“Frenético”
Jack Halberstam
fre-né-ti-co
/ˈfran(t)ik/
adjetivo
adjetivo: frenético
> descontrolado ou perturbado pelo medo, pela ansiedade, ou outra emoção.
> “ela estava frenética de tanta preocupação”
do inglês médio tardio, frentik, “insano, violentamente louco”, do francês antigo, frenetique.
Primeiro Dia: Uma amiga me diz, pouco depois de explodir a pandemia, que o movimento frenético das pessoas ao redor do mundo tentando voltar para suas casas, faz ela lembrar dos relatos de judeus na Europa do início da Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, os judeus eram frequentemente comparados com vermes e infecções, e seus movimentos eram rastreados por antissemitas, como se eles fossem partículas virais espalhando doenças e ruínas pelos lugares que atravessavam. Agora, todos somos vetores virais, cúmplices em um sistema de contágio e isolamento que nos situa como transportadores ou espectadores. Em toda parte, uma corajosa linha de trabalhadores da saúde divide os dois.
Segundo Dia: A princípio, tento encontrar o lado positivo de não sair: terminar tarefas atrasadas, reparar coisas quebradas na casa, escrever. Mas em pouco tempo o peso de tudo que não pode ser consertado se faz presente. O movimento frenético na direção dos reparos se revela fútil. Em “Black and Blur”, Fred Moten escreve: “E se pudéssemos desvincular o reparo não apenas da restauração, mas também da própria ideia do original – não de maneira que o reparo venha primeiro, e sim que venha antes. Dessa forma, fazer e reparar são inseparáveis, inteiramente dedicados um ao outro, suspensos entre e para além deles mesmos”. A estranheza desse gesto é óbvia e comovente – Moten, como de costume, recusa a ideia de reparação como a sutura de um ferimento, como um retorno ao normal ou ao original. Para ele, o reparo está sempre em andamento, uma força incansável do fazer, refazer, desfazer, quebrar, nos intervalos.
Terceiro Dia: Na melhor das hipóteses, sou hipocondríaco. Agora, estou vendo se não tenho febre, e tentando interpretar diferentes incômodos e dores pelo corpo. O que é consequência de estar trancado em um apartamento sufocante e o que pode ser um sinal de doença? A doença é tudo que simplesmente se faz presente através da linguagem somática da dor? Lauren Berlant uma vez me disse que quando estamos doentes, tudo vira um sintoma. Mas quando não sabemos se estamos, todo sintoma é uma interrogação, uma decantação da saúde, um deslizamento inexorável em direção ao colapso.
Uma Semana: Depois de uma semana, estou entediado com minha própria crise existencial. Estou horrorizado com o que está acontecendo fora do campo de visão de muitas comunidades em quarentena – lemos relatórios diários sobre a falta de respiradores, trabalhadores da saúde sobrecarregados, cuidadores mal-pagos. Muitos de nós ouvimos sirenes ao longe, mas estamos distantes das linhas de frente. Outros estão nas linhas de frente das batalhas domésticas – nervos desgastados, crianças frustradas, espaços lotados, parentes e amigos doentes. A família, nos lembra Sophie Lewis, é uma unidade pobre na crise, propensa à auto-destruição, voltada para a violência patriarcal, movida por danos e raiva.Lewis sugere: “a quarentena é, para todos os efeitos, o sonho de um abusador…”. Certamente a família é apenas uma das muitas instituições que serão minuciosamente examinadas depois que isso passar?
10 dias: Como muitos estão dizendo: não podemos voltar ao normal. Nosso mundo às avessas que paga enormes quantias de dinheiro para CEOs passarem o dia sentados em reuniões, enquanto cuidadores independentes, auxiliares de enfermagem, os mais subordinados na indústria da saúde, aqueles trabalhadores que limpam bundas e dão conforto para doentes e idosos abandonados por suas famílias, recebem de 10 a 20 dólares por hora. Se queremos o normal de volta, merecemos toda a injustiça sobre a qual ele se apoia. Um poeta, uma vez, descreveu um futuro assustador como um monstro feroz; agora, devemos abraçar a ferocidade, amar o monstro, temer o humano.
Segunda Semana: Nós dissemos para nós mesmos, e uns para os outros, que, no capitalismo tardio, a possibilidade de revolução não existe – revolução na era da segurança seria mais uma série de ajustes que uma explosão cataclísmica de ações e recusas. Mas agora, imagino. Estamos trancados em casa. Todos dolorosamente cientes das desigualdades que separam o saudável do doente, o que recebe cuidados do abandonado à própria sorte, o atencioso do indiferente, o rico indigno do trabalhador pobre, o arrogante do desesperado, aqueles que estão sacrificando tudo daqueles que estão tomando conta dos seus bens à distância. Depois de longos dias estudando o drama liberado por um vírus, não temos todos que insistir não apenas na possibilidade, mas na necessidade de um outro mundo? Não queremos, todos ou pelo menos muitos de nós, depor líderes corruptos, redistribuir recursos, repensar nossos valores?
Noite: O pesadelo do vírus, seu movimento inexorável pelos corpos, me fez lembrar de um filme de terror, simples mas memorável, de 2014: It Follows[Corrente do Mal], dirigido por David Robert Mitchell. Você assistiu? Um grupo de adolescentes são contaminados – e depois contaminam uns aos outros – com uma infecção sexualmente transmissível, em que, depois do contato sexual com um portador, os contaminados são implacavelmente seguidos por um zumbi. O zumbi se parece o suficiente com qualquer pessoa para passar despercebido, mas também é diferente o suficiente para que o adolescente caçado tenha medo do que está por vir. Os espectadores também aprendem, junto com as vítimas, a diferenciar os zumbis das demais pessoas: eles se movimentam um pouco mais devagar ou um pouco mais rápido que todo mundo. Esse movimento assíncrono faz com que eles sejam simultaneamente difíceis de detectar e muito óbvios. Todos estamos sendo seguidos agora; espécies associadas em formas de partículas virais, silenciosas e indesejadas, algumas ligadas a hospedeiros humanos, outras flutuando livremente. Agora, ela segue, ela nos segue, nas palavras do filme, quando o portador original diz para sua vítima desavisada: “Essa coisa, ela vai te seguir, alguém me deu ela e eu passei pra você… Ela tá por aí, te seguindo… O máximo que você pode fazer é passar pra outra pessoa… Ela pode assumir a forma de alguém que você conhece ou de um estranho aleatório no meio de um monte de gente, qualquer coisa que a ajude a chegar perto de você”. Qualquer coisa que ajuda, também mata. O slogan do filme é: “Ela não pensa! Ela não sente! Ela não desiste! Ela segue!”. Freneticamente, tentamos estabelecer um distanciamento, uma distância social entre nós e nossos outros-zumbis-virais; mas eles se movem mais rápido, e mais devagar, sempre por aí.
Agora: A crise ou a vida, vividas de maneira frenética, mas separadamente, nos impõem novas temporalidades: tem o momento da doença – incubação, infecção, quarentena; tem o momento do tratamento – chamadas frenéticas, sirenes, viagens de emergência; tem o momento do confronto – morrer, respirar, ofegar, tossir. Não teremos apenas que nos revoltar em nome daqueles que morreram, teremos que tomar as ruas para proteger os vivos – não do vírus, mas de líderes patéticos que possivelmente usarão a crise para se estabelecer de maneira ainda mais firme em seu domínio autocrático.
Em Breve: Devemos estar frenéticos! Devemos estar descontrolados ou perturbados pelo medo e pela ansiedade, prontos para canalizar nossa energia frenética para desfazer os mundos financeiros, desmantelar o capitalismo imobiliário, depor nossos líderes patriarcais milionários, destrancar as portas das prisões, elevar o acesso aos cuidados básicos ao patamar de princípio elementar – e que será mantido como tal –, reverter os valores invertidos entre educar e lucrar, dissolver as instituições que enriquecem com a nossa angústia. É hora de ser frenético. Hora do frenesi. Ela é frenesi.
fre-ne-si
/ˈfrenzē/
substantivo
substantivo: frenesi; plural: frenesis.
um estado ou período de agitação incontrolável ou comportamento visceral.
Frenesi, pronome.
atividade intensa, usualmente visceral e normalmente desordenada, compulsiva ou agitada
Do Grego, phren ou mente.
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Jack Halberstam (1961) é professor titular do Departamento de Inglês e Literatura Comprada do Instituto para Pesquisa em Gênero e Sexualidade na Universidade de Columbia, Estados Unidos. Nascido Judith Halberstam, é autor dos livros Female Masculinity (1998), In a Queer Time and Place: Transgender Bodies, Subcultural Lives (2005), Trans: A Quick and Quirky Account of Gender Variability (2018) e A arte queer do fracasso [The Queer Art of Failure, 2011], publicado no Brasil pela Cepe editora.
Texto publicado no site Los Angeles Review of Books, abril de 2020. Tradução de Pê Moreira.