Flavia e Hélène no coração da literatura, por Davi Pinho

Davi Pinho
(na ocasião do lançamento de A chegada da escrita e Hélène Cixous: a sobrevivência da literatura)

“Mergulhe, nade em nossas águas, desça, explore o fundo dos corpos, destaque e sacralize cada órgão,
conheça o ínfimo e o invisível — mas, para que se escreva o terceiro corpo, é preciso que o exterior entre
e que o interior se abra.”
Hélène Cixous, A chegada da escrita.

“Se alguém é homem, ainda assim, a parte mulher de seu cérebro deve causar um efeito; e uma mulher
também precisa se relacionar com o homem que há dentro dela. Coleridge talvez tenha querido dizer isso
quando afirmou que as grandes mentes são andróginas. É quando essa fusão acontece que a mente está
completamente fertilizada e usa todas as suas faculdades. Talvez uma mente puramente masculina não
possa criar, e talvez o mesmo ocorra com uma mente puramente feminina, pensei.” 
Virginia Woolf, Um quarto só seu. 

Para quem lia Hélène Cixous e passou, não sem ela por mais que estranhamente, para o terreno da teoria queer, como eu, a ênfase da pensadora franco-argelina na metáfora do corpo biológico da mulher para a escrita se apresenta como uma questão espinhosa: “Metáfora?” — me pergunta a própria Hélène Cixous em A chegada da escrita, que se lança agora em português no “só-depois” da cena da écriture féminine em torno de 1976. “Sim. Não. Se tudo é metáfora, nada é metáfora” (Cixous, 2024, p. 68). Não que eu faça aqui uma leitura banal de Cixous, o que é impossível com o livro-irmã de A chegada da escrita que Flavia Trocoli assina e lança também hoje, Hélène Cixous: a sobrevivência da literatura, fazendo finalmente explodir o que podemos chamar de um “só-antes” da crítica — aquela crítica que ainda lê Cixous “apenas” como um dos grandes nomes do “feminismo da diferença”, por vezes muito facilmente posta ao lado de Irigaray e Kristeva; como feminista pós-estruturalista, da dita French Theory; ou seja, “apenas” (e não só) como pensadora da diferença sexual para além de Freud e Lacan. A questão espinhosa está na própria Cixous, que também faz do feminino uma posição na linguagem, a um só tempo através e para além do corpo da mulher. Ao fim de seu ensaio vigorosamente traduzido e anotado por Flavia e seu grupo, Cixous diz (e ouçam o riso no que ela diz):

“Continuidade, abundância, deriva, isso é especificamente feminino? Creio que sim. E, quando se escreve um desvario semelhante a partir do corpo de um homem, é porque a feminilidade não está interdita. Porque ele não fantasia sua sexualidade em torno de uma torneirinha. Ele não tem medo de faltar água, não se arma de seu bastão mosaico para bater na rocha. Diz: ‘Tenho sede’, e a escrita jorra.” (Cixous, 2024, p. 78)

A camada ético-política dessa formulação está quase na superfície do texto, afinal, os significantes homem e mulher são contundentemente postos em cheque. Para dizer de outro modo, como aprendo também com Virginia Woolf: se o corpo biológico da mulher serve de elo identitário como ponto de partida, ele não é o ponto de chegada da escrita, o que produz o retorno de outros corpos nem lá nem cá, de outras escritas entre gêneros — e é maravilhoso que também em português a palavra “gênero” retenha dimensões ao mesmo tempo estéticas e políticas, o que não se registra no inglês de Virginia, deixando o corpo e o texto entre gender e genre.

O coração selvagem da literatura em que se ancora a escrita de Cixous confunde então essas dimensões, e é isso que Flavia Trocoli nos ensina na leitura dos eus da franco-argelina — seu eu-Clarice, mas também seu eu-Proust, seu eu-Freud, seu eu-Derrida, seu eu Shakespeare, Joyce, e também pai, mãe (entre línguas e territórios) — propondo esses outros eus como moléculas de um pensamento que se volta sempre para a literatura (em rasuras, em citações diretas e indiretas, em palavras-valise que resistem à lógica da apropriação de um sentido binário, em um eterno movimento de se entender Ninguém nesses encontros entre duas posições). Passar para o coração — o que Flavia faz já no ensaio de abertura de seu livro — implicaria, então, uma saída do útero, lugar aporético em Derrida e Cixous. A passagem do útero para o coração, que Flavia faz com Cixous mas não sem Virginia, permite que esta nossa crítica-professora-pesquisadora brasileira colete o que chama de moléculas de assinatura que rasuram e movimentam seu pensamento — “seu” aqui é também ou especialmente de Flavia — buscando, nesse coração, “um traço de união para manter junto o disjunto, assim como o aperto de mão, o poema, a literatura” (Trocoli, 2024, p. 16). Flavia nos convida a prestar atenção na apresentação de conceitos que nascem de duplos na escrita de Cixous, e é desse lugar entre dois, em que a diferença poderia ser engendrada, que o coração advém — agora, penso, lendo Flavia, um lugar sem dois, ou melhor dizendo, um lugar em que dois fazem mais que um mais um.

A escrita de Flavia, no feminino, oferece uma lição a todos que estão presos no regime do eu, naquele eu ditador, do eu como o próprio, do eu que é só morte porque se fecha e transcorre apenas o tempo do relógio. O eu que volta à literatura, Flavia nos diz com Cixous, toma a palavra como sobrevida, como aquilo que se esforça para deixar viver mesmo a morte: e aqui, para não soar enigmático (não que se possa fugir do enigma, aprendemos com Flavia), se fala também da estratégia formal de deixar que aqueles que vieram antes (escritores, pais, mães, a criança em si) soprem aos ouvidos dos leitores seus outros lugares, suas outras línguas, seus outros tempos, em referências que se fazem alucinadamente — em parataxes que pulam de um texto a outro, em citações alteradas, em uma escrita que sonha, que rouba e voa (para lembrar dos significados operantes de voler no idioma Cixous). Um dos giros interpretativos geniais de Flavia para fazer o português funcionar também como meio desse idioma é ouvir Ève — nome da mãe de Cixous, mas não só, claro —, como Sonia: aquela que sonha, aquela que na escrita me sonha e sobre quem se sonha ao mesmo tempo (a tentativa é a de reproduzir a relação homofônica de uma Eva [Ève] contida ou anoitecendo em rêve, sonho em francês, com o nome Sonia em português). Sonia é literatura no idioma de Flavia, eu penso.

A certa altura, Flavia diz que só quando nos damos conta de que Clarice (uma das moléculas literárias que a brasileira divide com a franco-argelina) não deixou nenhuma mensagem é que se pode reler sua obra, deixando empalidecer o eu e fazendo vir à tona seus procedimentos. Aqui se lê uma aula sobre método, sobre como se demorar não só no significado da literatura, mas em sua forma significativa, para roubar/voar a partir de uma expressão que me vem de outro lugar escondido na minha epígrafe. No capítulo “Das moléculas às migalhas, a criança morta insublimável”, a aula de Flavia continua. Com Cixous, ela faz seu livro falar:  “aquilo que se quer dizer é inseparável do modo de dizer” (Trocoli, 2024, p. 97). Mais tarde, lendo “Un vrai Jardin” de Cixous, Flavia encontra aquilo que lê como “uma das mais belas e dolorosas imagens da literatura” (Trocoli, 2024, p. 118), quando a criança pensa que seu umbigo é a cicatriz que dá testemunho de uma ligação e de um corte constitutivos a um só tempo. Mais uma vez, Flavia transforma essa cena em um método: entre ciframento e deciframento, a tarefa é fazer laços, fazendo passar as outras vozes que dão sobrevida à literatura. E como se dá essa metamorfose? Flavia ensina: na citação, na recitação, na ressuscitação que é o retorno à leitura dos textos. Como diz Flavia, “citar não deixa de ser um modo de trabalhar com a ausência do outro e fazer da morte uma vida outra” (Trocoli, 2024, p. 167).

O que Cixous faz a língua recordar tem relação com que está fora dos limites de uma própria ideia de língua (pensando aqui em seus limites comunicativos, em seu uso mais corriqueiro, enquanto manifestação de uma identidade nacional, por um lado, e enquanto demarcador de uma comunidade da razão, humana, por outro). O idioma Cixous lida com aquilo que, de fora dessa língua, muda o dentro (mas não sem aquilo que já está por dentro e que nos toma de assalto em sonhos, em chistes, naqueles nossos lugares nomeados de inconsciente em que a razão toma pouco partido e nos quais, por isso mesmo, desconhecemos a morte, o não). Resistindo parar no enigma, dou alguns nomes para esse fora, esse não-eu, que nos ocupa por dentro: o fora-mulher, o fora-estrangeiro, o fora-criança, para ficar com três nomes brilhantemente lidos por Flavia ao longo de seu livro.

Fecho o livro de Flavia e seu texto está no coração da literatura, mas no meu também. Por isso, talvez, uma pergunta insista: qual é o lugar da diferença sexual nessa passagem à literatura? Minha amiga escreveu seu livro com essa pergunta na ponta dos dedos, por isso mesmo ela retorna sempre. Lendo A chegada da escrita, Flavia nos diz que o sonho e o amor ficam fora “do escopo das operações de sublimação” justamente porque não se dão a “trocas nem equivalências, circuito a que as produções culturais acabariam pertencendo” (Trocoli, 2024, p. 97). Se fizermos, com Flavia, a passagem da vida e da morte para a obra — o que enseja a passagem do destino à destinação —, como redestinar a diferença sexual hoje, resistindo a esse circuito de trocas e equivalências? E em que sentido somos tomados por essa destinação ao voltar, com Cixous, ao coração da literatura, mas não sem inscrever nossos corpos ali? Fica aqui uma questão que é tanto de Cixous quanto de Flavia, de Virginia também, com efeito, de todas, todos e todes que acompanharem, na leitura destes dois livros, a força do pensamento dessas duas mulheres: Flavia e Hélène.

Davi Pinho é ensaísta, editor e professor de Literatura Inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Conheça os livros citados:

A chegada da escrita, de Hélène Cixous. Bazar do Tempo, 2024.
Hélène Cixous: a sobrevivência da literatura, de Flavia Trocoli. Bazar do Tempo, 2024.
Um quarto só seu, de Virginia Woolf. Trad. Julia Romeu. Bazar do Tempo, 2024.

 

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