atrás vinha a cavalaria, composta por trinta pessoas fortes, a maioria homens, mas também algumas mulheres, que vinham montadas em mulas de arado. Um capataz branco, magro e observador cuidava da retaguarda, montado em um pônei não-domesticado (…) Os trabalhadores devem estar nas plantações de algodão assim que o dia amanhece e, com exceção de dez ou quinze minutos que lhes são dados por volta de meio-dia para que comam sua ração de bacon frio, não lhes é permitido nem um minuto de descanso até que já não seja mais possível ver nada; e quando é lua cheia, muitas vezes trabalham até meia-noite.”[76]
Patricia Hill Collins nos oferece uma descrição clara da percepção dominante estereotipada das mulheres negras como sexualmente agressivas e da origem desse estereótipo durante a escravidão:
“A imagem de Jezebel surgiu nos tempos da escravidão, quando as mulheres negras eram retratadas, nas palavras de Jewelle Gomez, como “cuidadoras sexualmente agressivas”. A função que o estereótipo da Jezebel cumpria era o de relegar todas as negras à categoria de mulheres sexualmente agressivas, provendo assim uma justificativa poderosa para a proliferação da violência sexual, perpetrada por homens brancos, relatada pelas negras escravizadas. Mas Jezebel também serviu à outra função. Se era possível retratar as negras escravizadas como possuidoras de apetites sexuais excessivos, um aumento da fertilidade deveria ser esperado. Ao impedir que as mulheres afro-americanas cuidassem de seus próprios filhos, o que fortaleceria as redes da família negra, e ao forçar as negras escravizadas ao trabalho em plantações, a serem cuidadoras dos filhos dos brancos, a nutrir emocionalmente seus donos brancos, os proprietários dos escravos eficazmente conectaram as imagens predominantes da Jezebel e da mammy à exploração econômica inerente à instituição da escravidão.”[77]
Mas as negras escravizadas não são as únicas que foram colocadas fora do raio da feminilidade burguesa branca. Em Imperial Leather, ao relatar a forma como Colombo retratava a terra como se fosse um peito de mulher, Ann McClintock78[78] fala da “longa tradição da travessia masculina como uma erótica de violação”.[79]
“Por séculos, os continentes desconhecidos – África, as Américas, Ásia – foram imaginados eroticamente pela erudição europeia como libidinosamente eróticos. As histórias de viajantes estavam repletas de visões da sexualidade monstruosa das terras distantes onde, como contavam lendas, os homens tinham pênis gigantes e as mulheres se casavam com macacos, os peitos dos rapazes afeminados vertiam leite e os das mulheres militarizadas eram cortados por elas mesmas (…) Nessa tradição pornô-tropical, as mulheres apareciam como a epítome da aberração e dos excessos sexuais. O folclore as concebeu, ainda mais que aos homens, como entregues a uma venérea lascividade, tão promíscua que beirava o bestial.” [80]
McClintock descreve a cena colonial retratada em um desenho que data do século XVI, no qual Jan Van der Straet “retrata ‘o descobrimento’ da América como um encontro erotizado entre um homem e uma mulher”. [81]
“Roubada de sua languidez sensual pelo épico recém-chegado, a mulher indígena estende uma mão atraente e insinua sexo e submissão… Vespúcio, em uma missão quase divina, tem como destino inseminá-la com suas sementes masculinas da civilização, fecundar o terreno sem uso e reprimir as cenas rituais de canibalismo que foram pintadas como plano de fundo… Os canibais parecem mulheres e estão assando uma perna humana, fazendo-a girar enquanto está suspendida em um artefato que a atravessa.” [82]
Segundo McClintock, no século XIX, “a pureza sexual surgiu como uma metáfora controladora do poder político, econômico e racial”.[83] Com o desenvolvimento da teoria evolutiva, “começou-se a buscar critérios anatômicos que determinassem a posição relativa das raças na série humana”[84] e “o homem inglês de classe média foi colocado no pináculo da hierarquia evolutiva. Depois dele vinham as inglesas brancas de classe média. As trabalhadoras domésticas, as trabalhadoras das minas e as prostitutas da classe trabalhadora estavam no umbral entra a raça branca e a negra.”[85]
Yen Le Espíritu[86] nos conta que “as representações de gênero e sexualidade estão muito presentes na articulação do racismo. As normas de gênero nos Estados Unidos são pensadas a partir das e baseadas nas experiências de homens e mulheres de classe média e origem europeia. Essas normas produzidas a partir do eurocentrismo formam um conjunto de expectativas para homens e mulheres de cor na América do Norte – expectativas que o racismo não os permite cumprir. Em geral, os homens de cor não são vistos como protetores, e sim como agressores – uma ameaça para as mulheres brancas. E as mulheres de cor são vistas como hipersexuais e, portanto, como alguém que não precisa da proteção sexual e social outorgada às mulheres brancas de classe média. Mulheres e homens asiáticos-americanos também foram excluídos das noções culturais do masculino e do feminino – que se baseiam e se aplicam somente às pessoas brancas. Mas essa exclusão assume, aparentemente, uma forma diferente: os homens asiáticos são representados, por um lado, como hipermasculinos (o perigo amarelo) e, por outro, como afeminados (a “minoria modelo”); enquanto que as mulheres asiáticas foram convertidas tanto em hiperfemininas (a “boneca chinesa”) quanto em castradoras (a “dragoa”). “[87]
Esse sistema de gênero se consolidou com o avanço do(s) projeto(s) colonial(ais) da Europa. Ele começa a tomar forma durante o período das aventuras coloniais da Espanha e de Portugal e se consolida na modernidade tardia. O sistema de gênero tem um lado visível/iluminado e um oculto/obscuro. O lado visível/iluminado constrói hegemonicamente o gênero e as relações de gênero. Ele organiza apenas as vidas de homens e mulheres brancos e burgueses, mas dá forma ao significado colonial/moderno de “homem” e “mulher”. A pureza e a passividade sexual são características cruciais das fêmeas burguesas brancas, que são reprodutoras da classe e da posição racial e colonial dos homens brancos burgueses. Mas tão importante quanto sua função reprodutora da propriedade e da raça é exclusão das mulheres burguesas brancas da esfera da autoridade coletiva, da produção do conhecimento e de quase toda possibilidade de controle dos meios de produção. A fictícia e socialmente construída fraqueza de seus corpos e mentes cumpre um papel importante na redução da participação e retirada dessas mulheres da maioria dos domínios da vida, da existência humana. O sistema de gênero é heterossexualista, já que a heterossexualidade permeia o controle patriarcal e racializado da produção – inclusive de conhecimento – e da autoridade coletiva. Entre os homens e as mulheres burgueses brancos, a heterossexualidade é compulsória e perversa, provocando uma violação significativa dos poderes e dos direitos dessas mulheres e servindo para a reprodução do controle sobre a produção. As mulheres burguesas brancas são circunscritas nessa redução de suas personalidades e poderes através do acesso sexual obrigatório.
O lado oculto/obscuro do sistema de gênero foi e é totalmente violento. Começamos a entender a redução profunda dos anamachos, as anafêmeas e as pessoas do “terceiro gênero”. De sua participação ubíqua em rituais, processos de tomada de decisão e na economia pré-colonial, foram reduzidos à animalidade, ao sexo forçado com os colonizadores brancos e à uma exploração laboral tão profunda que, no mínimo, os levou a trabalhar até a morte. Quijano nos diz que “o vasto genocídio de índios durante as primeiras décadas da colonização não foi causado, a princípio, pela violência da conquista, nem pelas doenças que os conquistadores trouxeram. O que aconteceu, na verdade, é que os índios foram usados como força de trabalho descartável, e forçados a trabalhar até a morte”.[88]
Quero destacar a conexão que existe entre o trabalho das feministas que estou citando aqui ao apresentar o lado oculto/obscuro do sistema de gênero moderno/colonial e o trabalho de Quijano sobre a colonialidade do poder. Diferentemente das feministas brancas que não focaram no colonialismo, essas teóricas/os vêem a construção diferencial do gênero em termos raciais. Até certo ponto, elas entendem o gênero de maneira mais ampla que Quijano; por isso, não pensam apenas no controle do sexo, seus recursos e produtos, mas também no controle do trabalho, enquanto simultaneamente racializado e atribuído de gênero. Ou seja, reconhecem uma articulação entre trabalho, sexo e a colonialidade do poder. Oyewùmi e Allen, por exemplo, nos ajudam a perceber a extensão alcançada pelo sistema de gênero colonial/moderno na construção da autoridade coletiva, em todos os aspectos da relação entre capital e trabalho e na construção do conhecimento.
Temos trabalho feito e por fazer no detalhamento dos lados visível/iluminado e oculto/obscuro do que chamo sistema de gênero colonial/moderno. [89]Apresento essa organização social de maneira aberta para dar início a uma conversa e um projeto de investigação e educação popular coletiva e participativa, a partir dos quais talvez possamos começar a ver, em todos os seus detalhes, os processos do sistema de gênero colonial/moderno em sua longa duração, enredados à colonialidade do poder até hoje. Esse trabalho nos permite desmascarar essa cumplicidade e nos chama a recusá-la em suas múltiplas formas de expressão, ao mesmo tempo que retomamos nosso compromisso com a integridade comunal em uma direção libertária. Precisamos entender a organização do aspecto social para conseguirmos tornar visível nossa colaboração com uma violência de gênero sistematicamente racializada, e assim chegarmos a um inescapável reconhecimento dessa colaboração em nossos mapas da realidade.
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Texto publicado no livro “Pensamento feminista hoje: Perspectivas decoloniais“.  Originalmente publicado na revista Worlds and Knowledge Otherwise, vol. 2, dossiê 2, abril de 2008, Durham: Duke University, p. 1-17. Posteriormente publicado em versão modificada e traduzida para o espanhol por Pedro di Pietro, em colaboração com María Lugones, em Tabula rasa, nº 9, jul-dez de 2008, Bogotá: Universidade Colegio Mayor de Cundinamarca, p. 73-101. Tradução do espanhol de Pê Moreira.
María Lugones (1944-2020) foi filósofa, ativista, professora e teórica feminista argentina, Precursora do pensamento decolonial, Lugones lecionava na Universidade de Binghamton, em Nova York, nos departamentos de Literatura Comparada e Women’s Studies. Obteve seu doutorado em Filosofia e Ciência Política na Universidade de Wisconsin, Estados Unidos. Autora de importantes obtas, como Pilgrimages/Peregrinajes: Theorizing Coalition Against Multiple Opressions (2003) e Heterosexualism and the Colonial/Modern Gender System (2007).
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Notas
[1] Este artigo é produto de uma investigação realizada sobre a interseccionalidade de raça-classe gênero-sexualidade, conduzida pela autora na Universidade do Estado de Nova York, em Binghamton.
[2] Ao longo deste trabalho, uso o termo “mulheres de cor”, cunhado nos Estados Unidos por mulheres vítimas da dominação racial, como um termo de coalizão contras múltiplas opressões. Não se trata apenas de um marcador racial, ou de uma reação à dominação racial, ele é também um movimento solidário horizontal. “Mulheres de cor” é uma frase que foi adotada pelas mulheres subalternas, vítimas de diferentes dominações nos Estados Unidos. “Mulheres de Cor” não propõe uma identidade que separa, e sim aponta para uma coalizão orgânica entre mulheres indígenas, mestiças, mulatas, negras, cheroquis, porto-riquenhas, sioux, chicanas, mexicanas, pueblo – toda a trama complexa de vítimas da colonialidade do gênero, articulando-se não enquanto vítimas, mas como protagonistas de um feminismo decolonial. A coalizão é uma coalizão aberta, com uma intensa interação intercultural.
[3]Introduzo o neologismo “categorial” para marcar as relações entre categorias. Não quero dizer “categórico”. Por exemplo, podemos pensar na velhice como uma etapa da vida. Mas também podemos pensá-la como uma categoria relacionada ao desemprego, e podemos nos perguntar se o desemprego e a velhice podem ser compreendidos separadamente. Temos pensado gênero, raça, classe como categorias. Como tais, as temos pensado binariamente: homem/mulher, branco/negro, burguês/proletário. As análises em categorias têm escondido a relação de intersecção entre elas, e, assim, invisibilizado a situação violenta da mulher de cor – pensada apenas como uma parte do que passam as mulheres (brancas) e os negros (homens). A separação categorial é a separação de categorias que são inseparáveis.
[4] Existe uma literatura extensa e influente sobre interseccionalidade, como: Elizabeth Spelman, Inessential Woman. Boston: Beacon Press, 1998; Elsa Barkley Brown, “Polyrhythms and Improvisations”, in History Workshop 31, 1991; Kimberlé Crenshaw, “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color.”, in Kimberlé Crenshaw, Neil Gotanda, Gary Peller, and Kendall Thomas (eds.), Critical Race Theory, New York: The New Press, 1995; Yen Le Espiritu. “Race, class, and gender in Asian America.”, in Elaine H. Kim, Lilia V. Villanueva y Asian Women United of California (eds.), Making More Waves. Boston: Beacon Press, 1997; Patricia Hill Collins, Black Feminist Thought. New York: Routledge, 2000, e María Lugones, Pilgrimages/Peregrinajes: Theorizing Coalitions Against Multiple Oppressions. Lanham: Rowman & Littlefield, 2003.
[5] Historicamente, não se trata simplesmente de uma traição dos homens colonizados, mas de uma resposta a uma situação de coerção que tomou todas as dimensões de uma organização social. A investigação histórica de por que e de  como se deram as alterações das relações comunais a partir da introdução da subordinação da mulher colonizada em relação ao homem colonizado, e de por que e como esse homem responde a essa introdução, formam uma parte imprescindível da base do feminismo decolonial. A questão aqui é por que essa cumplicidade forçada continua existindo na análise contemporânea do poder.
[6] Aos trabalhos já mencionados, quero adicionar: Valerie Amos e Pratibha Parmar, “Challenging Imperial Feminism”, in Kum-Kum Bhavnani (ed.), Feminism and “Race”. Oxford: Oxford University Press, 1984; Audre Lorde, The master’s tools will never dismantle the master’s house, in Sister outsider. Trumansburg, N.Y.:The Crossing Press, 1984; Paula Gunn Allen, The Sacred Hoop. Recovering the Feminine in American Indian Traditions. Boston: Beacon Press, 1986; Gloria Anzaldúa, Borderlands/la Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Aunt Lute, 1987; Anne McClintock, Imperial Leather. Race, Gender and Sexuality in the Colonial Contest. New York: Routledge, 1995; Oyéronké Oyewùmi , The Invention of Women. Making an African Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis: University of Minnesota Press,1997; e o de M. Jacqui Alexander e Chandra Mohanty (eds.), Feminist Genealogies, Colonial Legacies, Democratic Futures. New York: Routledge, 1997.
[7] Aníbal Quijano, “Colonialidad del poder, globalización y democracia.”, in Revista de Ciencias Sociales de la Universidad Autónoma de Nuevo León, Año 4, Números 7 e 8, Septiembre-Abril, 2001-2002; Aníbal Quijano, “Colonialidad del Poder y Clasificacion Social”, Festschrift for Immanuel Wallerstein, part I, Journal of World Systems Research, V. XI:2, summer/fall, 2000b; Aníbal Quijano, “Colonialidad del poder, eurocentrismo y America latina”, in Colonialidad del Saber, Eurocentrismo y Ciencias Sociales. 201-246. CLACSO-UNESCO, Buenos Aires, 2000a.
[8] Aníbal Quijano escreveu prolificamente sobre a temática. A interpretação que apresento vem dos já citados trabalhos em 2000a; 2000b, 2002, e também de “Colonialidad, modernidad/racionalidad”, in Perú Indígena, vol. 13, 29:11-29, 1991.
[9] A educação popular é um método coletivo possível para explorarmos criticamente esse sistema de gênero em seus grandes traços e, o que é mais importante, entendê-lo em sua detalhada concretude espaço-temporal, para assim nos movermos rumo a uma transformação das relações comunais.
[10] Quijano entende a raça como uma ficção. Para marcar esse caráter fictício, sempre coloca o termo entre aspas. Quando escreve “europeu” e “índio” também entre aspas é porque fala de uma classificação racial.
[11] Aníbal Quijano, op. cit., 2001-2002, p. 1.
[12] Aníbal Quijano, op. cit., 2000b, p. 342.
[13] Aníbal Quijano, op. cit. 2001-2002, p. 1.
[14] Aníbal Quijano, op. cit., 2000b, p. 367.
[15] Aníbal Quijano, ibid., p. 342.
[16] Aníbal Quijano, op. cit., 2001-2002, p. 1.
[17] Aníbal Quijano, op. cit., 2000b, p. 381.
[18] Aníbal Quijano, ibid., p. 349.
[19] Aníbal Quijano, ibid., p. 343.
[20] Idem.
[21] Idem.
[22] Aníbal Quijano, ibid., p. 343-344.
[23] Aníbal Quijano, ibid., p. 355.
[24] Ao abandonar o uso das aspas em “raça”, minha intenção não é marcar um desacordo com Quijano a respeito da sua qualidade fictícia. O que quero é começar a enfatizar a qualidade fictícia do gênero, incluindo a “natureza” biológica do sexo e da heterossexualidade.
[25] Ver meu livro Pilgrimages/Peregrinajes (2003) e “Radical Multiculturalism and Women of Color Feminisms” (sf) para uma abordagem dessa lógica.
[26] Aníbal Quijano, op. cit., 2000b, p. 378.
[27] Não encontrei um resumo desses atributos no trabalho de Quijano. Assim, não sei se ele fala de combinações cromossômicas ou das genitálias e das características sexuais secundárias, como os seios.
[28] Aníbal Quijano, op. cit., 2000b, p. 373.
[29]  Quero destacar que Quijano, em seu artigo “Colonialidad del poder y clasificación social” (2000b), não chama essa sessão de a colonialidade do sexo, mas de a colonialidade do gênero.
[30] Julie Greenberg, “Definitional Dilemmas: Male or Female? Black or White? The Law’s Failure to Recognize Intersexuals and Multiracials”, in Toni Lester (ed.) Gender Nonconformity, Race, and Sexuality. Charting the Connections. Madison: University of Wisconsin Press, 2002.
[31] A relevância das disputas legais contemporâneas sobre a designação de um gênero a indivíduos intersexuais deveria ser clara, já que o padrão de Quijano inclui a contemporaneidade.
[32]  Julie Greenberg, op. cit. p. 112; Anne Fausto Sterling (2000), teórica feminista e bióloga investiga essa questão a fundo. Ver Sexing the Body: Gender Politics and the Construction of Sexuality. Nova York: Basic Books, 2000, p.112.
[33] Julie Greenberg, op. cit. p. 112.
[34] Julie Greenberg, ibid., p. 113.
[35] Julie Greenberg, ibid., p. 112.
[36] Julie Greenberg, ibid., p. 114.
[37] Julie Greenberg, ibid., p. 115.
[38] Julie Greenberg, ibid., p. 119.
[39] Anne McClintock sugere que o colonizador sofre de ansiedades e temores diante do desconhecido que tomam uma forma sexual, um medo a ser devorado sexualmente.
[40] Ver Anne McClintock, op. cit.
[41] Paula Gunn Allen, op. cit.
[42] Oyéronké Oyewùmi, op. cit.
[43] Oyéronké Oyewùmi, ibid., p. 20.
[44] Oyéronké Oyewùmi, ibid., p. 31.
[45] Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, ibid., p. 30.
[46] Oyéronké Oyewùmi, ibid., p. 32.
[47] Oyéronké Oyewùmi, ibid., p. 31.
[48] Oyéronké Oyewùmi, ibid., p. 32-33.
[49] Oyéronké Oyewùmi, ibid., p. 34.
[50] Oyéronké Oyewùmi, ibid., p. 123-25.
[51] Oyéronké Oyewùmi, ibid., p. 156.
[52] Paula Gunn Allen, op. cit. p 14.
[53] Paula Gunn Allen, ibid., p. 26.
[54] Paula Gunn Allen, ibid., p. 13.
[55] Paula Gunn Allen, ibid., p. 41.
[56] Idem.
[57] Paula Gunn Allen, op. cit. p. 42.
[58] Idem.
[59] Idem.
[60] Idem.
[61] Paula Gunn Allen, op. cit. p. 18.
[62] Paula Gunn Allen, ibid., p. 196.
[63] Paula Gunn Allen, ibid., p. 37.
[64] Paula Gunn Allen, ibid., p. 36-37.
[65] Allen usa a palavra “lesbianismo”, um termo problemático por sua ascendência europeia e que em sua acepção e usos contemporâneos pressupõe uma distinção dimórfica e uma dicotomia de gênero não pressupostas na organização social e cosmologia indígenas a que a autora se refere.
[66] Michael Horswell, “Toward and Andean Theory of Ritual Same-Sex Sexuality and Third-Gender Subjectivity.”, in Pete Sigal (ed.) Infamous Desire. Male Homosexuality in Colonial Latin America. Chicago and London: University of Chicago Press, 2003, p. 25-69.
[67] Michael Horswell, op. cit. p. 27.
[68] Idem.
[69] Pete Sigal, “Gendered Power, the Hybrid Self, and Homosexual Desire in Late Colonial Yucatan.”, in Pete Sigal (ed.) Infamous Desire. Male Homosexuality in Colonial Latin America. Chicago and London: The University of Chicago Press, 2003, p. 104.
[70] Pete Sigal, op. cit.
[71] Pete Sigal, ibid., p. 102-104.
[72]Estou convencida de que as pessoas que lerem este trabalho reconhecerão o que estou dizendo e que algumas talvez pensem que tudo isso já foi colocado. Não tenho nenhum problema com isso, pelo contrário, desde que essa afirmação venha acompanhada de um reconhecimento teórico e prático dessa constituição mútua, um reconhecimento que se mostre em todo o trabalho teórico, prático e teórico-prático propostos. Ainda assim, acredito que o novo em meu trabalho seja minha abordagem da lógica da interseccionalidade e meu entendimento sobre a construção mútua da colonialidade do poder e do sistema de gênero colonial/moderno. Ambos os modelos epistêmicos são necessários, mas somente a lógica da construção mútua é a que abre espaço para a raça e o gênero serem entendidos de maneira inseparável.
[73] É importante diferenciar o que significa ser pensado como se não tivesse gênero por ser um animal e o que significa não ter, nem mesmo conceitualmente, nenhuma distinção de gênero. Ou seja, ter um gênero não é uma característica humana que existe para todo mundo.
[74] O que me fez pensar nesse argumento foi a interpretação que Elizabeth Spelman, op. cit. faz da diferença aristotélica entre os homens e mulheres livres na pólis grega e os homens e mulheres escravizados. É importante notar que reduzir as mulheres à natureza ou ao natural é colaborar, confabular, com uma redução racista das mulheres colonizadas. Mais de um dos pensadores latino-americanos que denunciam o eurocentrismo relacionam as mulheres com o sexual e o reprodutivo.
[75] Na série evolutiva a que se refere Anne McClintock, op. cit. p. 4, é possível ver uma distinção muito bem marcada entre as mulheres brancas e as não-brancas da classe trabalhadora devido aos lugares muito diferentes que ocupam na série.
[76] Ronald Takaki, A Different Mirror. Boston: Little, Brown, and Company, 1993, p.111.
[77] Patricia Hill Collins, op. cit. p. 82.
[78] Anne McClintock, op. cit.
[79] Anne McClintock, ibid., p.
[80] Idem.
[81] Anne McClintock, op. cit. p. 25.
[82] Anne McClintock, ibid., p. 26.
[83] Anne McClintock, ibid., p. 47.
[84] Anne McClintock, ibid., p. 50.
[85] Anne McClintock, ibid., p. 56.
[86] Yen Le Espiritu, op. cit.
[87] Yen Le Espiritu, ibid., p. 135.
[88] Aníbal Quijano, op. cit. 2000a.
[89] Agora começo a ver uma zona intermediária e ambígua entre o lado visível/iluminado e oculto/obscuro que concebe/imagina/constrói as mulheres brancas serventes, mineiras, lavadeiras, prostitutas – trabalhadoras que não produzem mais-valia –  como seres que não podem ser captados pelas lentes do binário sexual ou de gênero e que, assim, são racializadas de forma ambígua, já não como brancas ou negras. Ver Anne McClintock, op. cit. Estou trabalhando para incluir essa complexidade crucial no atual momento do meu trabalho

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