O feminismo negro, o mar, a música e a poética erótica de Yuliana Ortiz Ruano

Criada em Esmeraldas, margeada pelo mar, a música e o afeto das suas ancestrais negras, Yuliana Ortiz Ruano desde pequena se “sentia uma escritora” e reunia as primas e primos menores para lhes contar histórias. Na casa do avô, ouvia o parente recitar poemas e tocar guitarra. Da rua, vinha o som de rappers, de salsas, merengues, tudo misturado à batida da marimba, instrumento musical utilizado pelos povos do Pacífico colombiano e equatoriano. 

A presença das bisavós, avós, mãe e tias moldou o feminismo praticado na vida cotidiana de uma sociedade matrilinear, que deu à Yuliana as noções de liberdade para lutar pelos seus direitos e, ao mesmo tempo, desfrutar da vida e dos prazeres do corpo. 

“Cresci com uma bisavó e uma avó que representavam o saber, o conhecimento. Minha vó era uma espécie de guia espiritual e social, que me ensinou como amar, como escolher a mim. As minhas ancestrais nunca me disseram que eu tinha que casar, mas diziam que eu precisava estudar, viajar. Elas trabalharam duro para que todas as filhas, sobrinhas e netas estudassem nas melhores escolas, lessem os melhores livros e pudessem sonhar com uma vida melhor do que a delas”, contou Yuliana no podcast Hablemos escritoras

A essa “mulheridade”, como ela define a solidariedade e os ensinamentos da comunidade que a criou, Yuliana acrescentou as leituras, a convivência e o aprendizado que obteve da convivência com as companheiras feministas de Guayaquil – para onde se mudou, a fim de estudar e viver, finalmente, como a escritora que sempre soube ser. Também conta que leu muito nesse período de formação, sobretudo poesia, e livros de pensadoras e pensadores do que ela define como um “marritório” – um universo compartilhado de pessoas que vivem às margens do mar, seja no Caribe, nas bordas do Pacífico e no Atlântico negro. 

É dessa formação que Yuliana cria a sua “poética erótica”: sua trama literária vem da música, da potência de Eros, da práxis do feminismo negro e da poesia litorânea que se espraia pelos seus poros e vai dar nas páginas do livro Febre de carnaval

“Penso muito em Conceição Evaristo, que trabalha o conceito de escrevivência. É com essa práxis do feminismo negro, essa generosidade radical que aprendi no bairro, em casa e com as leituras e teorias que eu sigo fiando minha escrita. Essa possibilidade de se deleitar, mesmo em espaços e em contextos dolorosos, de celebrar nossas vidas, de tecer caminho para que outras se liberem também.”

É no território banhado pelas águas de Esmeraldas, ilha onde cresceu, que ela conta a história de Ainhoa, a menina que “inventa” sua vida a partir de experiências compartilhadas com outras mulheres de sua família e comunidade. “Eu precisava de uma personagem infantil, que ainda não tem conhecimento total do que pode e do que sofre o seu corpo, porque eu queria criar uma linguagem desobediente. Infantil, mas desobediente. A minha pulsão de escrita vem da música, mais especificamente da salsa, que está na alma das personagens”, disse numa mesa da Festa Literária das Periferias, no dia 17 de novembro de 2024, no Rio, onde lançou Febre de carnaval, traduzido no Brasil por Larissa Bontempi.

Num encontro na Janela Livraria, na véspera da participação do festival literário, com as escritoras Luciany Aparecida e Luiza Romão, ela comentou a ideia de “marritório”, trazida à mesa por Romão. Uma escrita influenciada pela experiência de estar rodeada por água, mas também de ter acesso a outras matrizes de pensamento que se cruzam nos mares do Caribe, do Pacífico e do Atlântico. 

Yuliana, que já contou ter aprendido português para ler Beatriz Nascimento e Conceição Evaristo, citou também a historiadora Saidiya Hartman e seu conceito de fabulação crítica para dizer que, em sua literatura, o que não pode ser dito (a revitimização da violência sofrida pelas mulheres) precisa ser inventado. Em Febre de carnaval,  a narrativa é permeada por frases poéticas e trechos de músicas, que, embora destacados do texto principal, se integram a ele para fazê-lo pulsar no ritmo das salsas e se integrar à história.

Ainhoa diz ter um “animal na garganta” que a lembra o tempo todo do vazio das coisas que dormem em silêncio no corpo e que não podem ser ditas. “Crescer é não poder abrir a boca quando as coisas te desagradam.” Se não sabe nomear a violência dos homens à sua volta, cria a sua própria linguagem: o pai abusador, violento e sujo é o “não-papai”. Seu repertório infantil extraído do corpo (cocô, xixi, suor, mau cheiro, perfume, secreções) também é feito das letras de músicas que escuta nos momentos de catarse e cura, durante as festas e os carnavais. 

Sua mãe é feita de água e é para a água que Ainhoa quer retornar, mas é à terra que ela recorre, numa mistura com a saliva, numa reza à avó Mama Dona, a matriarca da família. A menina pede para a mais velha proteja sua irmãzinha bebê, que ela cresça “sem mãos e rostos que aparecem debaixo dos edredons.” Na orelha do livro, Luciany Aparecida destaca a linguagem de Ruano que, no livro, faz da música o silêncio. Mas que, desse aparente remanso, faz também surgir a voz de Ainhoa. 

“Quando o cérebro de uma garota vira mingau, não só seu corpo ferve, como um caldo de bola que, ao ser derramado, pode queimar um povoado inteiro, mas seus pensamentos por dentro também dançam uma dança assassina, destruindo-a. Tudo o que a garota pensa vira um coágulo que rola lentamente pelo chão da casa”, escreve a narradora de Febre. 

“No processo de escrita de Febre, pude recordar de todas essas tramas femininas, de mulheres negras generosas, radicais, gozosas, alegres, festivas. Me dei conta que queria chegar a uma poética erótica também. E não somente ser um espaço que me dá a branquitude, de pobrezinha que é negra e não tem as oportunidades”. 

O livro não se priva de mostrar a violência patriarcal contra mulheres, os pais e avôs que são “não-homens” e a dor que, para Ainhoa, ainda não tem nome. Mas, como escreveu Luciany Aparecida, a sua “lírica é utilizada como ferramenta alargadora do mundo, um escape da violência”. 

Um livro para ser lido, cantado e usufruído por nossos corpos com prazer.

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