O ano em que Belo Horizonte enfrentou a peste, por Heloisa M. Starling

O ano em que Belo Horizonte enfrentou a peste
Heloisa Murgel Starling

Logo nos primeiros dias de julho de 1918, o jornal “O Combate” trouxe a notícia: um surto de gripe tinha paralisado o esforço de guerra na Alemanha – tanto na economia quanto na capacidade de mobilização da sociedade. Publicado em São Paulo, em forma de tablóide, o jornal fazia parte da imprensa de filiação anarquista e tinha um claro propósito: convencer o maior número possível de brasileiros de que aquela era uma guerra insana. Seus redatores entendiam que a Alemanha havia escolhido provocar a guerra para tornar-se uma potencia mundial, torciam para que o exército alemão fosse forçado a recuar depois de ter empurrado o mundo na direção do desastre, e se recusaram a acreditar na noticia de que a velha e inofensiva gripe conseguiria sustar o esforço de guerra, em Berlim. “Atchin!…Atchin!..”, manchetou, irônico, na primeira página.
Não levou três meses, mas “O Combate” precisou mudar o tom das manchetes. Aquela era uma gripe esquisita. Em mais ou menos 90 dias iria infectar um quinto da população mundial e matar entre 20 milhões e 50 milhões de pessoas. No mês de outubro, a gripe desembarcou em São Paulo, vinda do Rio de Janeiro – cinco mil paulistanos morreram até o final de dezembro. Os jornalistas deixaram a incredulidade de lado e trataram de informar aos leitores que os casos estavam avançando depressa demais na cidade e era uma pandemia, vale dizer, um tipo de epidemia sem controle e com expansão mundial. Chamava-se “Influenza Hespanhola”, avisou o jornal. Mas entrou para a História com o nome de “Gripe Espanhola”.
O alerta veio da Espanha, o primeiro país a dar publicidade à virulência e à carnificina produzida pela doença – por essa razão, a moléstia ficou conhecida com o nome de “gripe espanhola”. Justiça seja feita, não foi só “O Combate” que precisou rever suas previsões sobre a letalidade de uma gripe. O mundo inteiro custou a reconhecer a pandemia. Metidas no cataclismo de um conflito que podia até estar no final, mas já durava há quatro anos, as potências ocidentais estavam exaustas e levaram tempo até encarar a gravidade da ameaça. A negligência custou caro: a gripe fez, em menos de cinco meses, um número de vítimas superior aos mortos enterrados nesses quatro anos de guerra.
Ninguém atinava com o que era aquilo. Em 1918, a comunidade científica conhecia pouco sobre a estrutura e a forma de atuação de um vírus e, menos ainda, como havia surgido a nova cepa que deu origem à influenza. Os médicos tampouco conseguiam entender que a alta capacidade de mutação do vírus dificultava o reconhecimento pelo sistema imunológico da vítima e anulava a chance de imunidade por infecções anteriores. E também não se sabia ao certo onde a Espanhola começou. Talvez ela tenha se originado em algum lugar nos Estados Unidos, e chegado à Europa junto com os soldados embarcados no verão de 1918, para participarem da montagem do rolo compressor dos aliados que levaria ao fim da guerra. Mas uma coisa é sabida: a doença atacava rápido, contaminou as tropas em terra antes que precauções fossem tomadas, e se espalhou pelas populações civis em duas ondas mortíferas, durante a primavera e o outono de 1918. Seguia uma espécie de rota geográfica. Atingia inicialmente as zonas litorâneas, em seguida embarcava nos navios, e descia em terra com os marinheiros – foi desse modo que alcançou a Índia, o sudeste da Ásia, a China, a África, o Japão, a América do Sul.
A gripe espanhola desembarcou no Rio de Janeiro provavelmente no dia 14 de setembro. Veio de Lisboa no barco “Demerara” que atracou no porto com gente doente a bordo. Os tripulantes desceram na Praça Mauá sem que ninguém prestasse muita atenção, mas já contaminados e contaminando, conta o escritor Pedro Nava. A doença irrompeu em setembro e as autoridades demoraram a abrir os olhos. Tornou-se calamidade no meio de outubro. Era apavorante a rapidez com que a gripe ia da invasão ao apogeu em algumas horas. A vítima sentia uma dor de cabeça lancinante seguida de sufocações; a morte sobrevinha em poucos dias. “Aterrava a velocidade do contágio e o número de pessoas que estavam sendo acometidas”, diz Nava. “O terrível já não era o número de causalidades – mas não haver quem fabricasse caixões, quem os levasse ao cemitério, quem abrisse covas e enterrasse os mortos. O espantoso já não era a quantidade de doentes, mas o fato de estarem quase todos doentes e impossibilitados de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros, aviar receitas, exercer, em suma os misteres indispensáveis à vida coletiva – quatro quintos dos cariocas no chão, na cama ou na enxerga dos hospitais”, ele descreveu em “Chão de Ferro”, um de seus livros de memórias.
Em Belo Horizonte, a gripe espanhola chegou quase sem fazer barulho. É certo que todo mundo tinha alguma informação a respeito da peste que ameaçava dizimar o Rio de Janeiro, mas as autoridades mineiras andaram minimizando noticias sobre a doença: “é pura e simplesmente a gripe ou influenza; cumpre não confundi-la com a gripe pneumônica, de Dakar, que esta sim é gravíssima, de prognósticos muito sérios”, tranquilizava o jornal “Diário de Minas”. E concluía: “não há, pois, razão para nos enchermos de terror, como vai acontecendo por aí, confundindo uma coisa com outra, pondo em sobressalto toda gente”. Não se sabe de onde o “Diário de Minas” tirou suas informações sobre a benignidade da epidemia, mas não falava sozinho. Os médicos batiam boca diante de uma doença que ninguém ainda tinha decifrado, o governo estadual temia a paralisação do comercio, os eventuais prejuízos econômicos, as consequências de ter de enfrentar uma população em pânico. A imprensa repercutiu o Palácio da Liberdade.
Tranquilizar a população era um modo de tranquilizarem a si próprios –médicos, governantes, jornalistas. Ademais, Belo Horizonte tinha fé no imaginário que concebeu para si, e isso dava credibilidade aos argumentos de quem se recusava a acreditar na aproximação de uma epidemia. Construída de acordo com os modernos preceitos de higiene urbana da época estabelecidos por engenheiros e sanitaristas de competência nacional, como gostavam de alardear as autoridades, Belo Horizonte tinha boas condições de salubridade e um clima excelente. O número reduzido ou inexistente de doenças com potencial de epidemia até então registrados na cidade – difteria, cólera, febre amarela, varíola – reafirmava a crença nas boas condições sanitárias da capital de Minas e a população recebeu com certa despreocupação as notícias vindas do Rio de Janeiro.
O alarme só disparou no início de outubro. Cotidianamente, o trem noturno partia da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, atravessava as cidades da zona da Mata mineira e aportava, de madrugada, na Estação Ferroviária – a porta de entrada de Belo Horizonte. No dia 7 de outubro, um oficial proveniente da Vila Militar, no Rio de Janeiro, desembarcou na Praça da Estação junto com a família. Instalaram-se, numa casa, no bairro da Floresta e, dois dias depois, os primeiros sintomas da Espanhola se fizeram sentir. Quem morava no bairro entrou em pânico assistindo à chegada dos enfermeiros responsáveis pela transferência imediata dos doentes para o Hospital de Isolamento, e dos funcionários da Diretoria de Higiene – o equivalente hoje à Secretaria de Saúde –, devidamente paramentados, transportando, em carroças da prefeitura, o equipamento para desinfecção da casa. As autoridades responsáveis pela saúde pública tentaram aliviar a gravidade da situação, mas já não havia mais tempo. No final da primeira quinzena do mês de outubro, os moradores de Belo Horizonte começaram a ser confrontados com os efeitos da gripe epidêmica na cidade. O surto não tinha nada de benigno, a doença avançava com rapidez pela zona urbana, suburbana e rural e atacava qualquer pessoa: ricos e pobres, homens, mulheres, crianças, velhos, jovens, fracos ou atléticos, sem distinção.
Foi então que Belo Horizonte se encontrou com a peste. O médico Samuel Libânio, responsável pela Diretoria de Higiene suspendeu o comércio e ordenou o fechamento das lojas; os proprietários obedeceram, mas a contragosto: a influenza não iria se alastrar em Belo Horizonte com a mesma força como acontecia no Rio de Janeiro e os prejuízos seriam incalculáveis para a economia do estado, reclamaram, furiosos. As ruas ficaram vazias, cafés e bares, cinemas, clubes e casas de diversão às moscas, a circulação dos bondes reduzida. O Colégio São José, na Rua dos Tamoios, foi o primeiro a interromper as aulas; em seguida, vieram as escolas públicas – Grupos Escolares, a Escola Normal e o Ginásio Mineiro –, os colégios particulares e as quatro faculdades que, no futuro, dariam origem à UFMG: Direito, Medicina, Odontologia e Farmácia. Tudo estava deserto, menos as farmácias onde uma multidão se aglomerava em busca dos medicamentos que começavam a faltar. Fechadas em casa com os provimentos que se podem acumular, as pessoas se esforçavam em resistir, mas rareavam gêneros de primeira necessidade: pães, leite, carne, verduras, fubá, açúcar, sabão.
Ninguém controla a peste de uma só vez, ensina Daniel Defoe no romance “Diário do ano da peste”; é preciso desencadear os mecanismos de defesa e ir aperfeiçoando os meios de proteção: compreender o contágio, descobrir de onde a doença partiu e como ela se expande por uma cidade. Em Belo Horizonte, a gripe espanhola se alastrou indiferente pelos bairros. Os hospitais não dispunham de capacidade para receberem tantos doentes ao mesmo tempo, e era urgente criar um serviço de hospitalização para mendigos e para a população pobre. Havia dificuldades de abastecimento, risco de desemprego, queda no volume de negócios, perigo de falência, desestruturação dos elementos que constroem o cotidiano das pessoas. Quem não era funcionário público, não recebia salário mensal e vivia exclusivamente do trabalho diário, ficou em situação precária – iam faltar recursos. Não existia remédio disponível para todo mundo e as pessoas não podiam dominar a epidemia, mas descobriram que era possível juntar esforços para tentar combatê-la. Reconhecer isso uniu a população. A Congregação da Faculdade de Medicina transformou o prédio da sua Escola em hospital provisório com 112 leitos e nove enfermarias, e orientou professores e estudantes a irem além do atendimento interno, prestando serviços nos inúmeros postos de saúde que estavam sendo abertos na cidade. A Escola de Enfermagem Carlos Chagas – a primeira escola de enfermagem de Minas Gerais, hoje integrada à UFMG – ainda não existia, mas a Congregação da Medicina nem titubeou: os médicos convocaram as enfermeiras da Cruz Vermelha para o trabalho nos hospitais e elas responderam – imediatamente.
O prefeito Vaz de Mello, por sua vez, mandou executar desinfecções diárias nos bondes elétricos e endureceu de vez as medidas para evitar o contágio: proibiu aglomerações nas ruas e nos locais públicos, incluindo as romarias ao cemitério do Bonfim, no dia de Finados que se aproximava. A Igreja Católica cancelou aulas de catecismos e encontros de fiéis e engajou padres e associações religiosas na coleta e distribuição de alimentos, auxílio financeiro e remédios e na divulgação das medidas preventivas para evitar contágio. A mais conhecida dessas associações, a Sociedade São Vicente de Paulo, abriu sete postos de socorro para atender à população da região que, à época, compunha a zona suburbana de Belo Horizonte: Floresta, Lagoinha, Quartel, Barro Preto, Cardoso, Barroca. As poderosas comunidades de imigrantes italianos e espanhóis não deixaram por menos e disponibilizaram as sedes de suas Sociedades de Mútuo Socorro para instalação de postos de atendimento. Choveram doações de todos os lados: em dinheiro, mantimentos, roupas, carroças de lenha, casas para instalação de postos de socorro.
“O tempo da peste é o tempo da solidão forçada”, diz o historiador Jean Delumeau. Surge o perigo do contágio que, de inicio, procura-se obstinadamente não ver para escapar de enfrentar a onda ascendente do perigo. Na cidade sitiada pela doença e posta em quarentena, a morte é anônima, as pessoas são separadas umas das outras; confrontada com a situação de isolamento muita gente se afoga em tristeza. Portas e janelas fechadas, o silencio opressivo da rua, a distância imposta diante da presença dos outros – tudo isso aumenta o medo.
Em 1918, Belo Horizonte experimentou o tempo da peste. Seus moradores viveram uma situação limite, até então desconhecida e tão urgente quanto o terror que cada um deles deve ter sentido. Surpreendentemente, essas pessoas decidiram colocar todas as chances ao seu lado. As iniciativas individuais eram boas, mas não bastavam e a cidade se uniu para espantar o medo. De várias maneiras, cada um ao seu modo, quem morava na capital de Minas deu seu jeito e descobriu o afeto da compaixão: acendeu a própria sensibilidade diante do sofrimento alheio para focalizá-la sobre os doentes – ou sobre os riscos da doença que se espalhava pelos bairros. A compaixão eliminou algo da angústia gerada pela solidão e a razão é fácil de entender. Ela abre o coração do indivíduo no instante exato em que ele vê o sofrimento do seu semelhante, por mais distante de si que possa estar o sofredor.
Os moradores de Belo Horizonte souberam manejar a força desse afeto. Afinal, criaram uma série de ações que, no conjunto, alcançou a todos. A gripe espanhola durou três meses. A população da cidade girava em torno de 45 mil habitantes; a doença derrubou por volta de 15 mil pessoas. Os registros apontam um total de 282 mortes, mas faltam dados. Quantos faleceram fora dos hospitais? Quantos óbitos foram notificados? Não sabemos. Toda essa história ficou esquecida no tempo – pouca gente ainda se lembra dela, hoje em dia. Cem anos passados, contudo, Belo Horizonte voltou a enfrentar uma nova epidemia e imagens de pesadelo estão se espalhando por toda Minas Gerais. Ninguém recria o já vivido, e é certo que a História nunca se repete. Mas, por vezes, podemos arriscar e pedir algo emprestado ao passado. Talvez seja hora de tentamos esse empréstimo. Para enfrentamos juntos o tempo sombrio que estamos vivendo.

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Heloisa Murgel Starling é historiadora e cientista política, professora titular livre no Departamento de Historua da Universidade Federal e Minas Gerais (UFMG), onde dirige o centro de pesquisas Projeto República. É autores de livros como  “Os senhores das gerais” (1986), “Lembranças do Brasil” (1999), “Brasil: uma biografia” (2015, com Lilia Schwarcz), “República a democracia: impasses do Brasil contemporâneo” (2017) e “Ser republicano no Brasil colônia” ( 2018).  É organizadora do livro “Três vezes Brasil: Alberto da Costa e Silva, Evaldo Cabral de Mello, José Murilo de Carvalho” (2019, com Lilia Schwarcz).

Texto publicado originalmente na página do Projeto Minas 300 Anos, da Globo. É parte de uma série especial produzida para celebrar o tricentenário de Minas Gerais <minas300.globo.com>

Referências Bibliográficas
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