Voz e con-tato
María de Rosario Acosta
Talvez, diferentemente daqueles que confiam na relevância da filosofia em tempos como esses, minha reação inicial à pergunta sobre o que a filosofia teria a dizer agora, neste estranho presente, seja de profundo ceticismo. Ou, para colocar de outra maneira, acho que, nesses momentos, a filosofia deveria mostrar-se vulnerável, em solidariedade com a vulnerabilidade compartilhada que estamos vivendo. Talvez eu ainda seja hegeliana demais: não porque eu ache que a filosofia sempre chega tarde demais – algo que nem o próprio Hegel pensou – mas porque, como Hegel, tendo a ser bem mais cautelosa com os riscos que se corre quando a filosofia chega cedo demais, quando, ao nos apressarmos em entender aquilo para o que ainda não temos categorias suficientes, acabamos enquadrando excessivamente a filosofia em conceitos e marcas de sentido que não respondem à singularidade das circunstâncias.
O que significaria saber escutar a realidade? Seria saber escutá-la na singularidade de suas reivindicações, antes de reduzi-la a mais uma instância de uma teoria previamente formulada, seja em resposta a condições históricas anteriores, localizadas geograficamente ou na completa abstração das condições materiais concretas, que reduz toda a realidade a um exemplo. Mas o que significa escutá-la agora? Seria escutar neste “agora”, que parece mais uma suspensão do tempo presente – o tempo de espera, a espera de uma catástrofe que está chegando, que já chegou, mas cuja magnitude e conseqüências devastadoras ainda não podemos prever ou imaginar. Ou o tempo paralisado, interrompido, inibido pela velocidade com que os eventos foram impostos e pela lentidão com a qual fomos capazes de responder a eles.
Um agora, além disso, impossível de pensar e entender, nem sequer como um único presente; porque, apesar de ser a pandemia, como o próprio nome indica, um fenômeno “global”, é inegável que há uma diferença quase abismal na maneira como diferentes populações em diferentes regiões do mundo experimentam as suas conseqüências. A pandemia, portanto, não “nos une”, acredito, como vi ser enfatizado desde que tudo isso começou, mas aprofunda e reforça as diferenças que já nos separam e que fazem, como já havia apontado Judith Butler, com que algumas vidas sejam de antemão “mais dignas” de serem choradas e algumas mortes “mais dignas” de serem lamentadas. E isso se vê reforçado pelo fato de que, independentemente de o vírus, à diferença de um agente com consciência, não distinguir raça, classe ou gênero, a distribuição de nossa capacidade de combatê-lo, incluindo os privilégios com que apenas alguns contam para nos proteger do seu contágio, eles são obviamente tão ou mais desiguais do que essa distribuição estruturalmente desigual do valor da vida e da memorabilidade da morte.
O vírus, então, não nos “une” e nem nos “iguala”. Mas talvez, nessa espécie de vulnerabilidade compartilhada, existam modalidades de nossa experiência da pandemia que de alguma forma possam “nos comunizar”, nos colocar em contato uns com os outros de outras maneiras – em meio à impossibilidade de contato, de sua proibição, da potência latente do contágio – e, com elas, de abrir outras possibilidades de relação, outras possibilidades de solidariedade, que talvez sempre existiram, mas agora são mais tangíveis do que nunca.
Penso, por exemplo, no efeito que a experiência da voz nesses dias provocou em mim – ouvir a voz de outras pessoas – em todos esses estranhos encontros virtuais, agora tornados cotidianos. De repente, no meio da impossibilidade de tocar os outros, de cheirá-los, de saboreá-los, e onde o sentido da visão apenas torna a experiência da distância ainda mais tangível e inevitável, a escuta parece “tomar a palavra”. É verdade que desejo ver as pessoas com quem converso – talvez agora até mais do que antes –, mas vê-las apenas reforça a certeza da distância: elas não estão aqui comigo, não há nada dessa visualidade que consiga invadir meu ambiente. Por outro lado, algo bem diferente sucede com a sua voz: se fecho os olhos e obrigo meus sentidos a se desordenarem, o que eu escuto pode também me tocar. A corporalidade da voz do outro se faz literalmente presente em ondas que me tocam, emulando por um instante o corpo ao qual essa voz pertence.
Tudo isso me lembra as linhas com as quais Guadalupe Santa Cruz, essa maravilhosa escritora chilena, mas pouco conhecida, abre seu romance intitulado “Este lote”: “Nunca nada teve ninguém a não ser as suas vozes, o corpo da voz que havia sido deles”. A protagonista do romance, uma cantora, conta a experiência oposta à que eu estava descrevendo agora: a perda gradual, porém irrevogável, de sua voz. Um corpo que até então era percebido apenas como uma voz, de repente, não pode mais ser ouvido, sentido, e a perda o obriga a entender como, na ausência dessa escuta, há outros modos de perceber. Na pandemia, acontece quase o contrário: de repente, temos que perceber uns aos outros quase apenas com a nossa voz, porque o som da voz dos outros é a única corporalidade que em sua ressonância nos toca. Obrigar-nos a nos tocar nesses corpos que são nossas vozes, dando-nos a oportunidade de nos pensar, como Jean-Luc Nancy propôs, como caixas de ressonância, talvez abra a possibilidade de entender de outras formas o que significa estamos “juntos” nisso.
O que significa a voz ser, nesses dias, o que nos comuniza? A que outras maneiras de ser solidário, de ser político ou de subverter as formas políticas e suas metáforas habituais, nos abre essa experiência radical de escutar como tato? Deve-se dizer que não se trata de substituir um sentido pelo outro, de propor que mais do que visibilidade, é a audibilidade, por exemplo, que poderia nos trazer outras maneiras de nos entender politicamente. Porque a experiência abrangente, às vezes até ensurdecedora da voz, nos força a ir além de uma inversão das hierarquias das quais geralmente organizamos nossa percepção. Antes, convida-nos a entrar num regime do “aural” cujas gramáticas, eu acredito, ainda não foram exploradas. E imagino com ele, então, um modo de perceber, que, como a escuta, mas desta vez fazendo de suas gramáticas os condutores de todos os nossos sentidos, depende inteiramente dessa abertura radical que, diferentemente da visão, do tato ou do gosto, não pode controlar, isolar-se, regular ou decidir o que toca.
Não há lugar aqui, nem deveria haver, para qualquer “romantização” das circunstâncias que a pandemia nos obriga a enfrentar; que esta é uma oportunidade de rever os modos de vida que escolhemos defender e perpetuar, a confirmação de todas as teorias que queriam anunciar e que sonhavam com o fim do neoliberalismo, as suas políticas de austeridade e as suas devastadoras conseqüências sociais, que finalmente a “natureza” (como se fosse uma ente separado e independente) está se protegendo dos danos que lhe infligimos – compreendo, é claro, a necessidade de encontrar um motivo para ser otimista em meio à catástrofe. Entendo a necessidade humana, demasiada humana, de se proteger do horror. Porque, visto de frente, o horror nos paralisa, nos deixa sem possibilidade de dizer qualquer coisa: ficamos em silêncio diante do que nem a imaginação teria podido nos preparar. Mas nada disso pode ser motivo para deixar de nomear a pandemia pelo que é, ou para evitar reconhecer as conseqüências devastadoras que ela já começou a ter e terá em todas aquelas vidas que, mais uma vez, ela afetará de maneira radicalmente desigual. Vidas, por exemplo, para as quais, em muitos casos, a pandemia será vivenciada apenas como mais um momento, não excepcional, no que já é uma luta cotidiana pela sobrevivência.
E, no entanto, uma coisa deve ser reconhecida em meio à incerteza que nos atormenta: será difícil perceber nossos corpos como antes, será difícil esquecer a porosidade radical que o vírus nos fez reconhecer mais do que qualquer outra experiência que tivemos em comum; será difícil esquecer que carregamos a vulnerabilidade à flor da pele, e que nessa superfície que evita o contato, conseguimos, no entanto, encontrar outras maneiras de nos tocar, sentir, e afetar a nós mesmos – outras maneiras de ser corpos e habitar o corpo de outras maneiras.
E, assim, se vamos falar de algo como a capacidade da filosofia escutar a realidade num momento como esse, devemos falar sobre a capacidade da própria filosofia se deixar transformar por essa exposição radical. Talvez haja em tudo isso algo nos obrigando a desordenar os sentidos, que permita que a voz se torne mais tangível do que nunca e que nos toque de maneiras que talvez, em nossa vulnerabilidade compartilhada, nos obrigem a parar e escutar. Escutar – ou melhor, entrar no regime do aural, onde a ressonância é a forma que adquire a experiência de sentir com os outros -– significaria, por um lado, nos obrigar a subverter as marcas do sentido e as gramáticas que determinam quais vozes contam como audíveis e quais são reduzidas a um mero ruído de fundo. Significaria também, por outro lado, entender que esses “ruídos de fundo” sempre invadiram o espaço do audível, que eles já nos tocam, em sua força muitas vezes ensurdecedora e em sua incansável capacidade de resistência recusada. Em última análise, isso significaria que o que deveria se fazer audível nessa exposição conjunta não é o que nos une, mas o que nos separa de uma maneira aguda e estrutural. Para que a experiência de solidariedade, se houver, desse vírus que supostamente nos acompanha, não signifique, mais uma vez, que apenas uns poucos podem habitar no privilégio, enquanto uma imensa maioria a experimenta como mais um exemplo da já normalizada redução da vida à mera sobrevivência.
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Maria del Rosario Acosta López é filósofa, doutora em filosofia pela Universidade Nacional da Colômbia e professora da Universidade da Califórnia, Riverside. É membro da REC Latin America.
Texto tem como origem uma intervenção oral no site Philosopher en temps d’épidémie , coordenado por Jérôme Lèbre, tendo sido posteriormente publicado no site espanhol Filosofía & Co, em maio de 2020.
Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback.