Discurso de posse na ABL por Heloisa Teixeira

Heloisa Teixeira 

Senhor Presidente acadêmico Merval Pereira, prezadas acadêmicas, acadêmicos, amigas e amigos aqui presentes,

Nesse momento, em que dou início ao ritual de entrada na Academia Brasileira de Letras, descubro que essa é a primeira vez que experimentamos, nesta Casa, a sucessão entre mulheres. Somos, ao todo, ainda pouquíssimas na história desta Academia. A proporção é de 10 mulheres para 339 homens, uma realidade eloquente e que reflete a situação das mulheres nestes últimos séculos.

Não deve ter sido por acaso que Rachel de Queiroz foi escolhida para ser primeira mulher eleita numa Academia de Letras até então prioritariamente masculina, incluindo-se aqui as muitas academias europeias. Na época de sua eleição, em 1977, Rachel de Queiroz era conhecida como a maior escritora brasileira. Era um grande nome. Rachel, em 1930, assombrou a crítica com o lançamento de O quinze, trazendo um perfil modernista para a literatura regional nordestina. A legitimidade de Rachel no quadro da literatura oficial era irrefutável. Portanto, admitindo que era a hora da candidatura de uma mulher, Rachel mostrou-se como a candidata quase “natural” para a sucessão de Candido Mota Filho. A outra escritora que flertava com esta cadeira, Dinah Silveira de Queiroz, adiou estrategicamente sua candidatura e fez campanha para Rachel.

Fui muito próxima de Rachel e com ela convivi no seu apartamento do Rio, em Fortaleza e em sua casa no sertão de Quixadá. Rachel era uma personagem fortíssima, extremamente perspicaz, generosa, acolhedora, controversa politicamente.

Como escritora, era disciplinada, avessa a qualquer tipo de retórica e severa com seu instrumento de trabalho, a escrita. Lembro-me de Rachel cortando partes enormes de Maria Moura, em busca da limpidez de um texto avesso a adjetivos. Uma escritora universal, mas fiel ao sertão nordestino, sempre pensando em voltar a Não me Deixes, sua fazenda em Quixadá. Para resumir Rachel, só usando a insuperável definição de Manuel Bandeira: Rachel Tão Brasil. Saudades, Rachel.

A segunda mulher eleita para esta Casa, em 1980, foi Dinah Silveira de Queiroz, a grande estrategista da entrada de mulheres na ABL e autora de livros inesquecíveis, como Floradas na Serra, A Muralha e tantos outros.

Em seguida, em 1985, veio Lygia Fagundes Telles, a grande dama da literatura brasileira, que marcou gerações com seus livros Ciranda de Pedra, As meninas, além de uma série de celebrados romances.

Depois dela, em 1989, chegou a esta Casa Nélida Piñon, sobre quem voltarei mais em frente. Com um intervalo de mais de dez anos, a ABL elegeu Zelia Gattai, nossa ativista anarquista e grande especialista no que poderíamos chamar de o “memorialismo dos outros”.

Ana Maria Machado, minha amiga e parceira de tantos anos, chegou a esta Academia em 2003, já neste século. Sua literatura é reconhecida no mundo inteiro e, certamente, ampliou o universo literário e político de crianças e adultos numa obra de mais de 100 livros publicados. Ana foi a responsável, quando Presidente da ABL, por trazer uma efetiva abertura social para perto de Machado de Assis. Realizou e apoiou projetos como “Nas Trilhas da Literatura” (formação de técnicos para bibliotecas comunitárias), “A Academia vai à Academia” (encontros com a polícia militar), o “Mutirão na Escola”, “Leitura em Presídios” e a “Festa Literária das Periferias (FLUP)”

Em 2009, foi a vez de Cleonice Berardinelli, a Divina Cleo, indiscutivelmente a grande mestra de toda a nossa geração de intelectuais.

Com a eleição de Rosiska Darcy de Oliveira, em 2013, a ABL passa a ter em sua composição uma feminista reconhecida e uma ensaísta notável, dona de rara e aguda percepção de nosso tempo.

E, finalmente, chega, em 2022, a esta Casa, o ícone da cultura brasileira, a imensa atriz que é Fernanda Montenegro, definitivamente ampliando e renovando a representação das mulheres na Academia.

São estas as Acadêmicas as quais me filio com orgulho e a elas pretendo dar continuidade e reconhecimento.

Por outro lado, a cadeira que ora assumo traz um perfil libertário e pioneiro. Tem como patrono Pardal Mallet, abolicionista, republicano e, surpresa, defensor do divórcio, como mostra o livro que publicou, ainda em 1894, chamado Pelo Divórcio!

O primeiro ocupante da cadeira nº 30 foi Pedro Rabelo, contista e poeta, que reforça e repercute o perfil progressista de Pardal Mallet, promovendo o ativismo em pról das ideias republicanas e abolicionistas.

Segue-se Heráclito Graça, filólogo e também político, autor de Fatos da linguagem, de 1907, uma obra pioneira. Neste livro, Graça interpela fortemente o debate sobre a língua, que, na época, era liderado pelo mestre Cândido de Figueiredo.

O ocupante seguinte, Antônio Astraugésilo, foi médico, contista e poeta de feição simbolista. Sobretudo, foi precursor nos estudos de neurologia e psicanálise e criador de um método terapêutico resultado da intercessão entre essas duas ciências.

Antes de Nélida, temos ainda Aurélio Buarque de Holanda lexicógrafoprofessortradutorensaísta e crítico literário a quem devemos o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, também conhecido como Dicionário Aurélio. Uma obra definitiva, que enfrenta, com excelência, a extraordinária complexidade linguística nacional.

E chego, finalmente, à Nélida Piñon. Nélida, intelectual e amiga, última titular desta Cadeira nº 30 que ora assumo o desafio de ocupar. Como me parece difícil construir, no tempo de que disponho, uma memória de Nélida que faça jus à sua obra, resolvi apresentar, de forma paralela e visual, a extensão real do trabalho, prêmios e conquistas dessa grande escritora que nesta noite homenageio.

Comigo, ficam as impressões pessoais que levei vida afora da menina, de linhagem galega, nascida em Vila Isabel. Lembro que Nélida não se cansava de falar sobre a época em que vivia perto dos avós. Repetia, encantada, os casos que ouvia nas refeições de domingo, dos temperos e cheiros de além mar, das histórias de outras terras, das tantas visões de um paraíso perdido. A imaginação de Nélida florescia nesse compasso.

Filha única, sua educação foi moldada por ballets, óperas, concertos, pelo convívio com grandes maestros nos bastidores do Theatro Municipal, pela leitura precoce dos clássicos.   Nélida estudou a fundo a cultura dos gregos,etruscos, celtas e místicos holandeses até chegar ao ponto alto de sua formação: as narrativas do Antigo Testamento e o estudo das teologias.

Me parece que é este passado mítico e distante que delineia a fantasia de Nélida e vai ser traduzido numa das obras mais instigantes da literatura brasileira e íbero-americana.

Por outro lado, não é possível esquecer que Nélida experimentou alguns importantes atravessamentos contextuais nos anos 1960, época conhecida pela rebeldia jovem que se viu surpreendida pelo golpe militar de 1964.

Esta foi a Nélida que eu conheci. Estudante, erudita, feminista, sonhadora, empunhando causas, como os direitos das mulheres e o fim da ditadura militar. Aquela mesma jovem Nélida, membro da comissão que foi pessoalmente à Brasília entregar o manifesto dos intelectuais contra a censura.

Esta Nélida trazia seu primeiro livro em punho, o Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, livro de impressionante força metafórica, semente do que seria sua futura obra. Um livro vertigem, que subverte radicalmente o ideal feminino da tradição cristã-patriarcal. Guia-mapa de Gabriel Arcanjo já anuncia a técnica apurada e o impulso experimental que vai marcar toda sua obra futura.

Exemplo cabal disso é operação narrativa que ela cria em A força do Destino. Conhecida ópera de Verdi, A força do Destino trata do drama de Leonor e Álvaro, dois apaixonados andaluzes, que viviam o destino trágico do amor proibido. No ambiente do romance, que se passa no século XVIII, surge, dentro do texto, uma cronista do século XX, cujo nome é coincidentemente… Nélida. Cronista esta que intervém, “em cena aberta”,  e transforma a história original, dialogando com os personagens num único espaço-tempo ficcional, a narrativa.

Desde Gabriel Arcanjo, Nélida já revela sua paixão pela palavra, a grande disparadora de sua obra. É esta paixão pela palavra que faz de Nélida, Nélida. É ainda essa paixão que se expressa, em todos os seus 23 livros, numa clara disputa entre a habilidade metafórica e a técnica da disciplina.

Além do trabalho literário propriamente dito, sua vida era feita de viagens, palestras, compromissos no Brasil e no exterior. Conheceu o rei Juan Carlos da Espanha, tomou chá com Arthur Rubinstein e ficou amiga de Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Octavio Paz, Manuel Puig e Julio Cortázar. Uma vida excepcional como sua obra e suas predileções culturais. Nélida foi a primeira mulher Presidente da Academia Brasileira de Letras, conquista que só mais tarde chegaria às academias europeias. Em casa, transformava-se numa anfitriã única, abria seu sorriso iluminado, cozinhava com expertise e distribuía afeto sem moderação.  Trazia do exterior famosos embutidos, vinhos especiais, queijos raros e, com eles, inventava as receitas mais improváveis para seus convidados.

Foi por isso que, quando planejei a apresentação de um programa que tive por anos, na rádio MEC, resolvi chamá-la como primeira entrevistada. Ainda inexperiente, nunca tinha trabalhado em rádio, não pensei duas vezes: chamando Nélida, campeã da palavra, eu estaria segura. E assim foi. Nélida, por mais de meia hora, discorreu, cristalina, sobre seu processo criativo, a delícia de tocar o papel em branco, a escolha das palavras, o se soltar nas mãos da imaginação, ao som das Walkírias wagnerianas. Puro deslumbramento. Num determinado ponto, eu quis surpreender a Nélida-feminista e a interrompi, dizendo: Nélida, você está se mostrando uma escritora rara, mas você concorda que lugar de mulher é na cozinha? Antes mesmo que eu terminasse minha provocação, Nélida me interrompeu: Helô, eu faço umas batatinhas…, e, zap, ditou a receita para os ouvintes. Imbatível, nossa acadêmica. E é essa a cadeira que vou ocupar.

O problema é que, mesmo fascinada por Nélida, tenho que reconhecer que sou a antítese de minha antecessora.

Para explicar isso, o mais sensato me parece ser voltar no tempo buscando memórias e sintomas da minha formação profissional. E o que primeiro me vem à cabeça é a estranha biblioteca do meu pai. Meu pai era cardiologista e tinha uma biblioteca impecável. Os muitos livros da sua biblioteca, que iam da medicina à psicanálise e à vanguarda literária, eram limpos semanalmente, desumidificados, acompanhados de fichamentos e cuidados de uma bibliotecária cujo nome, talvez por simples implicância, eu nunca soube. A biblioteca de meu pai era grande e sagrada e, na minha fantasia, impenetrável. Na verdade, a biblioteca do meu pai me irritava.

Eu sempre li muito, mas não fui uma leitora precoce, como muitos que leram Proust aos 8 anos ou se deslumbraram com Joyce aos 12. Lia mesmo eram romances cor de rosa, as aventuras de Júlio Verne e, na realidade, qualquer coisa que me caísse nas mãos. Mas eu não associava meu gosto pela leitura com a grandeza da Instituição Biblioteca que havia causado um estranho desconforto durante minha infância e adolescência. Creio firmemente que minha relação com os livros foi modelada ali, na biblioteca de meu pai. Experimentava, ao mesmo tempo, o encanto com o poder da palavra e a suspeita das instituições que a controlam.

Talvez também por isso tenha surgido, com tanta força, minha predileção pela poesia, seu pressuposto de liberdade, seus pontos de fuga, suas entrelinhas. A primeira paixão foi João Cabral. Ler Cabral foi um alumbramento, uma descoberta que me induziu a mergulhar de vez no mundo da poesia. Ler poesia é minha brecha para olhar o mundo, minha opção profissional e meu lazer preguiçoso. Um gesto e um gosto distante das bibliotecas e dos cânones que a preservam. Ler poesia para mim é uma experiência simples, uma leitura que gera apenas um quero mais. Por isso, sempre fui povoada por uma curiosidade grande sobre o que fazia da literatura, literatura, e da biblioteca, um lugar de culto.

Volto à biblioteca de meu pai, fonte eterna de meus ciúmes e desejos. Ali estava também a semente de minha reação e, ao mesmo tempo, atração por toda e qualquer forma de instituição. É por isso que um livrinho de Jacques Derrida, cujo título é Essa estranha instituição chamada literatura não sai da minha mesa de cabeceira. Nesse livro magrinho, Derrida, meu guru ao longo deste texto, declara: “A literatura é a coisa mais interessante do mundo, talvez mais interessante do que o mundo”. Falava ele da literatura como instituição, com suas duras convenções e regras, submetida à logica da autoria e da assinatura. Mas, ao mesmo tempo, observava que a literatura, em princípio, tem o poder legitimado de se libertar das regras e, desse modo, inventar e suspeitar das próprias leis que a constituem.

O que é a literatura? De onde vem? Para quem se destina? O que se deve fazer com ela? A quem a literatura exclui?

Com essas perguntas em mente, percebi que a existência de uma possível essência literária, que eu saiba, nunca foi diagnosticada de forma suficientemente satisfatória. Mesmo que sua origem possa ser localizada, nenhum critério interno parece garantir a um texto seu status literário. Se a hipótese for verdadeira, cabe uma segunda pergunta: o que está sendo excluído em nome dessa essência literária? Em busca disso, ou à sua contestação, dediquei minha carreira.

Meu primeiro ambiente de criação e de trabalho, em caráter profissional, foi a Faculdade de Letras da UFRJ. Cheguei em 1964, como assistente de Afrânio Coutinho, meu orientador e amigo, cuja dívida intelectual quero deixar registrada aqui, neste momento importante de minha trajetória.

Na minha memória longínqua daquela hora, lembro que as universidades eram fóruns apaixonados de discussão sobre os destinos do país, aquecendo mais ainda o sonho revolucionário jovem. Do lado de fora, vinha o calor da literatura forte de Antônio Callado, do Teatro de Arena, da MPB, dos Festivais da Canção, do Cinema Novo, do Tropicalismo e muito, muito mais.

Mas a surpresa veio à galope: em 13 de dezembro de 1968, foi promulgado o Ato Institucional nº 5, que golpeou, com uma só canetada, o país, a cultura e a produção de conhecimento acadêmico. De Fórum de ideias e utopias, a universidade a se transformou numa ruína a ser reconstruída. Como reconfigurar meu trabalho nesse espaço agora tão fechado, triste, controlado? O que fazer neste espaço de excelência que agora se mostrava à deriva?

Foi nesse panorama e com essa formação que dei meus primeiros passos profissionais. Foi esse meu destino epistemológico. Sempre espionando brechas, entradas possíveis, demolições impossíveis. Desenhava-se aí um desafio e uma atenção às instituições, que se incorporou ao meu trabalho até hoje.

Foi também com essa preocupação que comecei a perceber a força de resistência da poesia marginal, pós AI5. Uma poesia de difícil reconhecimento como literatura, uma poesia mesmo descartável, como era anunciada. Eram poetas que rejeitavam toda e qualquer forma de inscrição no mundo oficial dos livros, inclusive no campo da impressão e circulação em editoras e livrarias.

Em pleno sufoco, no momento em que as artes e as letras sucumbiam ao chumbo grosso, me vi lendo obsessivamente os poetas chamados marginais, que resistiam à censura falando, narrando, descrevendo e mesmo questionando o sistema político e cultural com humor, leveza e aparente ingenuidade.

Foi aí também minha primeira desavença com o hoje Acadêmico Zuenir Ventura. Ele falava do “vazio cultural pós 68”, eu falava da potência das vozes de uma cultura nas margens que irrompia cá e lá, insistente, na cena cultural. Outros embates com Mestre Zu me ajudaram a desenhar meus objetos de pesquisa, vida afora. Formamos, na área das ideias, uma parceria perfeita. Zuenir declarava alguma coisa, eu corria para contestar. Agradeço por isso a Mestre Zu, que, com sua lucidez, sempre ofereceu os mais precisos diagnósticos conjunturais da cultura, em tempos de avaliação tão difíceis.

Atraída pela função de testemunho que exercia a poesia marginal, organizei, em 1976, a antologia 26 Poetas Hoje, reunindo os poetas que melhor exprimiam esse ethos geracional. A publicação da antologia foi, de certa forma, uma estratégia de marketing da Editorial Labor, que chegava ao Brasil com o lançamento conjunto de dois livros: a novidade de meus 26 poetas e um livro que certamente seria mais reconhecido, que, como quis o destino, foi: O Fundador… de Nélida Piñon. O Fundador, como se esperava, foi acolhido com sucesso, mas minha antologia foi um tremendo fracasso de crítica, fracasso esse que se repetiu na área acadêmica. Fui acusada de legitimar uma poesia mal escrita, vulgar, inconsequente e lá veio,  altissonante, o veredito final: “essa poesia não é literatura”.  Isso, certamente, me aborreceu na época, mas ao mesmo tempo me atraiu de tal forma que até hoje procuro desvendar o que é ou não é literatura e me enredo em tudo aquilo que propõe essa questão. Não sei se já tenho alguma resposta, mas não posso deixar de registar que tenho aqui, bem na minha frente, alguns poetas marginais, hoje Acadêmicos, condenados exatamente por não fazer literatura naquela época. Antônio Carlos Secchin, meu cabo eleitoral nesta Casa, Geraldo Carneiro e, apenas uma antologia depois, Antônio Cícero.  Desde então, a incessante busca do específico literário, lei implacável da crítica literária, não me atormenta mais.

À questão da literatura como instituição, seguiu-se a questão da produção de conhecimento como instituição, representada pela universidade.

Como rearranjar os livros da biblioteca de meu pai? Como torná-los mais livres, com alcance mais expandido? Guardei isso em mim.

Meu pai morreu, minha mãe morreu, minhas grandes referências morreram com eles. A Biblioteca de meu pai foi doada para a UFRJ, à qual ele dedicou a maior parte de sua vida, como eu. Minha família ficou reduzida à minha irmã Lucia, minha maior amiga, e a meus três filhos, Lula, André e Pedro, em torno e a partir dos quais pude construir uma vida de muito afeto, alegria e trabalho. Vejo, com clareza, a parceria com eles em tudo o que realizei até hoje. Até meu desejo de entrar para esta Casa tem, certamente, sua participação. Como se não bastasse, me deram sete netos, Victor, Dora, Theo, Catarina, Antônio, Julia e Violeta. Todos incorporados definitivamente em mim, através de desenhos tatuados no meu corpo. Não posso mostrar essas tatuagens agora, porque o fardão não me permite, mas são traços que marcam forte presença no meu corpo e seguem comigo em todo e qualquer momento do meu dia. Pais, irmã, filhos, noras, netas, netos, amigas, amigos, mestras e mestres. É muito capital afetivo acumulado para ser descrito e avaliado num discurso de posse. Afirmo que não seria coisa breve. Vamos em frente.

Mais adiante, pesquisando e ensinando na Universidade de Columbia, em Nova York, vi nascer uma área de conhecimento num espaço intelectual masculino, demarcado e proprietário. Foi o nascimento dos estudos feministas e de gênero como espaço disciplinar. Naquele momento, as mulheres acrescentavam, à luta por seus direitos, um direito novo: o direito de interpretar.  Os currículos eram postos em questão, as bibliografias repensadas, os departamentos invadidos por demandas até então impensáveis. Os livros de teoria de gênero saiam das livrarias com rapidez incomum. Traziam novos olhares que interpelavam o pensamento marxista, teológico, psicanalista, enfim, todo um edifício epistemológico de concreto armado que molda a produção de conhecimento universitário. Pressenti o barulho de uma onda gigante se aproximando. O avanço do pensamento feminista, desde os anos 1980, vem, efetivamente, transformando os paradigmas da produção de conhecimento estruturalmente masculina e branca. Venho surfando nessa onda, com atenção redobrada, nos últimos 40 anos.

Junto com o feminismo, outra turbulência me afetou profundamente. Foi meu encontro com os intelectuais e artistas moradores das comunidades e favelas. Chegando com ingênua intenção pedagógica de ajudar e alargar o repertório cultural das camadas “carentes”, me surpreendi no meio de pensadores articulados, com a presença de grande número de universitários e de artistas potentes com intervenções inovadoras no mundo pop. Sim, a cultura de periferia, para o meu espanto no início dos anos 90, é uma cultura pop, contemporânea, transnacional. Esta percepção impactou minha pesquisa que, desde então, se voltou vorazmente para estas expressões artísticas e culturais. O resultado foi traduzido em exposições, seminários, a série de livros Tramas urbanas e na criação de meu maior projeto, a Universidade das Quebradas, laboratório de tecnologias sociais, baseado na articulação entre saberes acadêmicos e periféricos, bem como na pareceria com a FLUP, Festa Literária das Periferias. Mais uma vez, respondi à meu Mestre, Zuenir Ventura, que escreveu Cidade partida, um livro seminal. Entre o encantamento e a urgência, estou há trinta anos tentando cerzir os dois lados dessa cidade.

Ao contrário da grande arte, o que me move e o terreno onde trabalho e sonho são as culturas emergentes, mulheres, negros, periferias, direitos humanos e o poder excludente das instituições. São também esses temas que desenham meu perfil profissional, claramente o de uma professora que nunca distinguiu a pesquisa acadêmica do ativismo político. Uma professora convicta de suas atribuições, que nunca abriu mão da universidade como o grande centro da produção do conhecimento, portanto, um lugar ao qual todos devem ter direitos não apenas de acesso, mas, sobretudo, de voz.

Já esta Academia Brasileira de Letras é a nossa instituição mais poderosa e legitimada, política e culturalmente na área da língua e da literatura. A missão desta Casa é nada mais nada menos do que a defesa da língua e da literatura nacionais. Portanto, carrega uma atribuição política real. O conceito de língua como instituição social não é coisa nova. Está colocado, formalmente, desde 1867, por William Whitney. A língua não existe fora da sociedade e o tecido social não existe sem ela. Assim, podemos vislumbrar o tamanho dessa missão e sua responsabilidade social e democrática. A língua define a unidade nacional, as fronteiras geopolíticas. A língua é, principalmente, a raiz em que se atuam as discriminações e o controle de minorias, etnias, territórios. Desta forma, os usos da língua podem ser o espaço da pertença, de exclusão, da separação e até da eliminação do outro. Meu sentimento nesse minuto se traduz na pergunta “O que fazer?”. Assustada, ainda sem respostas claras, só posso antecipar que sentados e atuando junto comigo nesta cadeira de nº 30 estarão os sonhos e as propostas de muitos outros, outras e outres, desta cidade, infelizmente, ainda partida.

Obrigada.

Rio de Janeiro, 28 de julho de 2023

 

Heloisa Teixeira é publicada pela Bazar do Tempo, coordenadora da coleção Pensamento Feminista, autora de Feminista, eu? e Onde é que eu estou? 

 

 

2 thoughts on “Discurso de posse na ABL por Heloisa Teixeira

  1. Fernanda Campos says:

    Que belo discurso! Linda homenagem que ela fez à Nélida Piñon e a todas as mulheres que ocuparam cadeiras na ABL. 👏🏻👏🏻💜💜

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