Perfil de Guimarães Rosa, por Paulo Rónai

PERFIL DE JOÃO GUIMARÃES ROSA
João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, onde viveu aproximadamente até a idade de dez anos. “Era o lugar mais formoso, devido ao ar e ao céu, e pelo arranjo que Deus caprichara em seus morros e suas vargens; por isso mesmo, lá, de primeiro, se chamara Vista Alegre… Ah, e as estrelas de Cordisburgo, também… eram as que brilhavam, talvez no mundo todo, com mais agarre de alegria” – diria ele muitos anos mais tarde pela boca de uma das personagens de O recado do morro. Não temos motivos para supor que a sua infância tivesse decorrido particularmente feliz; mas foi um período incrivelmente fecundo, cujos feitos e fatos se gravaram na mente do menino com extraordinário relevo e um halo mágico que os anos da maturidade não chegariam a apagar.
O filho daquele lugarejo perdido percorreria uma trajetória que ninguém, entre seus familiares e conhecidos, poderia prever; formar-se-ia médico, praticaria com probidade a profissão por alguns anos e depois abraçaria outra, ingressando mediante concurso na diplomacia. Aí, galgaria um posto depois de outro até alcançar o fastígio da carreira. Simultaneamente realizaria outro caminho, íntimo, em que o esforço e o estudo, aliados ao gênio inato, o tornariam um renovador da literatura de seu país. Sua fama de artista transporia as fronteiras do Brasil, seus livros seriam traduzidos, lidos, discutidos pelo mundo afora.
No decorrer de sua vida acontecer-lhe-iam coisas memoráveis. Mais de uma vez a sua existência individual ficaria engrenada nas rodas da História. Veria de perto o surgimento apocalíptico do regime nazista (cujas atrocidades combateria com todos os meios a seu alcance, protegendo perseguidos e salvando inocentes); assistiria à volta do pêndulo do Tempo, presenciando a Conferência da Paz em Paris; achar-se-ia em pleno centro de uma rebelião furiosa na Colômbia, desencadeada quando ele participava ali de outra conferência internacional. Devido aos postos que ocupava, e às amizades que tinha com figuras dominantes da época, veria de dentro o funcionamento das molas da política, o jogo dos interesses.
Tudo isso, porém, quase não deixou vestígios numa obra que, substancialmente, reflete o sertão mineiro, seus costumes, homens, bichos e plantas, assim como seus mitos, medos, assombros e superstições – dentro da perspectiva da meninice, nas proporções desmedidas da visão infantil. Luis Jardim disse certa vez que a pátria era a infância, tese de que o caso de João Guimarães Rosa constitui a melhor ilustração. Diversas vezes o escritor voltou à terra natal: à sua cidade e ao seu Estado. Sem falar nas férias de colegial, convém citar seus anos de médico em Itaguara, Belo Horizonte e Barbacena e, já em 1952, a grande viagem a cavalo no meio dos vaqueiros que levavam uma boiada de Andrequicé a Araçaí. Em todas as ocasiões, segundo depoimentos fidedignos, adotava atitude de observador, indagando, tomando notas, juntando material; mas a experiência, se reavivou e atualizou impressões, não empanou o frescor das reminiscências do menino.
Os que o conheciam no desempenho de suas funções de diplomata relatam que as exercia até nos menores detalhes com meticulosa inteligência e eficiente paixão. Os que tiveram a sorte de privar da sua amizade confirmam que praticava essa arte com todos os requintes da sensibilidade e da gentileza. Os que apenas cruzavam com ele, num ou noutro encontro casual, lembram-lhe a finura, o tato, a graça do espírito. Era um raro exemplar de homem civilizado, companheiro sedutor, conversador cativante. Poder-se-ia citá-lo, na verdade, como um paradigma da cordialidade brasileira. Aberto, prestativo, interessado nos problemas mesmo de simples conhecidos.
Resguardava, porém, o seu cantinho íntimo – onde nem tudo eram rosas – sob uma serena e pudica reserva. “Cordialíssimo – escreve a esse respeito um de seus poucos amigos íntimos, Franklin de Oliveira – como homem que tinha de pagar tributo e imposto ao inevitável conviver na labuta ordinária do quotidiano, ele, que era um ser necessitado de calor humano, e para quem a afeição era o bem soberano, evadia-se, ileso e arisco, quando os que dele se aproximavam o faziam tentando a indiscreta escalada. Então abrigava-se nas ‘solidões fortificadas’.”
Anos depois de sua morte assisti nesta Casa – que era a sua também, não por ter publicado todos os seus livros, mas também por fortes motivos afetivos – a um primeiro encontro entre dois grandes amigos dele que apresentei um ao outro acentuando-lhes a credencial: – “Então conhecia de perto o nosso Guimarães Rosa, esse grande extrovertido?” – perguntou o primeiro. “Não, eu conhecia de perto era o grande introvertido” – foi a resposta. Os dois Rosas eram igualmente autênticos.
Foi também o nosso escritor um espécime notável de estudioso, de humanista no melhor sentido da palavra. Bebia saber em todas as fontes. Completou as lições de coisas multicores da infância mágica com estudos sérios de Ecologia, Zoologia, Botânica. Sua memória prodigiosa guardara intactas as noções do curso de Medicina. Sentia atração especial pelos idiomas. Nos cafundós de Minas do seu período larvar aprendia grego, russo, alemão, japonês. Conhecia, mais do que isto, sentia o latim a fundo. Guardo como preciosa relíquia a gramática em que ele se iniciou nos mistérios do húngaro. E lia sofregamente literatura, guardando para sempre o enredo, as situações, os caracteres, até frases e páginas inteiras de seus autores favoritos. Mas a sua curiosidade não se restringia à literatura; um impulso ardente de penetrar além dos fenômenos do mundo percebível fazia-o debruçar-se sobre tomo de filósofos, esmiuçar teologias, perscrutar as respostas das religiões às inquietudes do espírito.
O escritor tinha consciência do seu valor e no entanto guardava certa timidez. Os êxitos de seus livros proporcionavam-lhe alegrias de criança; nas críticas – que as houve também – doía-lhe menos a restrição à sua arte do que a falta de amor que nelas julgava perceber. Seus íntimos sabem que a períodos de muita segurança interior sucediam nele fases de dúvida e de abatimento, quando tudo lhe carecia de importância, afora o destino reservado à sua alma imortal.
Suas relações com o idioma têm todas as características de uma ligação pessoal, quase física. Com um universo de seres e coisas de inesgotável riqueza a espicaçar-lhe os sentidos, e outro, não menos infindável, a extrair de dentro de si, constante de milhões de sensações nunca formuladas e de pensamentos ainda não expressos, a língua não lhe bastava em sua riqueza estática: ele a amolgava, forçava-a, torcia-a, submetia-a a experiências as mais audazes. Desejava dotá-la das opulências de todos os idiomas, transformá-la – paradoxalmente – num idioma só dele, mas entendida, saboreada, apreciada de todos. “Eu quero tudo: o mineiro, o brasileiro, o português, o latim – talvez até o esquimó e o tártaro. Queria a língua que se falava antes de Babel” – escrevia a Mary L. Daniel, scholar norte-americana, autora de uma tese sobre Grande sertão: veredas.
Os resultados conquistados nesse campo, tanto quanto as resistências encontradas, agiam como estimulantes sobre o seu espírito lúdico: o “exprimendo” passava por vezes a segundo plano, devido à força com que o “expressor” se impunha à atenção. Embora sequioso de repercussão, não transigia no que lhe parecia o seu “apport” mais original. Vi-o espreitar, com malícia brincalhona, as reações da crítica a certas inovações explosivas, assim como exultar ante a agudeza de alguns intérpretes que conseguiram captar-lhe as mensagens, muitas vezes propositadamente veladas.
Entretanto, nunca respondia a críticas, nem condescendia em explicar os seus escritos. Não que não estivesse armado para isto: naquelas páginas densas e hirtas, tudo, absolutamente tudo, correspondia a intenções, era calculado, funcionava como parte integrante de um sistema de expressão e de uma estrutura narrativa. Não conheci criador mais consciente. Algumas das nossas conversas já me davam essa impressão; depois de ele morto a impressão transformou-se em certeza à vista da volumosa correspondência do escritor com cada um de seus tradutores, epistolário de imenso valor que, quando publicado, há de constituir-se numa exegese única e num monumento sem analogia em quaisquer literaturas (noutra parte deste livro tento fazer o inventário do que ele nos deixou).
Ainda que seu lugar excepcional em nossa literatura já não possa sofrer contestações, estamos muito perto dele para podermos avaliar já tudo o que lhe devemos. Sem dúvida alguma ampliou inesperadamente a nossa visão do Brasil: por trás dos cenários do nosso dia-a-dia, submetidos às mudanças constantes impostas por um progresso excessivamente rápido, ele nos revelou outro país, imutável, intemporal, uma população que só aparentemente é nossa contemporânea, mas gravita em volta de mitologias ancestrais, em obediência a códigos atávicos sem por isso viver com menos intensidade os grandes problemas do homem. O diplomata impecável, o pensador erudito, o escritor genial, sentia-se realmente à vontade no meio desse povo interiorano, marginal, esquecido, em comunhão constante com a terra e com os bichos; ele se sentia realizado quando, em férias, pôde misturar-se à vaqueirama e acompanhar por semanas a lenta marcha de uma boiada pelo sertão. Seu desaparecimento brusco, prematuro, inesperado de todos, menos dele mesmo, golpeou o Brasil como poucos outros. Ao relermos hoje seu discurso de posse, pronunciado na Academia Brasileira de Letras três dias antes da sua morte, é difícil não vermos nele um adeus. O escritor sentia que pouco lhe restava de vida e esperava com a morte “provar que viveu”.
Para essa demonstração, porém, lá estavam seus volumes espessos, tangíveis, materializados, já vivos de uma vida transcendental. Aquela morte descerrou, antes, o que houvera de secreto, de misterioso na vida do escritor. Carlos Drummond de Andrade, num famoso poema escrito ainda sob o impacto da notícia, soube, com a intuição dos poetas verdadeiramente grandes, captar a atônita reação de todos:
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.
Duas palavras ainda a respeito das notas que acompanham os trechos. Não desconheço o risco que se assume tentando explicitar palavras e frases de um escritor cuja grande inovação (ou pelo menos uma delas) consiste em confiar à linguagem uma mensagem extra lógica, uma carga sentimental muito mais forte do que a intelectual. Como poderia esquecer o que o próprio Guimarães Rosa escreveu numa carta a seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason a respeito de Corpo de baile, mas que se referia a toda a sua obra?
“O Corpo de Baile tem de ter passagens obscuras. Isto é indispensável. A excessiva iluminação, geral, só no nível do raso, da vulgaridade. Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é chamada “realidade”, que é a gente mesmo, o mundo, a vida. Antes o óbvio, que o frouxo. Toda lógica contém inevitável dose de mistificação. Toda mistificação contém boa dose de inevitável verdade. Precisamos também do obscuro.”
Entretanto, para fazer da obra do Autor matéria viva da escola, a que tanto se procura infundir sangue novo e palpitação comunicativa, era indispensável facilitar aos jovens o acesso a esse universo em tantos passos hermético. A tarefa paradoxal exigia solução urgente. Uma Coleção do Brasil moço, que se subtitula Literatura Viva Comentada, não podia dispensar um volume de João Guimarães Rosa. Na qualidade de orientador da série, recorri a vários conhecedores da obra, espíritos atilados de extrema sensibilidade artística. Aceitaram o convite com entusiasmo, mas algum tempo depois escusaram-se por motivos vários; e o orientador, embora sabedor da própria insuficiência, teve de fazer-se apresentador e comentador. Na esperança de um julgamento compreensivo, ficará satisfeito se o presente volume, com todas as suas imperfeições, prestar algum serviço a professores e alunos, além de recrutar novos amigos para Miguilim, Riobaldo e as demais criaturas maravilhosas de João Guimarães Rosa.
Devo consignar meus agradecimentos aos amigos que quiseram dar uma olhada aos originais e ajudar-me com sugestões e conselho: em primeiro lugar, a Dona Maria Augusta de Camargo Rocha, amiga e secretária de Guimarães Rosa, profunda conhecedora de sua obra, por ter-me ajudado na interpretação de grande número de trechos duvidosos, e ao Prof. Gilberto Mendonça Teles, por ter lido os originais de todo o volume e contribuído para melhorá-lo com muitas observações agudas; a Dona Aracy, viúva do escritor, ao Sr. Vicente Guimarães, seu tio, e a Dona Vilma Guimarães Rosa por haverem prestado auxílio na confecção da cronologia; afinal, aos críticos e ensaístas, relacionados na bibliografia, de cujos trabalhos e ensinamentos tentei tirar o maior proveito possível.
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Texto publicado na Seleta de Guimarães Rosa, livro integrante da coleção Brasil Moço (Editora José Olympio), composto por 26 volumes lançados nos anos 1970, todos eles organizados por Paulo Rónai, com o objetivo de apresentar o melhor da literatura brasileira a jovens leitores, reunindo obras de escritoras vivos à época. Guimarães Rosa foi a única exceção, uma vez que morreu em 1967. Após a sua morte, Paulo Rónai ficou responsável pela publicação de suas obras póstumas.
A Bazar do Tempo lança em setembro de 2020 o livro “Rosa & Rónai – O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador”, reunindo a fortuna crítica de Rónai sobre o escritor mineiro, de quem se tornou maior interlocutor literário. Organização de Zsuzsanna Spiry e Ana Cecilia Impellizieri Martins.

PAULO RÓNAI Ensaísta, tradutor, filólogo, professor de latim, o húngaro Paulo Rónai (1907-1992) ficou conhecido no Brasil por suas premiadas traduções e como importante divulgador da literatura estrangeira, em especial da prosa e poesia húngara, seu idioma de origem, e também do francês. Depois de passar cerca de seis meses em um campo de trabalho em Budapeste, nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial , exilou-se no Brasil a partir de 1941, naturalizou-se brasileiro alguns anos depois e viveu no país toda a vida a partir de então. Tornou-se um grande especialista também da literatura nacional – sendo, por exemplo, o mais importante crítico e grande interlocutor de Guimarães Rosa – e mergulhando a fundo nos estudos da língua portuguesa.
A combinação de sua atividade de filólogo e exímio professor de latim, francês e italiano, somado ao insaciável apetite intelectual, além de produzir ensaios de alto teor literário sobre autores clássicos e contemporâneos, resulta no tino para trabalhos de grande fôlego e erudição, como são prova os dicionários, alguns feitos com a colaboração do amigo Aurélio Buarque de Holanda, e coleções, como Mar de História, reunindo contos universais em 10 volumes, realizada também com Aurélio, além da tradução da obra “A comédia humana”, de Balzac, trabalho que coordenou. Por seu extenso trabalho no campo das letras e incansável atuação como professor, escritor e crítico, Paulo Rónai se tornou um dos mais produtivos e admirados intelectuais do cenário cultural brasileiro do século XX.

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