Tirando a linguagem da trincheira, por Cynthia Enloe

Tirando a linguagem da trincheira
Cynthia Enloe
Tem soado bastante normal: “Estamos em uma zona de guerra”. “Nós somos todos soldados”. “Nós iremos derrotar este inimigo.” Nenhum de nós parece estar imune a recorrer à linguagem de guerra para descrever o atual estado de coisas e essa nova e estranha maneira de viver. É como se o contexto de guerra (mesmo que indiretamente) fosse a única fonte possível de metáforas e símiles de que precisamos para dar conta da pandemia global causada pelo novo coronavírus. O vírus é novo. A escala de nosso esforço coletivo para contê-lo é novo. Mas o repertório linguístico que estamos usando para descrever ambos é antigo – e inútil, na melhor das hipóteses inútil; arriscado na pior.
Somente nas últimas duas últimas semanas eu ouvi depoimentos – oficiais e não oficiais – relatando uma série de experiências em relação ao coronavírus. E comecei a compilar uma lista de termos e frases militarizados utilizadas por vários comentadores para tentar explicar essa nova experiência humana, (até agora) sem armas e sem bombas.
“Na linha de frente”
“Esforço de guerra”
“Realinhando as tropas”
“Enfrentando o inimigo”
“Tomando de assalto”
Os que estão lendo esta lista incompleta vão imediatamente adicionar suas frases:
“Nas trincheiras”
“Sacrifícios de guerra”
“As armas disponíveis”
“Névoa de guerra”
“Frente de batalha”
Imaginar que lidar com uma doença globalizada extremamente infecciosa, potencialmente fatal e suas consequências econômicas é equivalente a nos defender de inimigo empunhando armas pode ser tentador. Ceder a essa tentação linguística não é, no entanto, muito útil.
Em primeiro lugar, como as feministas de todo o mundo têm apontado, as guerras privilegiam as masculinidades, mesmo quando mobilizam mulheres em suas causas. O privilégio militarizado de certas masculinidades e lutadores é sempre perigoso, principalmente em um contexto de crise da saúde pública onde dois terços dos profissionais da saúde em todo mundo são mulheres.
Em segundo lugar, guerras requerem inimigos, inimigos humanos. Tomar esse esforço coletivo para acurar a saúde pública como uma “guerra”, acaba estimulando muitas pessoas a procurar adversários humanos. Não é por acaso que muitos americanos concentraram sua raiva militarizada em compatriotas asiáticos-americanos, especialmente quando o atual presidente dos Estados Unidos opta equivocadamente em rotular a doença de “vírus chinês”.
Em terceiro lugar, as guerras são frequentemente travadas com o sacrifício de processos democráticos: legitimando o sigilo do Estado, suspendendo direitos civis, desencorajando os debates públicos, restringindo o significado do que seja uma verdadeira segurança nacional. No momento, toda essa contenção está permitindo com que os republicanos e o governo Trump reduzam ainda mais os regulamentos de proteção ambiental e estendam restrições aos serviços de aborto, ambos em nome da liberação de recursos públicos para “combater o vírus”.
Nenhuma dessas práticas militarizadas e desses sacrifícios que subvertem a democracia fortalecerão o múltiplo esforço exigido para proteger efetivamente os não infectados, para curar os doentes e fornecer segurança sustentável para os refugiados econômicos.
Entre os passos que podemos dar para enfrentar com sucesso os desafios colocados pelo coronavírus, está a abertura de nossa imaginação, fazendo com que gestos de solidariedade em tempos de paz sejam tão emocionantes quanto o desembarque na Normandia. Podemos, assim, expandir nossas metáforas fazendo com que uma mulher com uma máscara de proteção seja tão interessante quanto a imagem de um homem camuflado; uma anestesista conectando um paciente ofegante ao respirador seja visto como um personagem tão heróico quanto um soldado de infantaria empunhando um rifle; e o paramédico que corre para socorrer uma mulher com forte tosse em sua casa, seja considerado tão corajoso quanto um piloto decolando um avião em um campo de combate.
Quais substitutos linguísticos poderiam promover essa desmilitarização da nossa imaginação?
“Solidariedade social”
“Freio de emergência”
“Colocando nossos corpos em risco”
“Lutando juntos”
“Recursos à nossa disposição”
“Líder nacional”
“Desafio comum”
“Serviço cívico”
“Sacrifícios compartilhados”
Você pode adicionar seus próprios substitutos para os termos desmilitarizados.
A desmilitarização da maneira como descrevemos e lidamos com esse desafio histórico exigirá mais do que reações em frente às nossas telas de televisão ou laptop. Cada um/a de nós precisará desmilitarizar ativamente nossos próprios repertórios linguísticos. A linguagem militarizada é nutrida em uma sementeira militarizada de imagens, narrativas e símbolos. E recorrer repetidamente a termos militarizados para descrever nossas angústias e esperanças atuais fertiliza, por sua vez, esse canteiro.
Ativistas e pensadoras feministas em sociedades tão díspares como o Congo, Síria, Japão, Ucrânia, Nigéria e Suécia têm nos advertido a não assumir ingenuamente que a militarização do mundo é alimentada apenas por gastos com defesa, fabricação de armas e mobilizações militares. Elas nos impelem a prestar atenção às nossas práticas militarizadas cotidianas, práticas essas que normalizam esses orçamentos distorcidos, os gastos desnecessários e ações provocativas. As palavras que escolhemos, os símbolos que favorecemos, as imagens que valorizamos são extremamente importantes. No meio de uma crise global de saúde, elas importam mais do que nunca.
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Cynthia Enloe (1938) é escritora e teórica feminista americana, com importantes pesquisas realizadas sobre relações entre gênero e militarismo. É autora de  livros como “The Curious fFeminist”, “Bananas, Beaches, and Bases” e “Nimo’s War, Emma’s War: Making Feminist Sense of Iraq War”.
Texto publicado pelo projeto The Quarentine Files (LA Review of Books), abril de 2020. Tradução de Ana Cecilia Impellizieri.

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