Contrainformação do coronavírus
Javier Cercas
Dedico esses dias de confinamento obrigatório pelo coronavírus para contar em várias línguas, por escrito e oralmente, pela imprensa, pelo rádio e pela televisão, a que tenho me dedicado nesses dias de confinamento obrigatório pelo coronavírus. É uma piada. Não, não é um piada: é a verdade (ou tenho essa impressão). Mesmo que também seja verdade que, nesses depoimentos, improvisados, nem sempre disse a verdade. Ou não de todo.
Disse, muitas vezes, por exemplo, que para um escritor deve ser mais fácil do que para o comum dos mortais suportar uma temporada de confinamento como essa, porque afinal de contas nossa vida habitual é uma vida de confinamento voluntário. Isso é certo. Mas também é certo – mesmo que não tenha dito isso nos meus depoimentos – que não é a mesma coisa viver confinado por prazer (porque sua vocação implica isso ou o trabalho que você escolheu) e viver confinado à força, cercado além disso de gente confinada como você. Não é menos certo que, se o que está acontecendo não fosse uma catástrofe coletiva, seria uma benção pessoal; a prova é que, como cancelei todas as minhas viagens e compromissos, passo os dias fazendo o que mais gosto de fazer: ler, escrever, ver filmes e pensar nos musaranhos.
Contei também muitas vezes que aproveito o confinamento para continuar escrevendo a segunda parte de Terra alta, meu último romance, e também não menti nesse caso. Mas não disse, por sua vez, ou não o suficiente – me dava vergonha dizer, eu acho – que a catástrofe do coronavírus pode ser muito boa para a literatura, porque frequentemente o que é mau para a vida é bom para a literatura, e o que é mau para a literatura é bom para a vida. Quero dizer que a felicidade é muda, que em um mundo feliz não haveria literatura, ou pelo menos não haveria romances (poesia talvez, mas pouca e de má qualidade). Quero dizer que a literatura se alimenta do horror, do conflito, da discórdia: do mal, não do bem. Quero dizer que os escritores somos gente perigosa, animais carniceiros, no melhor dos casos indivíduos parecidos com os alquimistas, aqueles malucos que queriam transformar ferro em ouro: os melhores de nós convertem o espanto e o sofrimento em beleza e sentido. Por esse motivo a literatura é útil. Eu não acreditava nisso, que a literatura fosse útil, quando comecei a escrever e queria ser um escritor pós-moderno (se é que é possível um escritor pós-moderno norte-americano); mas agora, quando só quero ser o melhor escritor possível, sei que estava equivocado. Claro que a literatura é útil; desde que ela não se proponha a ser: no momento em que ela se propõe a ser, torna-se propaganda ou pedagogia. E deixa de ser literatura (ao menos boa literatura). E deixa de ser útil.
Claro, nesses dias falei muito de minhas leituras – de Don Winslow, de Robert A. Caro, de Wislawa Szymborska, de Walter Kempowski, de Alice Munro, de Clément Rosset, de Olga Tokarczuk ou de Os desnudos, o último livro de poemas de Antonio Lucas – , mas não lembro de ter dito que a leitura é ideal para o retiro do coronavírus, se se trata d e encontrar um espelho da nossa situação, são os romances e relatos de Franz Kafka, que têm a textura exata desses dias, quer dizer, a exata textura de um pesadelo.
Também não disse a ninguém que li os jornais de maneira furiosa e obsessiva, para não dizer francamente tóxica, e que por vezes senti ganas de crucificar o próximo charlatão que assegurasse que todos podemos ser heróis ficando em casa e o próximo falcão impiedoso que, como o ministro da economia holandês Wopke Hoekstra, usasse a palavra “empatia”, e o próximo articulista que tentasse demonstrar que isso não é uma guerra (e também o próximo que tentasse provar que é sim).
Mas o que sobretudo não disse a ninguém – em nenhuma língua, nem na imprensa, nem no rádio, nem na televisão – é o mais importante: que desde que me fechei completamente em casa, com minha mulher e meu filho, fiz o impossível para não passar um dia sem rir. Não apenas porque um dia sem rir é um dia perdido (como dizem que Charles Chaplin dizia), mas porque em um mundo sem Deus, o senso de humor é uma obrigação moral (como Kafka disse a seu jovem amigo Gustav Janouch); e, além disso, porque não paro de lembrar de Germaine Tillion, a grande etnóloga francesa, que durante sua prisão no campo de concentração nazista de Ravensbrück, teve a ideia genial de escrever e apresentar, junto com suas companheiras de confinamento, uma “opereta-revista” para rirem delas mesmas e de sua inacreditável desgraça. (A obra se intitula O Verfügbar no inferno e é uma paródia de Orfeu no inferno de Offenbach, por sua vez, uma paródia de Orfeu e Eurídice de Gluck). Não sei se isso é exatamente um ato heroico, mas na verdade é o que parece.
Em definitivo, isso é o que, enquanto centenas e centenas de pessoas morrem à minha volta, nos hospitais e nos asilos de velhos (ou simplesmente em suas casas), não disse ou não quis dizer a ninguém, ou me esqueci de dizer: que a alegria é o único antídoto eficaz contra o horror.
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Javier Cercas (1962) é escritor e tradutor espanhol, com vasta obra que inclui livros de ficção, ensaios, crônicas e traduções. Entre seus romances estão “Anatomia de um instante”, “O inquilino”, “A velocidade da luz” e “As leis da fronteira”. Já recebeu diversos prêmios na Espanha, também na Itália, Reino Unido, Grécia e Chile.
Texto escrito em abril de 2020, vigésimo segundo dia de confinamento. Publicado na Revista de la Universidad de México, maio 2020. Tradução de Eduardo Jardim.