Agir na natureza
Eduardo Jardim
Uma amiga, que mora junto à encosta do Corcovado, me ligou aflita mas bem humorada para me contar que durante a noite os macacos tinham invadido sua cozinha, feito uma grande bagunça e tinham levado pães e bananas que ela tinha deixado sobre a mesa. Não é o primeiro relato que ouço sobre essa mudança do comportamento desses bichinhos, às vezes nem tão bichinhos, nos tempos da pandemia. Vejo no Facebook fotos de aves exóticas que pousaram na varanda de apartamentos em São Paulo, de lobos brincando no meio de uma rua em Sidney e muitas outras cenas. Algum desequilíbrio se introduziu entre os moradores das ruas e os das matas da cidade.
O telefonema me pegou no dia em que estava lendo a entrevista do epidemiologista Robert Wallace sobre o surto do coronavírus. Rob Wallace é referência para um grande grupo de cientistas e de ativistas pelo fato de ter focado seu trabalho na relação entre o avanço da agroindústria e o surgimento das várias pandemias surgidas nas últimas décadas. Seu prestígio não alcança só o Ocidente. Um grupo de oposicionistas chineses publicou um extenso relatório “Contágio Social – Guerra de classes microbiológica na China”, baseado nas suas teses. O principal livro de Rob Wallace, chamado sugestivamente Big farms make big flu (Grandes fazendas fazem grandes gripes) é anterior à chegada do novo coronavírus, mas ultimamente, em um artigo e numa entrevista, ele deu seu depoimento sobre a situação atual.
Rob Wallace não é dos que chamam o vírus de chinês nem acha que ele foi criado em algum laboratório do mal. Ele admite como quase todo mundo que o vírus foi transmitido ao homem por outras espécies animais, possivelmente um morcego e um pangolim, um pequeno mamífero silvestre, em um processo chamado de transferência zoonótica, no mercado de alimentos Huanan, em Wuhan, na China. Assim, ele não acrescenta novidade às versões divulgadas na imprensa.
Sua preocupação tem sido com o fato de que cada surto epidêmico recente tem sido erroneamente visto de forma isolada, e não como parte de um novo sistema de capitalização da agricultura que envolve o mundo inteiro e mais particularmente a parte sul do globo terrestre. Claro, é preciso recorrer a várias mediações para aproveitar alguns insights de Marx e de Engels, no século XIX, valorizados pelos ativistas de hoje, como em “O capital” e, sobretudo, em “A situação da classe operária na Inglaterra”, de Engels, na abordagem da nova pandemia. Isso inclusive para justificar chamar de capitalista o sistema chinês. O que caracteriza a avaliação dos novos autores e ativistas é que a pandemia passa a ser vista a partir de critérios econômicos. A globalização dividiu o mundo em Norte e Sul. No Norte rico estão o capital e a sede das grandes empresas multinacionais que regem a economia da Terra. Para o Sul foram transferidas as indústrias poluentes e, sobretudo, o agronegócio que alimenta a população da Terra. Nesse contexto que começou a se desenhar nos últimos anos do século passado, uma série de iniciativas condicionou o aparecimento e o alastramento das novas epidemias e, particularmente, da Covid 19. Alguns fatores mencionados pelos analistas são: a expansão territorial do agronegócio global que aumentou a suscetibilidade para se transmitir doenças zoonóticas de animais selvagens para animais domésticos e para humanos; a destruição dos hábitos silvestres e as alterações das atividades de espécies selvagens; a expulsão das populações rurais para os conglomerados urbanos, as nossas favelas, no entorno dos grandes centros. A presença desses fatores pode ser observada na China, em outros países da Ásia, da África e da América Latina, com destaque para o Brasil.
No caso do coronavírus, dois fatores podem ter contribuído para o início de seu alastramento. O comércio de animais silvestres se tornou extremamente rentável, mesmo com as medidas recentes que tentaram restringi-lo. Também, com a expansão da agroindústria, os produtores de alimentos silvestres foram obrigados a penetrar em territórios que abrigam vírus até então desconhecidos.
Segundo os seguidores de Rob Wallace, para se entender a pandemia da Covid -19 seria preciso vê-la como resultante de uma crise do capitalismo considerado sob triplo aspecto – o ecológico, o epidemiológico, e o econômico. Apesar de apresentarem o cenário atual como o de uma catástrofe, os ativistas apostam em uma virada. Não explicitam como isso se dará, mas acreditam que o futuro da humanidade no século XXI não irá se basear no aumento da atividade econômica, nem na exploração/expropriação ecológica, no imperialismo ou na guerra. Preferem confiar no que Marx chamou de “liberdade em geral” e na preservação de um “metabolismo planetário” viável. Essas seriam as mais prementes necessidades do mundo atual que devem determinar o presente e o futuro do homem, e, até mesmo, sua sobrevivência.
As propostas de Rob Wallace e de outros cientistas e ativistas supõem o abandono da forma atual de produção de alimentos, o que implicaria em uma revolução mundial. Elas envolvem também uma redefinição da relação do homem com a natureza e a defesa de uma nova forma de naturismo.
A discussão desse esse último ponto pode ser enriquecida com o recurso a um ensaio clássico de Hannah Arendt, “O conceito de história – antigo e moderno”, incluído em Entre o passado e o futuro, cuja edição é de 1961, e que foi um dos primeiros livros da autora traduzidos no Brasil. A vantagem da abordagem arendtiana é que ela desloca a discussão da oposição entre capitalismo e socialismo para um contexto mais abrangente, que tem a ver com a intervenção da ação humana no ambiente natural. Para chegar a esse ponto, ela toma os vários modos como a humanidade, desde a Antiguidade, concebeu o que é a história, o que sempre envolveu uma visão da natureza.
Foram três os momentos dessa trajetória.
Na Antiguidade grega, a natureza foi vista como imortal e os homens, tomados individualmente, eram mortais. Todo o esforço da historiografia antiga foi de garantir alguma forma de imortalidade para os humanos que os aproximaria da natureza imortal. Para isso, os feitos humanos precisariam ser dotados de grandeza. Sendo grandes, mereceriam seu registro por historiadores e poetas e, assim, teriam seu quinhão de imortalidade. Enquanto houvesse memória, os feitos humanos poderiam ser lembrados, e, de algum modo, imortalizados. Mnemósine, a entidade que encarna a memória, era invocada pelos historiadores.
A cristandade não deu importância aos assuntos humanos ou à história. Interessava-lhe o que estava situado além da história. O homem era mortal, apenas com a morte ele teria acesso à imortalidade.
No Renascimento, a noção de história recuperou importância, levando em conta, de novo, a relação com a natureza, definida agora em novos termos. A ciência antiga acreditava que a realidade pudesse ser apreendida pela contemplação. Em contraste, as modernas ciências da natureza são ativas. A natureza se revela quando provocada por uma questão – o experimento feito pelo cientista. A concepção de que a natureza é um processo também é moderna.
O homem, na Era Moderna, foi visto como homo faber, isto é, como um fabricador. Ele toma um material dado e, com seus instrumentos, produz artefatos que são o resultado do processo de fabricação. A Era Moderna é marcada pela enorme produtividade do homo faber. Uma civilização se desenvolveu com base na escolha de matérias primas, as quais são manipuladas com instrumentos, com vistas à produção de artefatos, que podem também se tornar mercadorias.
Para nossa discussão, interessa o terceiro passo na definição de história, correspondente ao mundo contemporâneo. Na atualidade, de novo está em jogo a relação entre a natureza e a história. Para Hannah Arendt, atualmente, já não é mais apenas o homo faber que intervém na natureza produzindo artefatos. Uma outra capacidade do homem – a ação – é convocada. A ação é a capacidade humana não de intervir em processos, mas de dar início a eles. Ao longo da história humana, a ação esteve restrita ao âmbito das relações dos homens entre si. Ela é a matéria da vida política. Dois traços mais importantes caracterizam a ação. Os processos que ela inicia são irreversíveis e imprevisíveis.
Com alguma perplexidade, Hannah Arendt se interrogou sobre esse mundo no qual a tecnologia possibilita criar processos, da mesma forma como o agir, e não apenas operar sobre eles.
Isso significa dar início na natureza a processos que não podemos reverter ou mesmo interromper. Aquilo que era próprio da esfera das relações entre os homens, isto é, a irreversibilidade e a imprevisibilidade, passa a ser incorporado à natureza.
Hannah Arendt viveu a tempo de tomar conhecimento da fissão do átomo e anteviu o que viria a acontecer na engenharia genética. O prólogo do seu livro “A condição humana” é uma interrogação sobre o que estamos fazendo. Se vivesse hoje, é possível que abordasse as novas tecnologias, as novas pandemias, e até os animais selvagens que são vistos nas cidades com preocupação.
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Eduardo Jardim é filósofo e escritor. Foi professor de filosofia na PUC-Rio entre as décadas de 1970 e 2010. Escreveu livros sobre modernismo no Brasil. Em 2015, lançou a biografia Eu sou trezentos – Mário de Andrade, vida e obra, vencedor do Prêmio Jabuti de Melhor Livro do Ano de Não Ficção. Pesquisou o pensamento de Hannah Arendt e Octavio Paz, colaborando na divulgação de suas obras e publicou sobre eles: A duas vozes – Hannah Arendt e Octavio Paz (2007) e Hannah Arendt – pensadora da crise e de um novo início (2011). Traduziu a coletânea de ensaios A busca do presente, do escritor mexicano Octavio Paz (2017), parte da coleção Ensaios contemporâneos, que dirige na editora Bazar do Tempo. Autor dos recentes livros Tudo em volta está deserto e A doença e o tempo – aids, uma história de todos nós.
Texto escrito para Pensar o tempo, em junho de 2020.