Alexandra Lucas Coelho: uma escritora entre muitos mundos, por Pedro Meira Monteiro

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Alexandra Lucas Coelho: uma escritora entre muitos mundos
por Pedro Meira Monteiro

Alexandra Lucas Coelho é uma das vozes literárias mais interessantes hoje em Portugal. Seu premiado trabalho como jornalista, ensaísta e ficcionista é simplesmente maravilhoso. Autora de diversos livros, seus interesses se derramam sobre o mundo de fala portuguesa – Brasil, Portugal, África e Ásia –, assim como abrangem questões contemporâneas urgentes como o deslocamento forçado, as crises de refugiados, a guerra e, mais amplamente, a relação entre o Oriente Médio e o resto do mundo.
A primeira vez que conheci Alexandra Lucas Coelho foi por meio da leitura de seus ensaios e peças jornalísticas publicadas no jornal português Público, para o qual ela contribuía como correspondente na Europa Oriental e no Oriente Médio, incluindo reportagens sobre guerra e zonas de conflito em lugares como Bósnia, Síria e Afeganistão, apenas para citar alguns. Mais tarde conheci seu trabalho ficcional, no qual se notam as marcas de suas andanças pelo mundo e suas meditações sobre violência, gênero, raça e a condição humana nos cenários mais precários.
Alexandra Lucas Coelho é, acima de tudo, uma ardorosa defensora dos direitos humanos. Ao ler seu trabalho, percebe-se a vívida elaboração literária que o precede. Ela se equilibra com graça na tênue linha que conecta o relato pessoal ao objetivo. Em seus livros, salta aos olhos a trajetória pessoal como caminho privilegiado para a compreensão das mais complexas histórias locais. Ao fim de tudo, fica claro não haver política sem as vidas e as expectativas de pessoas reais. Crianças, adultos e idosos são capturados em sua beleza e seus infortúnios, entre a esperança e o desespero.
A produção de Alexandra é, neste sentido, um grande painel desses infortúnios, embora ela capture também a alegria efêmera que pode às vezes compensar o sofrimento. Entretanto, é seu texto que, conduzido por um soberano espírito ensaístico, dá a esses retratos a vida que muitos relatos “imparciais” são incapazes de transmitir.
Para tornar meu comentário mais concreto, recordo brevemente o começo de seu “Oriente Próximo” – livro com título delicioso, publicado em 2007 pela editora portuguesa Relógio D’Água –, que contém, entre outros, relatos do tempo em que Alexandra esteve entre israelenses e palestinos. (Devo acrescentar que o Rio de Janeiro e Jerusalém são dois dos principais locais de memória onde Alexandra Lucas Coelho vai buscar ar fresco para seus relatos, nos quais se entrelaçam as histórias do seu próprio contato com as pessoas do local, que pronto se tornam suas personagens.)
O início de “Oriente Próximo” é primoroso: Valentine Vester, proprietária de um hotel, é a única pessoa viva numa história de mortos… Uma observação aparentemente despretensiosa como esta abre caminho para uma fabulosa reflexão sobre a metafísica, a fisicalidade do mundo, as crenças religiosas, a fé e a falta de esperança, as guerras e os messias, tudo entrelaçado de forma a revelar a densa e conflituosa história da região, que ocupa os relatos escutados naquele lugar: um velho prédio que fora o palácio de um melancólico paxá sem filhos e depois se transformou numa espécie de colônia americana, para finalmente tornar-se o elegante hotel que hospedaria atores, escritores, políticos e diplomatas, até finalmente acolher a jornalista em viagem.
As primeiras páginas de “Oriente Próximo” são um bom exemplo da maestria narrativa de Alexandra Lucas Coelho: as histórias – só Deus sabe se são “verdade” ou não – contadas pelas pessoas se entremeiam aos casos do lugar, que percebemos, uma vez mais, povoado pelos vivos e pelos mortos. Valentine Vester, agora à frente do American Colony Hotel, em Jerusalém, merece o mais bonito retrato: uma mulher inglesa rodeada por lembranças e livros, ela mesma fruto de uma complexa história imperial e colonial que se desdobra diante dos nossos olhos graças à destreza poética da autora. Por um lado, a prosa de Alexandra Lucas Coelho se constrói sobre a capacidade de escutar as pessoas, o que imediatamente faz pensar nos seus projetos de rádio, que bem podem explicar um pouco dessa abertura. Por outro lado, as trajetórias pessoais habilmente retratadas iluminam a longa duração da história. Diante de nós está o relato literário da história do mundo, discretamente disfarçado em reportagem jornalística.
A obra de Alexandra Lucas Coelho não cabe numa única categoria. Ainda assim, pode ser útil comentar um de seus últimos romances, “Deus-dará”. Publicado no Brasil no ano passado, pela Bazar do Tempo, nele se anuncia o personagem elusivo que, segundo ela, será o protagonista de um de seus próximos romances, “Levante”. Trata-se de uma figura indescritível: Karim Farah, um brasileiro com ascendência síria que retorna a sua terra natal durante a guerra.
No entanto, antes ainda de comentar “Deus-dará, lembro não haver nem sombra de orientalismo em seu relato do Oriente Médio. Na verdade, o trabalho de Alexandra pode ser visto como uma abordagem anti-orientalista do Oriente Médio, uma espécie de movimento vigoroso em direção àquele outro mundo, o que termina por abolir quase por completo a sua “outridade”. Na mesma toada, chamo atenção para o também notável “Caderno Afegão”, publicado em 2009, com várias edições subsequentes.
Deus-dará é o exemplo cristalino da destreza de Alexandra Lucas Coelho em misturar referências históricas a comentários políticos e culturais. Sete personagens e sete dias, precedendo a Copa do Mundo de 2014 no Rio de Janeiro: este é o território habitado pelas pessoas que representam uma grande variedade de figuras urbanas, que vão do expatriado, o recém-chegado e o político ativista ao escritor frustrado, o acadêmico, o jovem idealista e o velho cético, todos navegando no complexo e dividido espaço da cidade, suas memórias, sua paisagem musical, seus aspectos mais provincianos e os mais cosmopolitas. Tal variedade de personagens, lugares e músicas se juntam num painel que, repito, resiste vigorosamente a qualquer exotização. “Deus-dará” não oferece um simples retrato alegórico do Brasil, observação aliás que vale também para o livro mais recente de Alexandra Lucas Coelho, “Cinco voltas na Bahia e um beijo para Caetano Veloso”, que é um aceno e também uma resposta à necessidade de ampliar os Brasis que se estampam nos seus retratos, sempre vivos, jogados entre perguntas sibilinas e respostas que ao mesmo tempo revelam e despistam, como em toda boa literatura.
Voltando a “Deus-dará, o que à primeira vista poderia parecer-se a um relato sociológico sobre as classes sociais, transforma-se num retrato literário e humano de um dos mais intensos momentos da história política do Brasil. Em 2013, enormes multidões tomaram as ruas das principais cidades do país – em uma série de protestos que, à primeira hora, alguns não hesitaram em comparar à Primavera Árabe, ou então ao movimento Occupy –, dando início a um difuso e poderoso clamor contra os megraprojetos que sustentavam a visão grandiosa do Rio de Janeiro e do Brasil como anfitriões da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. O romance de Alexandra Lucas Coelho é uma análise aguda das vidas reais que foram levadas ao turbilhão social iniciado em 2013. Como sabemos em retrospecto, aquele momento tão rico e enigmático (o que exatamente leva milhares de pessoas às ruas em apenas alguns dias?) acabou por desestabilizar o equilíbrio político que havia moldado a década anterior no Brasil, quando houve uma mobilidade social inédita num país marcado pelo legado da escravidão e do colonialismo, mas marcado também por uma terrível desigualdade na distribuição de renda e alarmantes níveis de corrupção nas esferas pública e privada. Desse imbróglio que o livro desvela, descendemos todos nós que olhamos para o Brasil autoritário com inquietação e curiosidade.
Deus-dará é o retrato acabado daqueles tempos turbulentos no Brasil, vistos por meio de uma teia de histórias pessoais e de um quadro histórico maior, que é sutilmente analisado em seus aspectos nacionais e globais. A autora trabalha admiravelmente com diferentes escalas: a macro-história de um país pós-colonial e as pequenas histórias cujos significados escapam ao discurso da nação moderna. Nada disso seria possível sem os comentários irônicos do “narrador transatlântico”, que ao fim descobrimos ser o fantasma de um dos primeiros colonizadores portugueses, ele mesmo uma criatura híbrida, localizada entre o passado e o presente, entre Portugal e seu falido sonho colonial, isto é, o Brasil. Um narrador que não esconderá ter-se apaixonando por um dos personagens de seu próprio livro. Como o Brás Cubas de Machado de Assis, trata-se de um narrador não confiável, e ainda assim não se pode evitar certa dose de simpatia por sua alegria e sua doce oscilação entre o encanto e o desencanto.
Reforço, ainda uma vez, o balanço delicado que permite a Alexandra Lucas Coelho evitar a armadilha da “alegorização” da história do Brasil. O feliz encontro entre o comentário social e histórico e a trama ficcional em “Deus-dará é resultado da habilidosa construção de um narrador que não é nem objetivo, nem completamente comprometido com os assuntos de que fala. O narrador tira sarro de si mesmo, enquanto olha para a história do Brasil e para os espaços do Rio de Janeiro com um misto de ironia, desapego, ceticismo e fascinação. Entretanto, insisto, não se trata do olhar acrítico de um estrangeiro fascinado. Ao contrário, o narrador é responsável pela mais eloquente desconstrução do colonialismo português, do qual o Brasil é uma enorme e desconcertante consequência tropical.
Em suma, “Deus-dará é a contra-fábula da colonização, um delicado retrato ficcional do Rio de Janeiro, capaz de minar a razão colonial que ainda sustenta muitas das atrocidades do mundo. Ainda assim, uma das melhores formas de ler este livro – e talvez os demais livros de Alexandra Lucas Coelho – se dá quando compreendemos que ele é também uma carta de amor, enviada, de perto e de longe, para a cidade e seus habitantes.

Pedro Meira Monteiro é professor titular de literatura e cultura brasileira na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. É autor, entre outros, de “Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil” (Hucitec, 2015) e “Conta-gotas: máximas e reflexões” (E-galáxia, 2016). Em 2021 a Relicário publicará “Nós Somos Muitas: Ensaios sobre Crise, Cultura e Esperança”, em parceria com Rogério Barbosa, Flora Thomson-DeVeaux e Arto Lindsay.

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