Os cantos de liberdade de Sarah Maldoror
A cineasta, autora de uma obra múltipla e rebelde e que participou das lutas de independência do continente africano morreu segunda, aos 90 anos
Luc Chessel
«Maldoror, adieu !», parece lhe saudar – décadas depois que ela decidiu usar este nome de revolta – o canto terceiro do poema de Lautréamont. A cineasta Sarah Maldoror morreu ontem, 13 de abril, em decorrência da Covid-19, conforme o anúncio de suas duas filhas. Nascida Sarah Ducados em 1929 em Condom (região do Gers), de uma mãe do sudoeste da França e de um pai de Guadalupe, Sarah Maldoror foi autora de cerca de quarenta filmes que compõem uma obra múltipla e rebelde, feita de ficção, de documentários e de poesia, e inaugurada com um canto de combate: o curta-metragem “Monangambée”, rodado em 1969 em Alger – onde ela então vivia – , que evocava a tortura pelo exército colonial português de um simpatizante da luta pela libertação de Angola, visitado na prisão por sua companheira.
Antes de se tornar pioneira do cinema pan-africano, Sarah Maldoror viveu uma parte de sua juventude em Paris onde, apaixonada por teatro e recebida na école de la rue Blanche [como a escola nacional de teatro é familiarmente chamada] – segundo seu colega, o futuro cineasta da Costa do Marfim, Timité Bassori, os dois foram os primeiros alunos negros a entrar na instituição – , ela funda em 1956 com o mesmo Bassori, Toto Bissainthe, Ababacar Samb Makharam e Robert Liensol a companhia Les Griots, que se torna a primeira companhia de teatro negro da França. “A tragédia do rei Cristovão” (La Tragédie du roi Christophe), de Aimé Césaire, e “Os negros” (Les noirs), de Jean Genet fazem parte das peças encenadas pela trupe, que Maldoror dirige com a ajuda material e intelectual de Alioune Diop, fundador, em 1947, da importante revista anticolonialista [e futura editora] parisiense Présence africaine.
Um dos primeiros filmes africanos dirigidos por uma mulher
Em 1961, Sarah Maldoror deixa a França para estudar na VGIK, a escola de cinema de Moscou, antes de se juntar aos movimentos descolonização africanos (na Algéria, Guiné et Guiné-Bissau) com seu companheiro Mário Pinto de Andrade, co-fundador do Movimento pela libertação da Angola, em exílio em Paris durante o período em que a guerra de independência (1961-1975) contra a metrópole portuguesa estava no auge.
É em Alger, para onde ela se mudou em 1966, que ela se engaja no front cinematográfico das lutas anticoloniais: depois de trabalhar como assistente em “A batalha de Alger”, de Gillo Pontecorvo (1966), e em “Festival pan-africano de Alger” (1969), documentário de William Klein, ela dirige seu primeiro filme, seguido de um filme perdido rodado na Guiné-Bissau e de um primeiro longa-metragem “de ficção”, “Sambizanga” (1972). Filmado na República do Congo, a partir de um romance angolano de José Luandino Vieira, adaptado por seu comanheiro Pinto de Andrade e pelo escritor francês Maurice Pons, “Sambizanga” se passa em 1961 e descreve a repressão do Movimento de Libertação de Angola do ponto de vista de Maria, mulher de um militante revolucionário preso e torturado pelo exército português, que parte a sua procura pelo país. Filmado com atores reais da luta então em curso, e um dos primeiros filmes africanos realizados por uma mulher na história do cinema, “Sambizanga” permanece sendo visto e visível – é possível encontrá-lo facilmente na internet. < Veja aqui>
Retratos de artistas e escritores
Deixando a Algéria após uma desavença com a cúpula do FLN [Frente de Liberação Nacional – partido nacionalista argelino] então no poder (algumas fontes mentionam que ela teria sido presa e expulsa do país), Sarah Maldoror se instala na França, em Saint-Denis (Seine-Saint-Denis) [subúrbio de Paris] e continua a fazer filmes. Sua obra inclui documentários (filmados em Seine-Saint-Denis, na Martinica, na Guiana, no Cabo Verde para Fogo, l’île de feu , de 1978) e diversos retratos de artistas e escritores (os poetas Léon Gontran-Damas, Aimé Césaire, Assia Djebar, René Depestre, Édouard Glissant ou Louis Aragon, a cantora Toto Bissainthe, o músico Archie Shepp). Disponível no site da videoteca da CNRS <https://videotheque.cnrs.fr>, um curta de 1974, Et les chiens se taisaient [E os cachorros se calavam], filmado nas reservas técnicas do Museu do Homem dedicadas aos objetos da África negra, adapta trechos da peça de mesmo nome de Aimé Césaire, com o ator Gabriel Glissant (visto em Soleil O do grande Med Hondo) e a própria cineasta no papel da mãe revolucionária, vestida com uma irônica blusa branca de cientista. Mas se existe uma ciência da revolta, Sarah Maldoror terá escrito – filmado e atuado – algumas de suas maiores páginas. No filme, ecoa em cada canto dos bastidores do Museu do Homem o barulho fogo.
Luc Chessel é crítico de cinema.
Publicado no jornal Libération em 14 de abril de 2020. Tradução de Ana Cecilia Impellizieri Martins.
Mais:
No jornal português Diário de Notícias, um belo artigo de Ferreira Fernandes, que encerra o texto com o poema de Aimé Cesáire:
“A Sarah Maldoror…
que,
câmara no punho,
combate a opressão,
a alienação
e desafia
a estupidez humana”.
A matéria completa em : https://www.dn.pt/cultura/morreu-sarah-maldoror-pioneira-do-cinema-africano-12064063.html