De amor e de poesia e de ter pátria aqui se trata[1]
Gilda Santos
Não faltam na obra de Jorge de Sena poemas que refletem sobre o fazer poético, que explicitam seu ideário, que questionam a recepção de seus versos… Neste viés metalinguístico, será “Aviso de porta de livraria” o que fixa sucintamente seus grandes pilares temáticos: amor, poesia, pátria.
Amor, amor, amor… “Tão descrito como um poeta cerebral e frio, prezo-me de ter composto, bons ou maus, alguns dos poemas de amor mais rudemente sensuais do meu tempo”[2], declara o próprio autor, no que é corroborado por Eduardo Lourenço: “Não lhe foi decerto fácil abrir caminho para esse território desde sempre aberto e não falado que Eros demarca”.[3]
A emergência da palavra erótica, sagrando a pulsão vital que Eros traduz, ocupa significativos espaços na totalidade da obra de Sena. Contudo é na poesia que o amor-indissociável-do-sexo, “o sexo em tudo visto”,[4] com seu elenco de signos sensoriais/sensuais, pulsa em ritmos
e respirações reconhecíveis por quantos experimentem as artes ousadas do camoniano “fogo que arde sem se ver”. E, nesse campo amoroso, Camões é matriz claramente assumida por Sena: como não ler, por exemplo, “segundo o amor tiverdes, / tereis o entendimento de meus versos” a repercutir em “E quem de amor não sabe fuja dele”?[5]
Sem medo da força das palavras e da energia dos corpos, decidido a “penetrar em recessos de amor para que [outros] são castrados” [6] promove Sena, na sinuosidade erógena dos versos, a fertilização de uma linguagem sempre à beira do desgaste e sempre pronta a incessante renovação. Portanto, no fazer poético e no fazer amor – artes que se aprendem e se refinam – dá-se o resgate do “caráter sagrado de todo o sexual”. Sagrado que lhe permite rasurar a palavra bíblica: “Ao princípio não era o Verbo, não era a Acção, não era nada do que se tem dito. Ao princípio […] era o Sexo, quando o Homem (ou seja, a espécie humana) o descobriu enquanto tal” [7]. Variações em torno desse eixo despontam em “Ó doce perspicácia dos sentidos!”, no soneto X de As evidências (“Rígidos seios…”), na magnífica página de cartilha libertina que é “‘O Balouço’, de Fragonard”. E ainda em “A morte de Isolda”, “Amor”, “Arte de amar”, “Conheço o sal…”, entre outros.
Bem sabemos que o objeto do amor pode ter inúmeras feições, e que o amor pode manifestar-se de incalculáveis modos. Assim, quando Sena se declara “apaixonado sempre de arte, e sobretudo de pintura”, [8] e confessa “a alegria que sinto, no Museu Britânico ou no Louvre, ante as coleções onde palpita uma vida milenária” [9] ou “se todas as artes me são necessárias à vida como o ar que respiro, a música ocupou sempre, entre elas, e em relação a mim, um lugar especial”, [10] não será despiciendo aqui, sob o manto do amor, abrigar seus livros Metamorfoses e Arte de música. O primeiro, um marco na literatura portuguesa, promove o casamento da poesia com as artes visuais, dentro de uma arquitetura primorosa, cuja parte central alinha cronologicamente os objetos visuais focalizados, a constituírem um particular museu, com peças datadas do séc. VII a.C. aos anos 1960 do século XX. Encerram o livro os insólitos “Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena”, que celebram a deusa do amor em versos plenos de sugestões, mas sem suporte semântico. Projeto similar é o de Arte de música, desta feita estabelecendo a interlocução entre a poesia e peças musicais predominantemente “eruditas”, numa linha cronológica que vai do quinhentista John Dowland a Schönberg.
“de poesia falemos…” [11]
E, para começar, é imprescindível repetir a declaração seniana de que a sua produção em versos constitui o “diário poético de uma testemunha”29, o que, de pronto, justifica a obsessiva datação de seus poemas e abre sendas para ilações biográficas e contextuais. É imprescindível, igualmente, reproduzir a sua definição da “poética do testemunho”, como resposta pessoal à “poética do fingimento” – desafio incontornável a todos os poetas portugueses que sucederam o heteronímico Fernando Pessoa:
Como um processo testemunhal sempre entendi a poesia, cuja melhor arte consistirá em dar expressão ao que o mundo (o dentro e o fora) nos vai revelando, não apenas de outros mundos simultânea e idealmente possíveis, mas, principal- mente, de outros que a nossa vontade de dignidade humana deseja convocar a que sejam de facto. Testemunhar do que em nós e através de nós, se transforma, e por isso ser capaz de compreender tudo, de reconhecer a função positiva ou negativa (mas função) de tudo, e de sofrer na consciência ou nos afectos tudo, recusando ao mesmo tempo as disciplinas em que outros serão mais eficientes, os convívios em que alguns serão mais pródigos, ou o isolamento de que muitos serão mais ciosos – eis o que foi, e é, para mim, a poesia. [12]
Sublinhe-se o quanto essa profissão de fé, de cariz humanista, reafirma o viés biográfico/contextual já indiciado, e repercute em versos como aqueles de “Os trabalhos e os dias”:[13] “Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro/ e principio a escrever como se escrever fosse respirar/ […] Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem/ […] este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.”
Nessa mesa de alimento e de escrita, não faltam convivas, os interlocutores preferenciais de sua poesia: além do onipresente Camões, Sá de Miranda, Guido Cavalcanti, Tomás Antônio Gonzaga, Pessoa… e incontáveis vultos da literatura mundial, habitantes da imensa erudição do autor. Impressiona, no conjunto da poesia seniana (e não só), uma coesão interna difícil de conceber em tempos anteriores às facilidades da computação eletrônica. Coesão que se revela, por exemplo, na precisa trajetória que o próprio Sena delineia a partir dos títulos de seus livros:
O homem corre em perseguição de si mesmo e do seu outro até a coroa da terra, aonde humildemente encontrará a pedra filosofal que lhe permite reconhecer as evidências. Ao longo disto e depois disto e sempre, nada é possível sem fidelidade a si mesmo, aos outros e ao que aprendeu/desaprendeu ou fez que assim acontecesse aos mais. Se pausa para coligir estas experiências, haverá algum Post-scriptum ao que disse. Após o que a existência lhe são metamorfoses cuja estrutura íntima só uma arte de música regula. Mas, tendo atingido aquelas alturas rarefeitas, andou sempre na verdade e continuará a andar, os passos sem fim (enquanto a vida é vida) de uma peregrinatio ad loca infecta, já que os “lugares santos” são poucos, raros, e, ainda por cima altamente duvidosos quanto à autenticidade. Que fazer? Exorcismos.
E depois vagar como Camões numa ilha perdida, meditar sobre esta praia aonde a humanidade se desnude, e declarar simplesmente que terminamos (e começamos) por ter de declarar: Conheço o sal… sim, o sal do amor que nos salva ou nos perde, o que é o mesmo. O mais que vier não poderá deixar de continuar esta linha, sobretudo fidelidade “à honra de estar vivo”, por muito que às vezes doa. [14]
de ter pátria…
“Eu sou eu mesmo a minha pátria. A Pátria/ de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações/ nasci.” […] Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta/ de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha/ de não pertencer a elas.” [15]
Os elementos da biografia seniana já relatados, acrescidos da leitura de poemas como “Balada do roer dos ossos”, “L’été au Portugal” e “A Portugal” bastam para que se compreenda a complexidade da relação de Sena com a terra em que nasceu.
No entanto, na crônica-necrológio que Carlos Drummond de Andrade dedicou a seu amigo, poucos dias depois do falecimento, há tópicos que merecem ser sublinhados:
Nascido em Lisboa, e formado culturalmente na Europa, tornou-se cidadão brasileiro por força da áspera condição que a ditadura salazarista impunha aos intelectuais não submissos […]
Jorge de Sena acabou sendo um exilado profissional, buscando aqui e ali elementos de vida e de estudo. Foi fiel à culturalidade portuguesa, e seus ensaios […] comprovam a permanência de suas raízes, entrelaçadas com um pensa- mento supranacional […] Jorge foi mesmo um espírito universal, completamente livre de pressões e interesses de grupo […] Seu feitio áspero, polémico, atingindo a agressividade, o terá ajudado no exercício da independência, traço distintivo de sua vida de intelectual rebelde. […] Faltou a Jorge de Sena uma pátria constante e receptiva, que agasalhasse o seu destino de intelectual e erudito a serviço exclusivo do espírito. Teve de procurar outra e mais outra […] Não se deixou vencer, mas pagou alto o direito de amar a liberdade da inteligência, preservando a consciência crítica. […] Não soubemos conservá-lo conosco, nem sequer chegamos a conhecê-lo na plenitude de seu espírito. Foi um professor que passou pelo Brasil, de 1959 a 1965. Mas que sonhou em dar ao Brasil, através da língua portuguesa, uma situação de prestígio na literatura mundial. Se não o conseguiu, não foi por omissão. Merece a nossa lembrança, embora tardia. [16]
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Trecho da apresentação do livro “Não leiam delicados este livro – 100 poemas de Jorge de Sena“, publicado pela Bazar do Tempo, com organização de Gilda Santos.
Gilda Santos é professora de Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e vice-presidente do Real Gabinete Português de Leitura. Dedicou seu doutorado e pós-doutorado a pesquisas sobre Jorge de Sena, tema de antologias que organizou e de outros trabalhos que publicou, entre eles “Jorge de Sena e rotas entrecruzadas (1999) e “Jorge de Sena: Ressonâncias e cinquenta poemas (2006).
Notas:
[1] Desse mesmo poema-limiar “Aviso de porta de livraria”.
[2] Do poema “Camões dirige-se aos seus contemporâneos” (ver p. 94).
[3] Em Transformações e metamorfoses do sexo, Porto, O oiro do dia, 1980 – texto que acompanha desenhos de José Rodrigues.
[4] Posfácio a Metamorfoses, 1963.
[5] Posfácio a Metamorfoses, 1963.
[6] Posfácio a Arte de música, 1969.
[7] Título de poema que integra o livro Fidelidade, datado de 15/8/1952.
[8] Prefácio a Poesia I, 2ª ed., 1977.
[9] Prefácio a Poesia I, 1ª ed., 1960.
[10] Ver, nesta antologia, p. 46 (Os trabalhos e os dias).
[11] Prefácio a Poesia III, 1977.
[12] Poema “Em Creta com o Minotauro” (ver p. 146).
[13] Crônica “Jorge de Sena, também brasileiro”, Jornal do Brasil, 8/6/1978.
[14] Só Vasco Graça Moura (1942-2014), autor que ainda está à espera de justa fortuna crítica, teria produção análoga à de Sena.
[15] “A poesia portuguesa contemporânea”, in A noite do mundo, Lisboa: INCM, 1988.
[16] Crônica “Jorge de Sena, também brasileiro”, Jornal do Brasil, 8/6/1978.