“Leopoldina sobreviveu ao apagamento absoluto porque ocupava uma posição impossível de ser ignorada”
por Virginia Starling
No palácio de Schönbrunn, em Viena, existe um cômodo repleto de retratos da família imperial Habsburgo. Essa foi uma das maiores dinastias europeias, e o palácio em si é cheio de relíquias de imperadores, imperatrizes, arquiduques… e até de Napoleão, que fez do suntuoso palácio sua residência em uma de suas invasões da capital austríaca. Então essa sala funciona como uma daquelas mesas de fotografias de família na casa da avó. Num dos cantos, há duas pinturas de homens brancos com pinta de imponentes e poderosos: são os imperadores Leopoldo II e Francisco I. Entre eles, há um cavalete, no qual repousa um quadro que retrata uma jovem mulher, também branca, loira e dos olhos azuis. Não tem placa perto desse quadro para indicar quem ela era, ou mesmo quem pintou esse retrato. Mas, no áudio-guia que entregam aos turistas, a informação é de que aquela jovem se chamava Leopoldina. Ela era filha de Francisco I, se casou com o príncipe português dom Pedro, se tornou imperatriz do Brasil e foi mãe de Pedro II.
Essa tela foi pintada pelo austríaco Josef Kreutzinger em 1815. É um dos retratos mais conhecidos de dona Leopoldina, nossa primeira imperatriz: é, por exemplo, a figura que ilustra a página dela na Wikipedia. No quadro, ela nos encara toda séria, com seus vívidos olhos azuis. Ela não se esconde, não se retrai. Parece que nos desafia a contar alguma historinha sobre ela: diria até que desafia quem quer que determinou o roteiro do áudio-guia, como quem pergunta – é só isso que você vai falar sobre mim? Leopoldina pode não ter sido como sua bisavó, a imperatriz Maria Teresa, que botou o império austro-húngaro pra quebrar em plena era iluminista; e nem se casou com uma figura tão controversa e célebre quanto Napoleão, como fez sua irmã preferida, Maria Luísa. O que marca sua história, pelo menos segundo a narrativa do palácio, é ter levado a herança do nome Habsburgo para as Américas. Tudo o que enfrentou e realizou em sua curta vida, de apenas 29 anos, foi empurrado para debaixo de um dos tapetes que enfeitam o palácio quando eles enumeram, simplesmente, os homens com quem se relacionou. Francisco I, Pedro I e Pedro II não deveriam definir Leopoldina. Ela se explica por si própria.
As narrativas que rondam Leopoldina e constroem o repertório de nosso imaginário sobre ela se reconfiguram o tempo todo. Leituras feministas da história (aquela história com H maiúsculo) buscam evidências de acontecimentos e personagens que foram convenientemente esquecidos pelo olhar da historiografia hegemônica. Leopoldina sobreviveu ao apagamento absoluto porque ocupava uma posição impossível de ser ignorada. Graças ao seu título, seu nome e seu rosto sobreviveram. Mas entregar o nome e o rosto de uma mulher ao esquecimento não é a única maneira de promover o seu apagamento da história, ainda que seja um dos modos mais eficazes e cruéis de fazê-lo. Leopoldina não foi empurrada para o anonimato total, mas enquadrada em um perfil reducionista e sufocante: uma caixinha que diminui quem foi e o que fez ao fato de ter sido esposa de um marido que a traía e mãe de um imperador, mulher que morreu deprimida em decorrência de um aborto.
Por muito tempo, a imagem que mais associávamos ao nome de Leopoldina era a de uma mulher feia, apática e deselegante. No primeiro centenário da independência, em 1922, o historiador Affonso Taunay, à frente do Museu Paulista, escreveu que Leopoldina tinha “físico medíocre”, era “malfeita de corpo, desgraciosa” e “não era a esposa que se requeria” a um homem como dom Pedro. Por esses motivos, seu casamento teria sido o desastre que conhecemos. Taunay tenta neutralizar a caracterização brutal da imperatriz e a trata, também, como uma “senhora de excelsas virtudes, extraordinariamente popular por sua elevação moral e seus grandes desgostos domésticos”. Ou seja: frágil, sofrida e pouco atraente, Leopoldina deve ser lembrada como a quase santa, que suportou desaforos domésticos e manteve a superioridade moral em todos os momentos.
Taunay não foi o único que enxergava Leopoldina por esse ângulo. Mais ou menos na mesma época, biógrafos de Domitila de Castro, a famosa amante de dom Pedro I, comparavam as duas mulheres e forçavam Leopoldina para o segundo plano: uma mera estrangeira, ela não tinha nem vaidade, nem sensualidade. Desprovida de atrativos femininos, retraída e pouco preocupada com sua aparência, foi praticamente por sua culpa que dom Pedro procurou muitas outras mulheres. Aliás, não praticamente: o barão de Mareschal, diplomata austríaco no Brasil e contemporâneo da imperatriz, acreditava que a preferência de Leopoldina por trajes masculinos para cavalgar e comparecer a eventos informais, bem como a falta de cuidados com o corpo, eram responsáveis pelos, em suas palavras, “diversos sofrimentos que ela tinha que suportar na corte”. As velhas fofocas históricas das infidelidades de dom Pedro acabam glorificando a virilidade do imperador e jogando, sobre a imperatriz, o manto arquetípico da pobre esposa traída. Presa a isso, ela não consegue se libertar e mostrar que foi mais, muito mais. Claro que as infidelidades doeram e provocaram intensa infelicidade e melancolia; claro que os problemas em seu casamento agravaram outras aflições que a acometiam, como as saudades da família na Áustria e a saúde debilitada. Mas há mais possibilidades para analisar os sofrimentos de Leopoldina para além dessa abordagem que a confina a um papel mínimo.
Leopoldina, a arquiduquesa que deixou Viena pelo Rio de Janeiro, fez uma escolha política pelo Brasil. Ao longo de seus anos por aqui, ela atuou diretamente na formulação de uma alternativa ao poder português e construiu projetos para o país – talvez não sejam, em nossa opinião, os melhores projetos, mas eram resultado de um esforço intelectual e político valoroso por parte dessa mulher curiosa, ativa e inteligente. Leopoldina era o tipo de mulher que, ao descobrir que estava grávida pela primeira vez, pegou sua espingarda portuguesa, montou em seu cavalo e, ignorando as advertências médicas para evitar exercícios físicos cansativos, saiu para mais uma de suas caçadas. Era o tipo de mulher que desafiava as ordens de dom João VI e fazia planos para embarcar em um navio clandestino rumo a Lisboa, quando era quase certo que iriam separá-la de seu marido. Era o tipo de mulher que encomendava livros e mais livros a quem estivesse na Europa, pois precisava continuar estudando botânica, mineralogia, política e economia; que podia passar sete ou oito horas cavalgando pelas matas ao redor do Rio de Janeiro; que negociava alianças políticas para garantir apoio aos planos da independência do Brasil.
Amarrar Leopoldina a essa reputação de coitada esvazia sua agência. E ela tinha essa agência, pois pensava politicamente, cultivava seus interesses pelas ciências naturais, refletia sobre moral, religião e arte, apreciava música, adorava conversar com interlocutores inteligentes.
No entanto, não é apenas em relação à sua aparência e à supervalorização de seu matrimônio problemático que a história de Leopoldina está em disputa. Outras tensões envolvem sua memória e a inserem em um campo político extremamente dividido. Recentemente, bolsonaristas e a extrema direita tentam se apropriar de Leopoldina e fazer dela uma de suas ferramentas para construírem o seu próprio discurso acerca da independência.
Duas postagens em redes sociais, feitas em setembro de 2020, nos ajudam a contar essa história e a pensar sobre ela. A primeira foi feita pela deputada bolsonarista Carla Zambelli, no Facebook. Um texto inserido sobre aquele mesmo retrato de Leopoldina diz que, e eu cito: “Há 198 anos, em 2 de setembro de 1822, a primeira mulher a governar nosso país, Maria Leopoldina da Áustria, então Princesa Regente Interina do Reino do Brasil e Chefe do Conselho de Estado, assinava, como sua primeira medida, o decreto de independência que separava oficialmente o Brasil de Portugal”. O post tem alguns problemas graves. O primeiro é a simplificação do termo “primeira mulher a governar nosso país”: Leopoldina ocupava o cargo máximo do poder executivo como regente, não como governante eleita. É uma alfinetada à primeira mulher eleita presidente do Brasil. Em segundo lugar, não foi encontrada, até hoje, qualquer documentação que faça referência a esse suposto decreto de independência assinado por ela. Sim, Leopoldina estava à frente do Conselho de Estado no dia 2 de setembro de 1822; e sim, ela tinha autorização para nomear ministros, tomar medidas de defesa militar do território e despachar o expediente ordinário dos vários órgãos da administração pública. Mas não para declarar, sozinha, a independência do país. É preciso ter em mente que, mesmo sem ter dado a ordem final da independência, Leopoldina ainda assim tinha em mãos poder suficiente para tomar decisões fundamentais aos rumos do país, estava a par das estratégias e movimentações militares, presidia as reuniões do conselho e enviava despachos urgentes ao marido, então em São Paulo. Uma situação rara para uma mulher nessa época.
E o envolvimento de Leopoldina nos despachos que enviou a dom Pedro em 2 de setembro de 1822 não foi sua primeira medida no cargo de regente: ela estava trabalhando no posto há pelo menos duas semanas. Sua influência política sobre dom Pedro e a favor da independência vinha tomando forma há meses. Na ocasião do 2 de setembro, ela arrematou seu trabalho ao escrever uma carta firme, exortando o príncipe a formalizar a ruptura entre Brasil e Portugal, e a assumir a Coroa como imperador. “O Brasil será em vossas mãos um grande país, o Brasil vos quer para seu monarca. Com o vosso apoio ou sem o vosso apoio ele fará a sua separação”, declarou Leopoldina nessa missiva fundamental. É sua estratégia política em ação.
Chegamos, então, à segunda postagem, um tweet feito em 15 de setembro de 2020 pelo então ministro da educação, Abraham Weintraub. É terrível, mas vou ter que pedir desculpas e reproduzir o que ele ousou postar. É o seguinte: “Para as feministas refletirem: o Império teve seus dois principais atos assinados por mulheres educadas, inteligentes e HONESTAS! Elas nos governaram bem antes da Dilma. A Lei Áurea e Nossa Independência foram assinadas, respectivamente, pela Princesa Isabel e por Dona Leopoldina”. Sobre isso, há muito a ser dito.
Weintraub nos irrita em duas frentes. Uma delas é a da princesa Isabel como salvadora branca da população negra e escravizada, que perde toda a agência, toda a história de resistência às violências da escravidão e do racismo. A outra é que, em 280 caracteres, Weintraub tenta aniquilar todas as reivindicações e demandas da luta feminista por participação política – e usa Leopoldina para fazer isso.
Quando distorce o passado e reescreve a história – e no Twitter, ainda por cima – o ex-ministro avisa às feministas que não há do que reclamar, porque dois momentos considerados essenciais da história brasileira foram protagonizados por mulheres, assinando documentos cruciais e, de quebra, eram educadas, inteligentes e honestas. A gente não quer discutir, aqui, a integridade moral e o intelecto de Leopoldina e sua neta Isabel. Mas a questão é que, com essa mentira de que a independência foi proclamada por Leopoldina, ele invalida o problema da desigualdade de gênero e das barreiras impostas à participação feminina na política e esconde o verdadeiro legado da imperatriz. Não há o que discutir. Se Leopoldina foi, como Zambelli, Weintraub e outros querem definir, nossa primeira mulher governante, isso quer dizer que nosso país foi fundado em um enganoso equilíbrio de poder entre gêneros, que qualquer mulher poderia tê-lo feito, e que nunca houve desigualdade ou sexismo no Brasil. Seríamos uma nação igualitária desde o início, e essas feministas são umas trouxas por acreditarem o contrário e ficarem aí, reclamando, exigindo mudanças que não precisam ser feitas. Jamais teriam havido, portanto, relações de dominação ou exclusão das mulheres.
Como se isso não fosse suficiente, o tweet também demonstra incompreensão quanto à trajetória e à personalidade de Leopoldina. Ela não engolia os desaforos, os mandos e desmandos da Coroa, sem se incomodar com isso. À medida que amadureceu, tomou consciência das injustiças de ser mulher num mundo comandado por homens. Seu destino, por mais que se esforçasse para escrevê-lo por si mesma, era influenciado pelas decisões de um punhado de homens – ministros, príncipes, imperadores, diplomatas. Resignava-se para cumprir seu papel, ciente de sua importância pública. Mas ela não gostava disso. Tanto que, em 1826, ameaçou voltar para a Áustria e largar d. Pedro I no Brasil. Imaginem o escândalo que isso não seria!
Tamanho retrocesso na interpretação histórica dos acontecimentos e dos personagens envolvidos nos mostra como é fundamental discutir Leopoldina – e lutar para reivindicar sua memória. Dentre as várias mulheres da independência, que hoje estão entre nós, Leopoldina é, sem sombra de dúvidas, a mais palatável para os bolsonaristas e a extrema direita reacionária. Branca e europeia, acima de tudo da realeza, é fácil defini-la unicamente como uma defensora do status quo. Seu projeto de independência – o vencedor – manteve intactas as fundações da sociedade escravocrata e preservava a monarquia. Princesa boazinha, loira dos olhos azuis, bochechas coradas pelo sol carioca, Leopoldina não entrava no mar para atear fogo a navios portugueses, como Maria Felipa de Oliveira; não proclamou a república no Ceará, como Bárbara de Alencar; não participou de conspirações contra a Coroa, como Hipólita Jacinta. Não era ex-escravizada, republicana e nem revolucionária. Mas tampouco foi essa senhora recatada e do lar que querem nos vender. E devemos nos atentar, especialmente, para as estratégias dessa venda: os discursos dessa disputa de narrativa apontam para uma revisão do passado extremamente perigosa para o nosso presente e, acima de tudo, nosso futuro. Pois, se o presente não precisa mudar já que se parece com o passado, de que nos adianta fazer planos e projetos para o futuro?
Quando a extrema direita se apropria da atuação política de Leopoldina – sua agência no processo da independência do Brasil – o plano não é conceder o devido destaque a ela, mas empregar uma estratégia de convencimento: Leopoldina, princesa, mãe e esposa, fez a gentileza de conceder sua inteligência e seu tempo para separar o Brasil de Portugal. Ignoram as críticas feitas a ela por seu comportamento masculinizado, a suposta falta de vaidade e elegância; exaltam uma conformidade exagerada às convenções para mostrá-la como uma mulher “de verdade”, que não se lamentava ou reclamava de sua posição. O pensamento político de Leopoldina foi desenvolvido ao longo de um processo de estudos e resultou de uma reavaliação das circunstâncias. Não foi do nada que ela decidiu defender a independência. Firme em sua convicção de que trabalhava para o Estado – e para a monarquia – Leopoldina se dedicou para encontrar uma solução ao impasse brasileiro e fundar uma nova coroa, algo inédito nas Américas. Analisar e debater sua história significa, portanto, se inserir na disputa pela narrativa da própria história do Brasil: incluir o protagonismo de figuras esquecidas por práticas sexistas e racistas, conhecer melhor o passado para formular projetos de futuro, e garantir que o papel de mulher nenhuma seja diminuído para caber nas expectativas e ideologias de um grupo.
Sinto muito, Weintraub e companhia. A princesa que vocês imaginam quietinha era obstinada – para não dizer teimosa –, guardava rancor, tinha ambição, podia sucumbir à ansiedade criava coragem para enfrentar as imposições de homens em sua vida. Era uma mulher complexa, dessas que eles têm medo. E ouso dizer que, se pudéssemos perguntar a ela, Leopoldina nos diria que política é lugar de mulher sim.
Virginia Starling é autora de “Independência do Brasil – As mulheres que estavam lá”
Muito bom. Fico agradecida pelas informações e pela posição clara da autora sobre Leopoldina, mais que necessárias, e pelo alerta sobre o significado do revisionismo historico que a extrema direita brasileira está destilando.