A embriaguez e a loucura do amor
Leonardo Boff
Além das muitas afinidades entre Rûmî e Francisco de Assis, há uma que é conatural à experiência do amor: a embriaguez e a loucura.
De Francisco de Assis, narram os textos que, embevecido de amor, saía pelas estradas e campos gritando: “O amor não é amado, o amor não é amado.” E proclamava o amor a Deus descoberto em cada dobra da existência e em cada pequeno sinal da criação, no pássaro que canta, no bichinho que penosamente tenta cruzar o caminho, no Irmão Sol e na Irmã Lua. São Boaventura, em sua biografia, diz que Francisco era dominado por um spiritus ebrius de comoção e afeto. Com efeito, ébrio do amor incondicional a toda as coisas e a Deus, dançava, tomava dois pauzinhos e os transformava em um violino, gostava de cantar as cantigas provençais de amor até em seus últimos momentos de vida. Os biógrafos testemunham: “cantando mortuus est” (“morreu cantando”). O amor a Cristo foi tão radical que se identificou com ele. De forma misteriosa foi assinalado com estigmas do Crucificado.
Essa embriaguez do amor faz parecer que as pessoas se tresloucam. Efetivamente, Francisco se entende como um louco. Diante de todos os frades reunidos juntos com o representante do papa, diz: “Deus voluit quod ego essem novellus pazzus in huius mundi” (“Deus quis que eu fosse um novo louco neste mundo”). Essa loucura não é patologia que possa ser curada. É um modo de ser da mais alta autenticidade, como forma alternativa de viver, portadora de um novo sentido e de novos valores que desbordam os limites daquilo que é, nos quadros do sistema imperante, sensato e normal. Essa loucura funda uma nova normalidade. A Igreja ortodoxa russa conhece um tipo de santo chamado “louco de deus”. São aqueles que, como Francisco, vivem para além dos cânones aprovados e que testemunham um despojamento tão grande que possibilita uma total entrega. Santa Xênia, na Rússia, é considerada o protótipo dos “loucos de Deus”, pois viveu uma vida à semelhança de São Francisco, totalmente pobre e a serviço dos abandonados nas ruas.
O mesmo percurso conheceu Rûmî. Inebriado pela experiência amorosa conjuntamente com Sams de Tabrîz, como narra seu filho e primeiro biógrafo Sultân Walad, “vivia delirando como um louco” e “enlouquecido de amor”. Num poema do Rubayat (Rubâ’iyyât) diz: “Hoje eu não estou ébrio, sou os milhares de ébrios da terra. Eu estou louco e amo os loucos, hoje.”
Como expressão dessa loucura divina, introduziu a samâ’, a dança extática, expressão do ser humano que busca Deus. Trata-se de dançar girando em torno de si e em torno de um eixo que representa o sol. Cada dervixe girante – assim são chamados os dançantes – se sente como um planeta girando ao redor do sol, atraído irresistivelmente por ele, até ele mesmo virar sol.
Num famoso texto, Rûmî diz: “O Amado resplende como o sol e o enamorado dança como um átomo. Quando sopra a brisa primaveril do amor, cada ramo que não esteja seco se põe a dançar.” Essa embriaguez do amor é testemunhada por muitos místicos, como Santa Teresa d’Ávila (1515-1582) e São João da Cruz (1542-1591), que a veem como um momento do itinerário místico do esponsal com Deus: “A amada no Amado transformada.”
Raramente, na história da mística universal, encontramos poemas de amor com tal imediatez, sensibilidade e paixão que aqueles vividos e escritos por Rūmī, seja sobre o amor como presença, seja como ausência. Temos a impressão de uma fuga com um sem-número de motivos que vão e vêm expressando todas as modalidades do amor, do desejo, da paixão, da dor da distância e da celebração da presença.
Num poema de Rubayat, canta: “Nesta primavera, o Amado não está comigo. Para mim não existem festas e alegria. Dir-se-ia que o jardim já não tem flores, mas espinhos; que das nuvens, em vez de chuva, caem-nos pedras.” Noutra vez, diz: “Se Tu não estás, para nada servem as tantas distrações. E lá onde Tu estás para que servem?” “Tu, único sol, vem! Sem Ti as flores murcham, vem! Sem Ti o mundo não é senão pó e cinza. Este banquete, esta alegria, sem Ti, são totalmente vazios, vem!”
Um dos mais belos poemas me parece ser este, por sua singeleza e densidade amorosa, tirado do Rubayat “O teu amor veio até meu coração e partiu feliz. Depois retornou, vestiu a veste do amor, mas mais uma vez foi se embora. Timidamente lhe supliquei que ficasse comigo ao menos por alguns dias. Ele se sentou junto a mim e se esqueceu de partir.”
Esse poema nos lembra o famoso verso XI do Cântico espiritual de São João da Cruz: “Mostra tua presença! Mata-me a tua vista e formosura. Olha que esta doença de amor não se cura a não ser com a presença e a figura.” O amor exige a presença, o toque, a carícia, a alegria incomensurável de estar junto.
Ou este outro de grande comoção: “Quando estás comigo, o amor não me deixa dormir. Quando não estás, as lágrimas não me fazem dormir. Mas eu fico desperto tanto na noite do amor quanto na noite das lágrimas.”
Por fim, para mostrar o eixo e o tempo do amor, eis as palavras de Rūmī: “É tempo de amor: o Amado escorre em mim como o sangue nas veias e na pele. De mim não resta senão um nome, todo o resto é Ele.”
O fenômeno místico desafia todos os analistas que se servem unicamente da razão. Por esse caminho ele é incompreensível. Mas se nos abrirmos à realidade do espírito, àquela dimensão em que o ser humano se descobre a si mesmo como parte de um Todo, como projeto infinito e mistério exprimível, então a mística é a linguagem mais adequada para expressar essa experiência de radicalidade. Bem notava o filósofo e matemático Ludwig Wittgenstein na proposição VI de seu Tractatus logico-philosophicus: “O inexprimível se mostra, é o místico.” E termina na proposição VII com esta frase lapidar: “Sobre o que não podemos falar, devemos calar.” É o que fazem os místicos. Guardam o nobre silêncio, ou então cantam com palavras que nos conduzem ao silêncio reverente. Essa experiência radical uniu Rûmî e Francisco de Assis. Mesmo longe um do outro, estavam muito próximos pela experiência apaixonada do amor.
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Trecho do texto “O eixo do amor: Rûmî e Francisco de Assis”, publicado na edição “A flauta e a lua – poemas de Rûmî”, organizado por Marco Lucchesi, lançado pela Bazar do Tempo.
Jalâl ad-Dîn Rûmî nasceu no atual Afeganistão, no século XIII, e foi poeta e mestre espiritual muçulmano, porém não ortodoxo, enraizado no islã, e considerado hoje a mais alta expressão do espírito de convivência entre tradições culturais e religiosas.
Leonardo Boff nasceu em Concórdia (SC), em 1938. Formou-se e Teologia Sistemática na Universidade de Munique, Alemanha. É professor Emérito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Escreveu mais de 80 livros sobre temas como teologia, ética, espiritualidade e ecologia. Entre eles “Jesus Cristo libertador” (1972), “Igreja, carisma e poder” (1982), “Francisco de Assis, saudades do paraíso (1985) e “Ecologia – grito da Terra, grito dos pobres”.
Magnifico texto! Eis a plenitude do Amor além do amor manifesto na Alegria