RESPIRAMOS, por Alexandra Lucas Coelho

RESPIRAMOS
Alexandra Lucas Coelho
1. Sábado, 6 de Junho de 2020, foi uma tarde histórica em Lisboa. Mais gente do que nunca, e do que qualquer previsão, desfilou contra o racismo desde o interior da cidade até ao rio, de onde partiam as naus. “Há 500 anos que não respiramos”, dizia um dos cartazes. Eram milhares de cartazes, largos milhares de pessoas. Da frente, não se avistava o fim. Parando a ver, demorava. Uma maré, vários sotaques, todas as cores de pele, corpo e coro, periferia e cidade, muitíssimos jovens, eles-elas-elxs: promessa de ar. A rua já é deles, o futuro será da rua.
2. Bom ver tantos brancos darem corpo ao antirracismo, fazer disso o ponto de partida mínimo. E vê-los corpo-a-corpo com tantos negros como raramente se terá visto numa manif neste país. Portugueses afrodescendentes, ou africanos residentes em Portugal, vindos por exemplo da periferia mais populosa, a Linha de Sintra, que passou a ser o meu comboio quando deixei de morar no centro de Lisboa. Foi a primeira vez que vi isso de forma tão clara a caminho de uma manifestação: cada vez mais pele negra, cabelos afro, black powers, talvez sobretudo mulheres, entrando nas estações do Cacém ou da Amadora com cartazes.
Uma linha de comboio que durante esta quarentena andou lotada a várias horas com todas aquelas pessoas que não se puderam dar ao luxo de ficar em casa, porque trabalham em limpezas, em entregas, na recolha do lixo, nas caixas dos supermercados. Como lotados andaram autocarros da periferia.
Por causa da quarentena suprimiram-se transportes de uma forma que levou os mais pobres a correrem os riscos que era suposto a quarentena evitar. Contradições longe da vista da Lisboa cool, que no auge da quarentena tão bem cuidou de ficar em casa, e da distância de segurança. Segurança para quem, à custa de quem? Essa Lisboa não anda apertada em transportes da periferia, e os líderes políticos muito menos.
3. Mas não foi por cegueira nem falta de informação que o líder do segundo partido mais votado do país, Rui Rio (PSD), nos insultou a todos depois do protesto de sábado. Foi por falta de escrúpulos mesmo, tão ansioso está em roubar eleitorado aos xenófobos populistas à sua direita. Primeiro, classificou o protesto como “promovido por forças de esquerda”, quando aquela multidão inédita respondeu ao apelo de várias redes antirracistas e ecologistas. Ficámos a saber que para Rio tudo isso é de esquerda, deduzindo-se pois que a direita (dele) abdica de lutar pelos negros e pelo futuro do planeta. E a partir daí foi só a descer: “Ainda entendo na América onde aquilo [o assassinato de George Floyd por um polícia] aconteceu, agora aqui em Portugal, mas a que propósito? Ainda ficamos é racistas com tanta manifestação antirracista, não noto isso na sociedade portuguesa, não há racismo na sociedade portuguesa.”
Dos manuais escolares à nomenclatura urbana, das estátuas aos políticos, passando pelas caixas de comentários, Portugal continua a ter dificuldade em lidar com o seu passado colonial, com a sua história de potência esclavagista fundadora do tráfico tri-atlântico, com as heranças de tudo isso na vida dos cidadãos negros hoje, e da forma como estão continuamente sujeitos à violência institucional, nomeadamente da polícia. Sendo que em dez anos nenhum polícia em Portugal foi condenado por racismo, e 75 por cento das queixas são arquivadas.
Mas, no espectro dos partidos que têm governado, não tenho memória de um líder ter ido tão longe no negacionismo. Sintoma dos choques que aí vêm, da degradação do centrão político, de como facilmente ele vai petiscar no lixo.
O horizonte de Rui Rio como possível governante devia acabar aqui. Ele não é alguém que não vê. É alguém que escolhe não ver uma parte dos seus concidadãos, e, portanto, da democracia. Portanto, de todos.
4. Portugal é o país que em 2017 inaugurou uma estátua do Padre António Vieira, no centro histórico da sua capital, em que Vieira nos aponta o crucifixo conversor e tem indiozinhos a seus pés. Uma estátua celebrando o anti-esclavagista selectivo que foi Vieira, protegendo os índios convertidos, enquanto os negros eram entregues ao cativeiro. Em 2017, com o presidente da câmara a abençoar a inauguração, ergueu-se assim uma estátua ao que em Vieira se adequou ao poder e ao tempo, ao que ele foi incapaz de não ser, em vez do que nele foi excepção. Uma representação impensável hoje, ofensiva da dignidade indígena, dos africanos escravizados e da cidade laica que Lisboa tem de representar.
Ao mesmo tempo, esse era também o país que em vez de estar a discutir um memorial de homenagem aos escravizados e aos indígenas dizimados, em vez de incluir na sua capital essa memória, estava a discutir um Museu dos Descobrimentos.
Em 2020, já não ouço falar desse museu. Entretanto, por iniciativa de uma associação de afrodescendentes, a DJASS — que se candidatou ao orçamento participativo da autarquia, votado pelos cidadãos —, Lisboa terá pelo menos um memorial de homenagem às pessoas escravizadas. E no parlamento português estão agora, pela primeira vez, três deputadas negras.
Também por todas estas batalhas foi histórico o cortejo que tomou a capital portuguesa entre a Alameda Afonso Henriques e o Terreiro do Paço no 6 de Junho. O simbolismo desta geografia, e de como ela se inscreve na História, desde a grande alameda relvada onde aconteceram manifestações decisivas da democracia, até à grande praça do Tejo, que tantos porões viu passar.
A meio caminho, na Almirante Reis (avenida de Lisboa com grande mistura étnica, onde várias varandas se encheram de peles escuras para festejar a passagem do cortejo), um dos momentos inesquecíveis foi a janela em que um homem segurava uma criança de fralda, que tinha na mão este cartaz: “Portugal ‘O Conquistador’ — Menos lenga lengas. Descolonizar os currículos já.”
Ainda não derrubámos aquela estátua de Vieira, mas a rua está cada vez maior. Contem connosco para derrubar a palavra “Descobrimentos”, tudo o que ela significa há mais de 500 anos.
5. “Não morreu de Covid 19, morreu de racismo”, dizia o cartaz de uma das garotas black power que saltou como eu do comboio para ir à manif. Assim morreu George Floyd, sem respirar, e assim continuam tantos a correr risco de vida, quando não morrem mesmo. Não foi fácil manter a distância de segurança porque simplesmente éramos muitíssimos mais do que o previsto. Ainda assim, vi organizadores, pessoal na frente do cortejo, tentar o que podia. E toda a gente, com raras excepções, tinha a máscara posta. Usámos máscara durante horas.
Descartar o que aconteceu como um “foco de Covid”, um bando de irresponsáveis, é não querer ver a floresta. Mas essas são as pessoas que também tendem a não ver os transportes lotados durante a quarentena com gente que lhes garantiu comida no frigorífico, e esvaziar o caixote do lixo.
6. Na extrema direita do parlamento português, entretanto, não se arranjou melhor para desvalorizar a manifestação do que pegar em dois cartazes violentos para a polícia. Dois entre milhares. Como toda a gente que esteve lá, o que vi no sábado foi uma manifestação rara, com tanta diferença e variedade, respeito e beleza. Foi forte e foi linda. Quem não quer ver isto dificilmente verá o que ali estava em jogo. E está no futuro.
7. Na própria noite de sábado, horas depois da manifestação, e num dos lugares onde ela aconteceu, duas irmãs portuguesas afrodescendentes testemunharam a forma como um não-português afrodescendente foi agredido no meio de um círculo de polícias e depois (mal) assistido pela ambulância que o levou ao hospital (porque elas a chamaram). As irmãs gravaram um vídeo a narrar o que aconteceu, e no fim explicam porque nem lhes ocorreu filmar o que tinham visto: dava medo, não queriam apanhar com um cassetete. E mais explicam: isto não é a excepção, é a regra para quem é negro em Portugal, temer a polícia que os devia proteger.
Sim, a carne mais barata do mercado é a carne negra, como canta Elza Soares. Não está tudo bem, todos os dias não está tudo bem. E não vai ficar tudo bem enquanto não formos muitos mais, e muito mais, antirracistas.
8. No sábado, ao saltarmos do comboio, formou-se um pequeno cortejo a caminho da manif. Foi assim que conheci por acaso a Cíntia e o Yussef, ela portuguesa de origem cabo-verdiana, ele guineense. A Cíntia tinha parado para escrever o seu cartaz, nos joelhos, junto da irmã, das primas e amigas, e o Yussef, que era um pouco a cara de um jovem Malcolm X, aguardava em pé, t-shirt com uma África e um punho negro ao centro. Mais tarde, revi Yussef na frente das faixas, porque ele é um dos activistas do movimento Consciência Negra.
Agora, ao fazer este texto, liguei a Cíntia por saber que tinha sido a primeira manifestação dela. Interessava-me perceber porque tanta gente mais participara do que, por exemplo, em Fevereiro, quando descemos a Av. da Liberdade depois da agressão policial à afrodescendente Cláudia Simões. Em Fevereiro éramos uns mil. Sábado, não teremos sido menos de dez mil no auge em Lisboa (fora as outras cidades, Porto, Coimbra, Beja, Braga, Faro…), há mesmo quem aponte o dobro disso.
Cíntia — que mora na Linha de Sintra, é licenciada e tem vinte e poucos anos — não foi à manif de Fevereiro porque tinha um compromisso. E se foi a esta, isso não tem só a ver com George Floyd, mas “por tudo o que tem vindo a ser claro no último ano”, diz. “O objectivo desta manifestação é mostrar que não é só nos Estados Unidos, mas também aqui, de forma mais subtil. E por vezes não tão subtil.”
O que representou o 6 de Junho, para ela? “Sentir todo o apoio que ao longo da semana muita gente manifestou pelas redes [depois do asfixiamento de Floyd]. Ver fisicamente as pessoas, saber que não é só na Internet. Gostei muito deste sentido de união. Eu estava com medo que pudesse ser um pouco violento, e não foi nada. Não nos conhecíamos, mas estávamos todos ali com um sentido de comunhão. Fiquei muito impressionada com isso.”
Fez-lhe bem depois da “dificuldade” que teve com alguns amigos brancos, que não entenderam como o assassinato de Floyd podia ser algo perturbador para ela, aqui. “Alguns deles não vêem o racismo em Portugal. Senti muito essa resistência, a falta de empatia. Então, esta manifestação também me deu força para falar sobre o assunto. Porque eu sofro isto na pele. Ajudou-me a quebrar amarras.”
Quando falámos ao telefone, Cíntia acabara de ver as declarações de Rui Rio. “Ridículas. Desculpe o termo… Eu não sei como é que não passa pela cabeça de alguém que tem um amigo negro aqui perguntar-lhe ‘como te sentes?’, depois do que aconteceu com o George Floyd. Parece que vivem numa bolha, e não percebem. Ou não querem?”
Muitos dos cartazes de sábado falavam de Floyd. Mas também da brasileira Marielle Franco, ou do menino brasileiro Miguel, que morreu há dias por negligência. Mas também do português afrodescendente Alcindo Monteiro assassinado por skinheads há 25 anos. Ou da afrodescendente Cláudia Simões agredida pela polícia portuguesa já neste ano de 2020. Eram muitos os nomes, os mortos e feridos, e dizê-los em coro foi das coisas que mais emocionou Cíntia. “É como se estivesse lá ainda a sentir a vibração das vozes em uníssono.”
9. Sábado, em Lisboa, ex-capital esclavagista do mundo, largos milhares de pessoas viram-se ali juntas contra o racismo, apesar do vírus, do risco. E apesar das máscaras, respirámos. Ninguém esperava, aquilo simplesmente se tornou maior.
Será maior.
11 de junho de 2020
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Alexandra Lucas Coelho é escritora portuguesa, com doze livros publicados, entre romances, não-ficção e infantojuvenis. Trabalhou como jornalista, editora e repórter por cerca de 30 anos, cobrindo conflitos em diversas partes do mundo. Foi correspondente do jornal Público em Jerusalém e no Rio de Janeiro, e recebeu vários prêmios de jornalismo. Em 2012 recebeu o Grande Prêmio da Associação Portuguesa de Escritores (APE) pelo seu romance de estreia “E a noite roda”. O segundo romance, “O meu amante de domingo” (2014) foi o Livro do Ano Time Out em Portugal, e foi publicado também na França. No fim de 2016 lançou “Deus-dará” em Portugal, sendo finalista do Grande Prêmio APE. Em 2018, publicou seu quarto romance, “A nossa alegria chegou”. Entre os livros de não-ficção destacam-se “Oriente Próximo” (2007), “Vai Brasi”l (2013), “Viva México” (2010) e “Caderno afegão” (2009). Pela Bazar do Tempo lançou em 2019 “Deus-dará” e “Cinco voltas na Bahia e um beijo para Caetano Veloso“, este último concomitantemente com a edição portuguesa, pela Caminho.
Texto escrito para Pensar o tempo, em junho de 2020.

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