A viagem, de Elsa Morante

A vida de Elisa e Antonio foi a mais simples e sombria. Casaram-se aos 20 anos, atraídos um pelo outro por aquele afeto discreto que muitas vezes une as criaturas pobres, boas, e desprovidas de beleza e de engenho. O marido era tipógrafo em uma cidadezinha do interior, e até a morte não abandonou o seu ofício; a mulher cuidava de casa gastando seus minguados rendimentos com parcimônia. Nenhum dos dois jamais traiu a promessa de fidelidade que trocaram no dia do casamento. Tiveram três filhos, Carlo, Gaetano e Graziella. O primeiro já na adolescência seguiu os passos do pai no mesmo ofício; Graziella, moça modesta e esquiva, já estava na casa dos 30 quando se casou com um funcionário e deixou a casa paterna; Gaetano, o mais bonito, o mais afetuoso e o mais forte, que amava os desenhos e as cores e sonhava ser artista, aos 15 anos, enquanto trabalhava em uma fábrica onde era operário aprendiz, foi tragado pelas engrenagens de uma máquina e, assim, morreu dilacerado.

Antonio, de estatura baixa e atarracada, tinha um rosto com um queixo quadrado, de lábios finos e taciturnos. Sob os cílios volumosos e cinzentos, os olhos cansados e velados. No sorriso, principalmente após a morte do filho mais novo, havia aquela vaga expressão de timidez e de culpa que às vezes se nota nas crianças e nos serviçais.

Elisa, que na juventude tinha sido rechonchuda e corada, se desfez com o tempo, e na sua face magra, entre as maçãs do rosto saltadas e vermelhas, se abriam olhos suaves, celestes e um pouco febris. Seu corpo havia encolhido e tomado um aspecto debilitado e velho, devido aos ombros bastante curvados. Ela amarrava os cabelos, antes longos e trançados, agora ralos e brancos, em um pequeno coque na altura da nuca. Depois da morte do filho, ela também tinha o mesmo sorriso medroso e culpado do marido; e nos últimos tempos, uma doença no coração lhe obrigava a passar noites em claro e frequentemente a fazia empalidecer de repente.

Nunca tinha saído da cidadezinha nativa, jamais tinha subido em um trem. Antonio, por sua vez, tinha morado fora aos 20 anos, já que havia prestado serviço militar em Nápoles. Se lembrava daquele período como uma temporada de aventura, que se embaçava cada vez mais na sua memória e se transformava então em uma lenda.

Os dois já eram velhos quando o filho maior se casou e eles ficaram sozinhos em casa. Não havia mais nada que lhes fizesse companhia, a não ser o retrato de Gaetano, que, na sua adolescência intacta, olhava da parede de honra da sala, por baixo dos cabelos encaracolados e de sua bela testa. Foi então que eles decidiram, pela primeira vez na vida, tirar férias e fazer uma viagem. Um trem popular partia naqueles dias para Veneza; escolheram a cidade como destino, somente os dois, como dois  jovens noivos em lua de mel.

Nos dias anteriores, Elisa mantinha um olhar fixo e assustado. A ideia daquele nome, Veneza, dava a ela uma estranha sensação de júbilo sufocado, misturado a um espanto que lhe fazia perder os sentidos. Nas vésperas da viagem ela não conseguiu dormir; o marido a ouvia suspirar longamente na cama. Parecia que estava vendo Veneza na forma de um mar tranquilo, sobre o qual anjos enormes de mármore caminhavam sem tocar a água, com os pés nus, as longas túnicas deslizando. Durante seu breve sono, os anjos tinham pupilas de mármore frias e ausentes, que olhavam o infinito.

No trem, os outros passageiros dormiam, mas Elisa, estupefata e encabulada pelas extraordinárias novidades daquela noite, não conseguia cochilar. O marido, por causa de sua antiga viagem a Nápoles, se comportava como viajante experiente. Cheio de benevolência, balançando a cabeça, acomodou atrás dos ombros da mulher, o próprio casaco como travesseiro. Mas ela continuava acordada, como uma menininha na noite da Befana[1] com olhar fixo e atento.  Em alguns momentos, a ideia que eles, justo eles, estavam indo a Veneza a fazia estremecer.

-O que foi? perguntou Antonio, em um certo momento.

-Meu Deus, ela balbuciou, custo a acreditar. Me parece quase a morte.

Naquele momento, ouviu-se um zumbido leve e contínuo; era a chuva. À medida que subiam em direção ao norte, o tempo ficava escuro e tempestuoso: Veneza com chuva! murmuraram os vizinhos: não será alegre. E Elisa sentiu um aperto no coração.

Na chegada, por causa da chuva, Veneza não lhe pareceu como havia imaginado, cidade feita de água límpida e povoada por anjos. As casas cinzas exalavam umidade e seus fantasmas se refletiam na água verde e imóvel dos canais. Depois, uma praça enorme e deserta, parecida com um lago cheio de fabulosos reflexos e no qual todo o povo se espremia debaixo de um rico pórtico, acolheu os dois noivos. Eles entraram na igreja na ponta dos pés. E entre todas aquelas gemas, aqueles santos e aquelas cores, na luz dos vitrais e naquele grande silêncio absorvido pelo contínuo farfalhar da chuva, Elisa, tímida, se benzeu.

Já que não era possível passear pelas calli[2] escuras debaixo da água turva, decidiram se acomodar no hotel onde passariam a noite. Lá Elisa fez as contas do dinheiro gasto, e depois trocaram suas primeiras impressões. Para Elisa, não parecia que estava em Veneza; o palacete do hotel, de onde as janelas davam para um canal estreito, parecia um barco escuro, que lentamente a conduzia para longe da cidade recém vislumbrada no sonho. De quando em quando, ouvia-se, debaixo da janela, a batida leve dos remos empurrados pelos gondoleiros, que passavam levando as bagagens cobertas por panos impermeáveis.

Elisa, com sua consciência receosa e econômica, já estava arrependida da despesa descomunal daquela viagem, eles tinham que ajudar os netinhos. Antonio, tácito, talvez percebendo aquele arrependimento, fechou a cara. Então Elisa rapidamente começou a dizer que apesar da chuva, a cidade era ainda mais linda do que ela havia imaginado.

Como já era tarde, eles saíram para almoçar. Encontraram uma trattoria[3] econômica, logo atrás da praça. Tinha muito tempo que não saíam para comer fora, e este fato, somado ao vinho a que não estavam acostumados, os eletrizou um pouco. No fundo do salão um homem tocava um piano decrépito, e uma mulher velha, pintada, cantava com uma voz desafinada e rouca. O lugar era frequentado pelos gondoleiros e marinheiros; mas a cantora, assim que os viu, se aproximou da mesa e cantou uma música romântica especialmente para eles. Eles estavam alegres; Elisa, timidamente, cantarolou um pedaço da música, batendo com os dedos na mesa. Antonio tinha os olhos vivos, estava comovido e tinha vontade de dizer algo galante e carinhoso para a mulher, alguma coisa que talvez há muito tempo queria dizer e que, desde o dia que tinham se casado, forçado pelo recato, havia guardado para si. Mas agora o vinho e a viagem lhe davam uma nova audácia. Ele bateu sua taça na da mulher sorrindo: um brinde à saúde da minha pobre velhinha, da minha mamãe, disse. Ela riu como uma mocinha, e saíram de braços dados.

A chuva continuava a cair; mas eles tinham nas veias o calor do bom vinho branco, e a praça brilhava com suas luzes, seus cafés e suas músicas. Então, vencendo toda e qualquer timidez, com as bochechas queimando e os olhos brilhando, se sentaram em um dos grandes cafés; e Antonio, satisfeito e confuso, ofereceu um sorvete a Elisa.

Ela ainda via aquelas orquestras e aquelas vitrines esplendorosas na neblina chuvosa, quando, pouco depois, se deitou na cama: – Meu Deus, fantasiava, quantas coisas divertidas existem no mundo! E quantas pessoas! Se eu penso em Graziella e seu marido que nunca fizeram uma viagem tão bonita quanto a essa nossa.

No dia seguinte, a chuva persistia, a cidade inteira debaixo d’água parecia se dissolver em fantasmas líquidos e oscilantes, e eles visitaram um palácio maravilhoso, onde certamente tinha morado algum papa ou algum rei. Elisa seguia seu marido, um pouco perdida entre tantas maravilhas. As figuras de formas e cores jamais vistas que povoavam os tetos e as paredes a intimidavam, naquele palácio real ela se sentia uma intrusa. Em um determinado momento viu uma mulher tão bonita, que parou para admirá-la com a respiração suspensa. Ela estava pintada na parede bem na sua altura, e embora de formas gigantescas, tinha uma graça quase infantil ao caminhar, levantando o pé descalço sob o vestido violeta de cintura alta. Mas entre os cabelos loiros presos em uma rede dourada, seu rosto tinha uma expressão séria, os olhos estranhos e fixos, e a boca que se curvava em um sorriso ambíguo parecia se mover devagar sussurrando alguma coisa a Elisa. Talvez uma confissão? Um segredo?  Naquele momento, a figura oscilou levemente, como em uma dança vaga, depois tornou-se turva até quase desaparecer. Elisa se apoiou em Antonio, fechando os olhos e cerrando os dentes: era um dos costumeiros ataques de sua doença, que, desta vez, lhe embaçava os olhos e a deixava sem ar. Antonio a viu empalidecer e cambalear em seus braços e disse: – Elisa! O que você tem?. Mas logo, a breve tontura passou e ela respondeu que não era nada. -Pobre Antonio, pensou. Gastou todo esse dinheiro e agora eu corro o risco de estragar sua alegria. Voltaram a vagabundear pelas salas pintadas, e quando passaram novamente na frente da bela mulher-menina, Elisa virou a cabeça para não vê-la, tomada por um medo misterioso.

Choveu o dia todo, mas por volta da hora do pôr do sol, embora o céu permanecesse pesado e cinza, a chuva cessou. Esperando pela hora da partida, caminharam então por campielli[4] e calli. Para Elisa, que com os olhos arregalados observava aquelas pequenas portas mofadas e esverdeadas, aquelas janelas com sacadas esculpidas e salientes, aqueles bordados dourados que reluziam sombriamente no ar chuvoso, ela não parecia ser ela mesma, mas um espírito, uma sombra. O mundo onde ela estava era tão distante do seu mundo, de toda a sua vida, que talvez alguém a tivesse levado até lá em estado de sono, e o seu corpo ainda estivesse lá embaixo, onde sempre permaneceu, inconsciente.

Naquele minuto, a cidade escura pareceu sacudir de repente e se erguer, como um pássaro que acorda ao amanhecer batendo as asas. Foi porque um monte de nuvens se abriu, descortinando o azul e o sol poente. – Olha! – murmurou Antonio. De repente a cidade imaginada nascia debaixo de seus olhos, sem fim, além do canal verde, com suas sacadas suspensas, os mármores irreais, as cúpulas santas. Ela também parecia se afastar, com seu vestido violeta, virando a cabeça dourada, como a mulher pintada no palácio. Ela toda inteira se ergueu e respirou, pareceu sussurrar. Elisa também sussurrou alguma coisa. – Se Gaetano pudesse vê-la! – disse. E seus olhos se encheram de lágrimas.

Depois, de braços dados com Antonio deixou-se conduzir em direção ao cais, porque era o momento de partir.


[1] Na tradição italiana, a Befana é uma velhinha que na noite da Festa de Reis sobrevoa as casas com uma vassoura e deixa doces e balas para as crianças que se comportam bem, e pedrinhas de carvão para aquelas que se comportam mal. (N. da T.)

[2] Na toponomástica de Veneza, as ruas são chamadas de calli.(N. da T.)

[3] O mesmo que restaurante (N. da T.)

[4] Na toponomástica de Veneza, como são chamadas as pracinhas da cidade (N. da T.)


 

Tradução de Isabela Discacciati, jornalista e vive em Treviso, norte da Itália. Especializada em cultura e patrimônio gastronômico pela Universidade Ca Foscari de Veneza, é autora do Guia Passeios em Veneza e realiza tours temáticos pela cidade. Leitora entusiasmada desde criança, se inspira no universo dos livros para escrever e contar histórias. Em 2024, lança pela Bazar do Tempo Elena Ferrante e o labirinto universal.

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