Simone Veil, o argumento definitivo
Silvia Camurça
Judia nascida na França em 1927, Simone Veil entrou para a história do feminismo ao defender, em 1974, o projeto de lei que despenalizou a interrupção voluntária da gravidez no país, diante de uma Assembleia Nacional composta quase com exclusividade por homens. Seu argumento influenciou o debate feminista em todo o mundo e também no Brasil.
Simone Veil se tornou ministra da Saúde do governo Valéry Giscard d’Estaing a partir de 1974, e sua atuação respondia ao intenso debate em torno do aborto presente na França desde o Maio de 68, com as proposições libertárias que defendiam a legalização, postura reafirmada no Movimento de Libertação das Mulheres e na estrondosa repercussão do Manifesto das 343, lançado em 1971, redigido por Simone de Beauvoir e assinado por 343 mulheres que declararam ter abortado.
No ano anterior à defesa de Veil, 1973, outro manifesto marcou a história francesa: 330 médicos lançaram um movimento pela despenalização do aborto afirmando que praticavam o ato, em frontal desobediência civil. No Parlamento francês, a comissão que examinava o projeto de lei, elaborado pela própria Simone Veil e colaboradores/as, já havia promovido audiências e debates sobre o tema. A imprensa vinha abrindo espaço a artigos pró e contra a legalização. Nas ruas, o feminismo efervescia com manifestações massivas, comparáveis às que ocorreram na Argentina em julho e agosto de 2018, no período de votação, na Câmara e no Senado, da lei que despenalizaria o aborto.
Esta é a primeira publicação em português da íntegra do discurso de Simone Veil, com sua argumentação precisa e delicadamente contundente, que não deu brecha a contestações. Sustentado na visão de responsabilidade do Estado sem abrir mão do argumento de autoridade de governo, Veil, então ministra da Saúde, faz a defesa seguindo um percurso sinuoso onde confronta um a um os argumentos contrários, caracterizando seu projeto de lei como realmente aplicável, com potencial de, ao mesmo tempo, reduzir a prática de abortos entre as mulheres e protegê-las quando precisam abortar.
Aos conservadores, Veil demonstrou a ineficácia de sua lei repressiva, uma vez que raramente aplicada, o que por isso mesmo a convertia em motor de desordem social. Afirmou a impossibilidade, comprovada historicamente, de impedir o aborto ou de prender todas as mulheres que o praticam, dada a magnitude da questão. Alertou que, na realidade social, quando cidadãos e cidadãs não respeitam a lei ou são levados ao ilícito por falta de alternativas diante de problemas reais, a ordem social e a autoridade do Estado estão sob risco, clamando por nova legislação.
Diante de “defensores da França” e formadores de opinião sobre políticas de população, Veil afastou o argumento de que o aborto seria a causa da redução da natalidade, uma questão demográfica que, por muitos anos, preocupou a política francesa, a tal ponto que a prática do aborto chegou a ser considerada uma ameaça à permanência daquele Estado.
Mas Simone Veil enfrentou essa questão afirmando o caráter natalista de muitas das políticas do governo a que servia: sublinhou as iniciativas de apoio à justiça social para garantia da maternidade, a responsabilidade do Estado com as famílias, mulheres e crianças e os programas de oferta de contracepção como formas de apoiar a opção pela maternidade e ofertar meios para evitar a gravidez indesejada. Assim defendeu seu projeto de lei, demonstrando que um conjunto de medidas estava orientado a fazer, do aborto, uma exceção na França.
Em diversos trechos de seu discurso Veil recorre à exposição da situação das mulheres. Visando provavelmente os setores religiosos, humanistas e parlamentares de “boa vontade”, ela apresenta o drama das mulheres que precisam recorrer ao aborto, questionando se os que as condenam estariam dispostos a ajudá-las e apoiá-las. De forma irrefutável, demonstra como a nova legalização do aborto na verdade iria favorecer a maternidade, na medida em que é um fator de proteção de todas as mulheres que, em dada circunstância, precisam abortar, garantindo a elas saúde para que sejam mães um dia.
Se considerarmos que a audiência era em parte hostil e em parte favorável, a escolha por se dirigir aos adversários, dialogando com o ideário conservador e entrelaçando essas três perspectivas, torna este discurso um exemplo primoroso de comunicação política estrategicamente orientado para enfrentar as críticas e mitos até hoje presentes no debate sobre legalização em distintos países. Ou seja, os mitos de que o número de abortos irá aumentar e de que a prática do aborto será banalizada. Simone Veil desconstrói a ideia de que manter leis repressivas é a solução, quando largamente elas já comprovaram seu fracasso: não diminuem o número de abortos nem protegem a vida das mulheres para que possam ser mães, acrescenta.
Para facilitar a aprovação, decerto por essa razão, Simone propôs cinco anos de experiência com a nova lei, e que, se os fatos demonstrassem o contrário do que ela apresentava como argumento, o Parlamento poderia e deveria voltar a revisar a legislação. Em 2011, o Parlamento francês reviu a questão, mas a fim de aumentar o número de semanas para garantia do direito ao aborto na França de doze para catorze semanas.
O aspecto definitivo do discurso de Veil reside na força de sua estratégia discursiva, montada e ancorada a partir do governo e por dentro do sistema político. Com certeza uma estratégia valiosa para outros contextos de embates jurídicos e legislativos, uma vez que sustentada na responsabilidade do Estado e na exigência de eficiência e efetividade dos governantes e legisladores, sem retirar o apelo humanitário da causa em relação à justiça social para todas as mulheres, nas mais diversas condições afetivas e socioeconômicas. Além disso, seu discurso responde aos setores conservadores e religiosos que faziam a defesa da vida do nascituro como prioritária em relação à da mulher.
No Brasil, a legalização do aborto na França repercutiu e ganhou maior visibilidade com o regresso das mulheres exiladas, que pertenciam ao Círculo de Mulheres Brasileiras de Paris. Nesse movimento de retorno, elas trouxeram para o país uma forte argumentação sobre o tema. Entre os anos 1970 e 1980, as reivindicações do feminismo brasileiro na área reprodutiva estavam centradas na autonomia das mulheres, no acesso aos métodos contraceptivos e contra o controle da natalidade. Para o movimento feminista, nesse momento, o desafio foi conduzir o debate enfatizando que o tema da liberdade sexual e reprodutiva das mulheres deveria ser entendido na perspectiva dos Direitos Humanos.
Especificamente em 1980, a polícia carioca “estourou” uma clínica clandestina no bairro de Jacarepaguá e prendeu duas mulheres pela prática do aborto. Nesse momento, as feministas organizaram um protesto reivindicando pela primeira vez, de forma pública, o direito de escolha. O silêncio que encobria o assunto estava definitivamente rompido e a prática do aborto se tornou um assunto de domínio público. Foi ainda na década de 1980 que se ampliou o debate sobre sexualidade, reprodução, aborto, contracepção, sempre sob o viés da autonomia das mulheres em relação ao seu próprio corpo, à vivência plena de sua sexualidade, à livre opção pela maternidade.
Contudo, a defesa da vida intrauterina do embrião vem sendo colocada no âmbito político desde o processo de redemocratização. O feminismo, na Assembleia Constituinte de 1988, enfrentou o debate e derrotou a proposta de inserir, no texto constitucional, a defesa da vida desde a concepção. Mas se manteve vigente o Código Penal datado de 1940, que, no Brasil, criminaliza o aborto voluntário. O texto considera não punível o aborto em casos de gravidez por estupro ou quando há risco de vida da gestante.
O ano de 1983 marca no Brasil o momento do primeiro projeto de lei que propõe a ampliação do direito ao aborto legal e trata da não criminalização da mulher em caso de fetos anencéfalos, o que veio a ocorrer somente em 2012 por decisão do Poder Judiciário, em razão de ação ajuizada pela anis – Instituto de Bioética. Aqui, por mais de vinte anos (1991-2007) tramitou um projeto de lei de descriminalização/legalização do aborto, apresentado por parlamentares do Partido dos Trabalhadores (pt), arquivado em 2007 após sua derrota em duas comissões da Câmara Federal.
Em todo esse período, fortaleceram-se no Congresso Nacional e poder legislativos locais frentes parlamentares antiabortistas que hoje predominam, e cresce o número de propostas legislativas que pretendem retroceder, criminalizando o aborto em todos os casos. Nos anos recentes, vivenciamos o acirramento de práticas de criminalização como o estouro de clínicas clandestinas em várias partes do país, a prisão ou indiciamento das mulheres com estímulo à denúncia policial quando as mulheres chegam aos serviços de saúde em processo de abortamento, os ataques e ameaças de processar judicialmente defensoras/es da legalização do aborto, as tentativas de coibir o debate sobre o tema nas universidades. Hoje, nosso contexto é oposto ao da França dos anos 1970, quando a tendência era flexibilizar a lei repressiva que já era “letra morta”.
Há, entretanto, semelhança de composição das forças em disputa. Aqui o embate legislativo se faz, como na França dos anos 1970, entre as opções de manter a lei como está e aprofundar a lógica repressiva; ou descriminalizar retirando o tema do código penal e legalizar ou regulamentar sua prática nos serviços de saúde. As forças políticas se estruturam, como na França daquele período, entre dois blocos adversários: setores feministas em aliança com médicos, pessoal da área acadêmica e profissionais da área social e da saúde com perspectiva progressista; e os setores conservadores, entre estes despontando, na cena pública, uma ultradireita que beira o fascismo com forte caráter misógino, racista e homofóbico.
Também aqui, como lá, a sociedade se divide. Mas a correlação de forças é outra: no Brasil as forças conservadoras detêm forte controle sobre o sistema político, seja por ocupação de cargos públicos e mandatos eletivos, seja pelo controle maior do sistema de comunicação, através de grande número de concessões públicas dos veículos a grupos religiosos do campo conservador. Há disparidade no poder de vocalizar as perspectivas antiaborto em detrimento das forças pró-legalização. Mas as mulheres resistem e o feminismo está pujante, nas ruas e nas redes, com crescente poder de inserção de seu ideário a favor do direito ao aborto na mídia.
Uma demonstração da força de influência feminista está registrado pelo grande número de artigos favoráveis publicados entre julho e agosto de 2018 na grande imprensa, por ocasião da audiência pública convocada pelo Poder Judiciário em torno à ação que questiona a criminalização do aborto e solicita que se inclua entre casos não puníveis a prática do aborto quando realizado até as doze semanas de gestação (adpf 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade – Psol).
Na linha argumentativa feminista há nuances que nos distanciam e aproximam de diferentes aspectos do argumento de Simone Veil. No início dos anos 1980, quando se iniciaram aqui ações de massa pelo direito ao aborto, o argumento central se baseava na premissa da liberdade e autonomia. Já no fim da década, nos embates da Assembleia Constituinte já estava demarcado o problema social que representava o aborto (com consequências mais graves para mulheres negras e de setores populares) e, desde os anos 1990, o Estado foi instado a assumir sua responsabilidade diante do problema do aborto, qualificado pela estratégia discursiva do feminismo de então como questão de saúde pública, dada a magnitude do número de casos anuais de aborto (àquela altura estimado entre 800 mil a 1 milhão por ano). Portanto, a dimensão do problema foi considerada aqui e lá, mas na França como demonstração da inoperância da lei repressiva, aqui como questão de saúde pública.
Outro aspecto que demarca diferenças e semelhanças de contexto entre Brasil atual x França de 1974 é o enfoque dos direitos reprodutivos, inexistente nos anos 1970. No Brasil, esse conceito começou a ser elaborado no feminismo, em paralelo à construção do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (1985), hoje política nacional (ainda que precarizada em sua implementação). A defesa dos direitos reprodutivos e sua inserção na agenda global de governos se fez por dentro do Ciclo de Conferências da ONU nos anos 1990, consolidando essa perspectiva em plataformas e compromissos internacionais.
No século XXI, contudo, é retomada com força a perspectiva da autonomia e autodeterminação reprodutiva como direito inalienável das mulheres, uma expressão do esforço feminista de resistir à restauração conservadora patriarcal. Essa perspectiva está presente aqui no Brasil na Plataforma da Frente Nacional Contra Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto desde o ano de 2009, e hoje vem sendo sustentada, especialmente, por uma nova geração de coletivos e organizações feministas com recorte autonomista e anarquista. Ao argumento da autodeterminação reprodutiva, mulheres negras e o feminismo negro associa a defesa por justiça reprodutiva, aspecto tão relevante quanto estratégico em sociedades racistas e desiguais como a brasileira.
A entrevista de Simone Veil publicada nesta edição oferece ainda uma leitura a respeito do momento de apresentação e aprovação da lei na França, analisando os pontos de conflito. Suas declarações nesse contexto são especialmente elucidativas das dificuldades atuais para as mulheres e o feminismo no Brasil. Simone aponta a forte reação masculina diante do deslocamento do lugar das mulheres na sociedade proporcionado com o advento da pílula anticonceptiva e com a legalização do aborto, fatos que abrem, para as mulheres, a possibilidade de se liberarem da maternidade como destino e como seu lugar fixo no mundo. Os comentários de Veil a essa reação, no passado, nos permitem compreender as formas atuais de reações masculinas ao feminismo no Brasil.
Simone Veil foi sobrevivente do Holocausto, sua família foi deportada na época da ocupação nazista na França e ela, aos 16 anos, viveu os horrores do campo de Auschwitz, onde todos os membros de sua família morreram, com exceção dela e de sua irmã Madeleine.
No pós-guerra, Veil estudou Direito e seguiu carreira de magistrada, casou-se e criou três filhos. Nos anos 1970 entrou para vida política, sendo ministra da Saúde e ocupando, nos anos seguintes, vários cargos políticos no Parlamento Europeu.
Enquanto ministra da Saúde, facilitou o acesso a métodos contraceptivos e elaborou a lei de despenalização da interrupção voluntária da gravidez, que entrou em vigor no dia 17 de janeiro de 1975. Foi presidente da Fundação para a Memória do Holocausto e esteve à frente do fundo para as vítimas, vinculado ao Tribunal Penal Internacional (TPI).
Faleceu aos 89 anos, em 30 de junho de 2017. Seus restos mortais, junto com os do marido, estão depositados no Panteão, em Paris, ao lado dos de outras quatro mulheres, entre os mais de setenta homens considerados heróis nacionais na França.
Que a coragem, disposição para ação e senso de justiça de Simone Veil nos inspirem, a todas e todos que se engajam na defesa desta causa no Brasil.
Silvia Camurça é socióloga e educadora popular, integrante do coletivo político-profissional sos corpo – Instituto Feminista para a Democracia, fundado em 1981 e sediado em Pernambuco. Organiza-se politicamente no interior do feminismo brasileiro na Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB).