Beauvoir no terreiro, por Rafael Haddock-Lobo

Beauvoir no Terreiro

BEAUVOIR NO TERREIRO

Rafael Haddock-Lobo

É Pedra Preta!
Quem risca ponto nesta casa de caboclo
Chama Flecheiro, Lírio e Arranca-Toco
Seu Serra Negra na Jurema, Juremá.

(Samba-enredo da Grande Rio, 2020)

 

O poeta Zé da Luz, para contar uma história de amor, ao invés de usar o tradicional “Era uma vez”, que inicia todo conto de fadas, usou a expressão “ai se sesse” para narrar a sua fábula. “Ai se sesse” é algo como uma frase suspirada, o sonho de outros mundos que parecem impossíveis, mas que são possíveis no encantamento. “Ai se sesse” não responde ao tempo do relógio nem ao espaço das fronteiras. Pode se dar em todo canto, a toda hora. E é com o mesmo “ai se sesse” que queria começar essa história que começa na Bahia.

Em 1960, chegando em Salvador e sendo recebidos por Jorge Amado e Zélia Gatai, os filósofos franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir passam algum tempo percorrendo o nordeste brasileiro. O que alguns ficaram sabendo é que eles foram ao Opô Afonjá e Mãe Senhora jogou búzios para o casal, dizendo que Sartre era filho de Oxalá e Simone, de Oxum. O que ninguém sabe, e aqui começa nossa história, é que Simone ouviu o conselho de Jorge, que costumava dizer que muitos candomblés na Bahia podiam até ser mais puros em seus ritos, mas que nenhuma macumba era tão espetacular como a do terreiro de João da Gomeia, na baixada fluminense.

Ao contrário do marido ateu, Simone de Beauvoir se encanta com a ideia de ver a mistura da cultura iorubana, banta e ameríndia e, ao chegar no Rio de Janeiro, pede para ser levada à festa de Seu Pedra Preta, caboclo patrono da casa. Abdias do Nascimento e Darcy Ribeiro a acompanham e, chegando em Caxias, instintivamente Simone se põe aos pés do dendezeiro, apoia suas duas mãos no chão e fala: Je suis de laGomeiá.

Quando Seu Pedra Preta baixa no terreiro, um vento forte chega e, toda arrepiada, Simone vai a ele e recebe um abraço forte. Nesse momento, o caboclo suspende a filósofa e grita para todos ouvirem: “Exa aqui, exa dotôra, veio pá defendê noxa caja, e vai xê makota de Matamba”. Sartre volta para Paris, irritado com a repentina crença da companheira, e Simone dá sua obrigação e passa a ser filha da Gomeia, vindo ao Brasil pelo menos uma vez ao ano para a festa da dona dos ventos.

Defensora de sua casa, como preconizou Seu Pedra Preta, Simone chega a publicar no JornalO Quilombouma resposta tardia à antropóloga americana Ruth Landes, que, como se sabe, sentou o pau em Joãozinho da Gomeia. Em seu artigo “Tata Londirá: o Canto do caboclo no quilombo de Caxias” (que em 2020 inspiraria o samba enredo da Acadêmicos do Grande Rio), Simone denunciava o preconceito que João sofrera ao longo de sua vida, como negro, homossexual afeminado e, em um tempo em que isso não era permitido, por ser um homem que não apenas recebia seus orixás, mas que os vestia nas festas.

Se Ruth Landes dizia que ninguém levava Joãozinho a sério, que era apenas um homossexual e dançarino que alisava seus cabelos compridos, a makotaSimone da Gomeia exaltava a vida política e cultural de Tata Londirá,sua importância para a consolidação da macumba carioca, que não tem lugar para purismos e que marca sua força no cruzamento das diferentes culturas vindas de África com as que havia aqui antes da chegada dos brancos.

Simone de Beauvoir se torna, ao mesmo tempo, grande aliada da luta pela defesa das culturas afro-diaspóricas e faz de Joãozinho da Gomeia o primeiro filósofo queer. Dando forma ao ensinamento de Seu Pedra Preta, a intelectual se torna ávida leitora de Walter Benjamin e, mais tarde, seus estudos influenciariam fortemente a filosofia francesa, em especial a de Foucault, que viria para o Rio de Janeiro, e não para São Francisco, se inspirar e pensar suaestética da existência.

Mas isso já é outra história. O que eu queria aqui contar é a história de um mundo em que bantos, nagôs e indígenas convivem no mesmo terreiro, em que mulheres brancas são aliadas de bichas pretas, em que francesas se tornam filhas de santo, em que antropólogas americanas não ditam o que é certo ou errado a respeito dos babalorixás e ialorixás, em que cada terreiro tem o direito de ter sua lei, em que filosofia, macumba e samba se complementam. Será que é um mundo tão impossível assim?

Mas o que essa nossa história conta é que, de fato, depois desse furdunço todo causado por Tata Londirá (e, ai se sesse, por Simone de Beauvoir), Joãozinho da Gomeia volta à Bahia em 1966 e faz suas obrigações com Mãe Menininha, se tornando o primeiro homem a vestir seu Orixá no Gantois. E parece que Matambafez questão de rodopiar com seus cabelos longos e alisados pelos quatro cantos do terreiro.

Contam, por fim, que em 2020, na Marquês de Sapucaí, as alas feministas, LGBTQ+ e o movimento negro se juntaram, a mando de Seu Pedra Preta, e cantaram: “Giram presidentes, penitentes e yabás/ Curva-se a rainha e os ogans batuqueiros pedem paz/ Salve o candomblé, eparrei oyá/ Grande rio é Tata Londirá”.

Mas quem ganhou o Estandarte de Ouro foi, no fim das contas, o caboclo!

Ai se sesse…

Trecho do livro “Arruaças – Uma filosofia popular brasileira“, de Luiz Antonio Simas, Luiz Rufino e Rafael Haddock-Lobo. Veja aqui! 

 

 

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