Como o vegetarianismo se tornou uma missão para Gandhi
Florence Burgat
I
Mohandas Gandhi era vegetariano? Para muitos, esta dieta provavelmente está ligada à figura de Mahatma apenas de uma maneira vaga: como hindu, ele deveria ser vegetariano. Porém, se o vegetarianismo de Gandhi é uma questão digna de aprofundamento, é precisamente porque, de uma prática herdada, “um habitus”, uma dieta baseada em tabus alimentares, ela se tornou uma “missão”. E foi na Inglaterra, onde ele chegou em 1888, quando tinha apenas vinte anos de idade, que isso aconteceu, graças à leitura do livro de Henry Stephens Salt, “Em defesa do vegetarianismo” (1886). Esse livro encontrava-se à venda em um restaurante vegetariano com o qual Gandhi se deparou por acaso, na rua Farringdon, em Londres.
Desde sua chegada na Inglaterra, Gandhi havia entendido que seu vegetarianismo seria, em muitos aspectos, um obstáculo: complicava sua vida social, marginalizava-o, mas especialmente o impedia de saciar sua fome. Recorrendo ao pão durante refeições em que apenas vegetais cozidos e sem sabor se encaixavam em sua dieta, ele estava se alimentando mal e muito pouco. E sonhava com doces indianos… E também sonhava em se livrar dessa restrição! Foi por isso que as considerações alimentares ocuparam uma parte importante de suas primeiras semanas na Inglaterra. A rigidez de sua posição era também incompreensível para seus anfitriões.
A leitura de Henry Stephens Salt deu sentido a uma dieta cuja base moral Gandhi passou ent.o a compreender plenamente, assim como seus múltiplos benefícios físicos e espirituais, como uma série de motivos que nele coexistem para formar uma unidade. Henry S. Salt, além de ser autor de obras sobre o poeta e reformista Percy B. Shelley e de uma biografia de Henry David Thoreau, também escreveu o ensaio “Animal Rights Considered in Relation to the Social Progress” [Direitos animais considerados em relação ao progresso social] (1894). Foi um homem envolvido em reformas sociais, pacifistas, vegetarianas e antivivisseccionistas. O pensamento de Gandhi deve muito a outros três autores: Henry David Thoreau, com quem ele concordava sobre a desobediência civil; John Ruskin, cujo livro “Unto this Last” [Até este último] (1860), ecoou suas próprias convicções; e especialmente Liev Tolstói, de quem ele leu fervorosamente “O reino de Deus está em vós” (1893), e com quem manteve uma correspondência.
A mudança que ocorreu em 1888 foi precisamente descrita por Gandhi: “Eu li do início ao fim o livro de Salt e fiquei profundamente impressionado. Posso dizer que foi a partir daquele momento que me tornei vegetariano por opção, abençoando o dia em que fiz meu juramento para minha mãe. A fim de mantê-lo e em nome da verdade, eu desde então me abstive de tocar em carne. No entanto, no passado eu havia desejado que todos os indianos comessem carne. Também havia pensado em fazê-lo um dia, aberta e livremente, bem como para reunir outros para essa causa. Mas a partir de então eu escolhi o vegetarianismo; espalhar isso tornou-se minha missão.”[1]
II
Voltemos um pouco no tempo para percorrer a controversa trajetória vegetariana de Mohandas Gandhi. Nos capítulos “Tragédia” e “Tragédia (continuação)” de sua autobiografia, Gandhi, antes mesmo dos quinze anos (e já casado), relata o seguinte episódio: apesar de ser alertado pela sua mãe, seu irmão mais velho e sua esposa contra essa má influência, Gandhi dá ouvidos
aos argumentos de um amigo indiano em defesa da alimentação carnista. Segundo esse último, alguns indianos vegetarianos comiam carne em segredo, pois haviam compreendido que ela era a chave da saúde e da força. “Aqueles que comem carne não têm furúnculos nem tumores, e mesmo quando têm, se curam rapidamente.”[2] Tais eram algumas das curiosas virtudes que esse menino mau atribuía à carne. Gandhi, que se descrevia como um rapaz de “aspecto frágil” e temperamento “covarde”, se sentia extremamente ridículo diante desse atleta que era excelente em corrida e salto em altura, “porque elecomia carne, é claro”. A ideia de um Ocidente forte por se carnívoro já trilhava seu caminho. Então não era por serem vegetarianos que os indianos haviam se deixado dominar?
O menino levou Gandhi até um lugar ermo para fazê-lo comer carne de cabra, coisa que ele nunca tinha visto. Embora Mohandas não tenha conseguido engolir o pedaço oferecido, sua noite foi assombrada pela sensação de uma cabra viva gemendo dentro de seu corpo. Uma primeira luta acontecia dentro dele, entre o dever de ser forte – e portanto, carnívoro – e a lealdade à tradição familiar de um vegetarianismo estrito. Mas outra coisa surgia dessa carne: os animais dos quais era constituída não desejavam morrer. Esse fato, que é o fundamento do vegetarianismo dito “ético” não entrava na linha de pensamento (ao menos não de forma explícita) do vegetarianismo cego que fora incutido em Mohandas: um vegetarianismo que vinha de um tabu alimentar sem qualquer relação com uma consideração para com os animais, por ser oriunda, antes de tudo, de uma repulsa herdada e transmitida, e assim sucessivamente.
Determinado demais para desistir após um único fracasso, o prosélito amigo resolveu ir adiante e venceu a repulsa de Gandhi convidando-o para grandes restaurantes que serviam preparos sofisticados à base de carne. Gandhi confessa a degustação de uma dúzia desses pratos ao longo de um ano, e por consequência, o mesmo número de mentiras para sua mãe. Pela retidão que sentia dever a seus pais, ele se regenera.
Chega então o momento de conseguir a autorização de sua mãe para sua ida à Inglaterra, onde ele deseja estudar para se tornar advogado. A mãe temia que esse país fosse um lugar de perdição para os rapazes, que não tardariam a se embriagar de carne e de vinho… De forma solene, Mohandas faz um “juramento de não tocar em carne, mulheres, nem vinho.”[3] Essa tríade de proibições diz muito sobre a natureza de seu vegetarianismo.
III
Voltemos ao momento da descoberta de Gandhi de “Em defesa do Vegetarianismo”. O livro de Salt inaugurava a leitura de “todos os livros disponíveis sobre o vegetarianismo”.[4] Desses volumes destacava-se um elogio às dietas (diversos médicos se pronunciam em favor do regime e o prescrevem) assim como um elogio moral. As experiências dietéticas se tornariam centrais na vida de Gandhi. Quanto ao elogio moral, ele consistia essencialmente na ideia de que, longe de implicar uma dominação de um sobre outro, “a supremacia do homem sobre as espécies animais”[5] deve ilustrar-se pela proteção dos animais. Além disso, a comida deve ter um valor simplesmente vital, excluindo assim não somente a carne animal como os ovos e o leite.
Há, portanto, mais de um tipo de vegetarianismo que podemos encontrar na literatura. Vegetarianos não comem nenhum tipo de carne, incluindo carne de boi, aves e peixes. Podem incluir ovos e leite, sendo, neste caso, chamados de ovolactovegetarianos. Há também os lactovegetarianos, que não comem nenhum tipo de carne, mas consomem leite e derivados. Aqueles que não consomem nenhum produto de origem animal são os vegetarianos estritos ou veganos.
Tais eram as considerações que ocupavam a Sociedade Vegetariana de Londres, e Gandhi não tardou a se tornar membro de seu comitê executivo, antes de criar ele próprio um clube vegetariano em Bayswater, bairro do centro de Londres. Embora ficara feliz em ter descoberto alguns restaurantes vegetarianos em Londres, ele continuava enfrentando constrangimentos, pois grande parte dos pratos levavam ovos, que ele não comia. Quanto ao leite e seus derivados, ele fez o juramento de abster-se. “Tenho firmes convicções de que o homem nunca precisou de leite, a não ser o bebê que mama no seio de sua mãe.”[6] Mas a “tragédia de sua vida”, depois de abdicar de leite e derivados durante anos, foi ter de beber leite de cabra para recobrar sua sa.de. Ocorreu em 1903, na Índia. Por que leite de cabra? Fora o status particular das vacas e búfalas que motivara seu juramento, mas ainda assim ele consistia na restrição de todo tipo de leite. Foi por isso que quando ele bebeu leite de cabra, temia ter quebrado o espírito do juramento.
IV
O que Gandhi chama de “aspecto religioso” do vegetarianismo, – sobre o qual, aliás, seria um erro de interpretação omitir que para Gandhi “a verdade é Deus”, e não o contrário (sua filosofia, cujas fontes são extraordinariamente ecléticas, é antidogmática)[7]– não interveio realmente em sua reflexão ou em sua prática até sua estadia na África do Sul, isto é, a partir de 1893. “O aspecto missionário de sua paixão pelo vegetarianismo” [8]crescera. Um entusiasmo que custou caro. Uma conhecida do círculo teosófico, criado em torno de Annie Besant[9], abriu um restaurante vegetariano em Joanesburgo que foi mal administrado. Gandhi havia emprestado o dinheiro que tinha guardado para financiar o empreendimento, uma soma importante que ele nunca recuperaria.
Os jejuns de Gandhi permanecem famosos. Suas experiências dietéticas (monorregimes de frutas ou cereais, refeição única cotidiana, jejum) marcaram sua existência, fortalecendo seu gosto pelo autocontrole e pela abstinência. Essas privações, que inicialmente eram devidas a preocupações com a higiene, passaram a ser ditadas por uma disciplina moral. O autocontrole proporcionava a Gandhi imensas satisfações.
Mas foi o dever de não violência com os animais que constituiu a essência de seu engajamento pelo vegetarianismo. “Para mim, a vida de um carneiro não é menos preciosa que a de um ser humano. Eu não gostaria de tirar a vida de um carneiro para satisfazer algum corpo humano. Acredito que quanto menos uma criatura pode se defender mais ela tem direito à proteção do homem contra a crueldade do homem.”[10] No mais, Gandhi trabalhou durante toda a sua vida na elaboração de um sistema agrícola em que o abate dos animais seria proibido, de forma tão sustentável que ele se tornaria economicamente absurdo. “Salvar os bovinos da faca do açougueiro”, segundo uma expressão recorrente em seus escritos, era o objetivo dessa empreitada.
Por fim, que diferença Gandhi fazia entre o consumo dos animais e o das plantas? “Se a sensibilidade da dor varia de uma criatura para outra, a dor de uma vaca diante dos horrores da morte não pode ser sentida por nenhuma planta.” [11]
Os escritos reunidos neste livro têm naturezas diversas: artigos publicados em revistas e jornais, cartas, extratos de livros e palestras. À exceção do “Discurso pronunciado no encontro da Sociedade Vegetariana de Londres”, que constituí uma boa introdução às reflexões de Gandhi sobre o Vegetarianismo, e que por isso abre a edição, escolhemos apresentar os textos na ordem cronológica em que foram escritos. Assim dispostos eles permitem perceber como Gandhi, ao longo do tempo e com uma constante vivacidade de espírito, reforça, corrige, questiona e aprimora as suas ideias.
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Texto de apresentação do livro Sobre o vegetarianismo, de M. Gandhi, lançamento em julho de 2020, já em pré-venda.
Florence Burgat é filósofa francesa nascida em 1962. Filha de um agricultor, é doutora em filosofia pela Universidade Jean-Moullin – Lyon III e foi diretora de pesquisa da instituição francesa INRA (Instituto Nacional da Pesquisa Agron6oma). É autora de três obras fundamentais sobre a questão animal: “Animal mon prochain” [Animal meu próximo] (1997), “Liberté et inquiétude de la vie animale” [Liberdade e inquietude da vida animal] (2006), no qual restitui a experiência e a subjetividade dos animais, e “Une autre existence” [Uma outra existência] (2012), além do recente L’Humanité carnivore [A humanidade carnívora], publicado em 2017.
Conheça o livro Sobre o vegetarianismo.
NOTAS
[1] “Autobiographie ou mes expériences de vérité”[Autobiografia: Minha vida e minhas experiências com a verdade], traduzido do inglês por Georges Belmont (1950), edi..o revista por Olivier Lacombe, Paris: PUF, 1994, p. 65. (Todas as citações extraídas do livro foram modificadas por Vivien Garcia a partir do texto em inglês: M. Gandhi, “The Story of My Experiments with Truth” Vol. I e II, traduzido do gujarati por Mahadev Desai, Ahmedabad: Navajivan Press, 1927 e 1929).
[2] Ibid., p. 30.
[3] Ibid., p. 54. Gandhi diz adiante que “Os ovos estavam incluídos na sua [mãe de Gandhi] definição de carne.”
[4] Ibid., p. 66.
[5] Ibid., p. 75.
[6] Ibid., p. 344.
[7] “Me recuso a ser vinculado a qualquer interpretação [da religião], por mais sábia que seja, se ela for contra a razão e a moral.”, escreve Gandhi em um artigo sobre o hinduísmo, publicado em Young India, no dia 6 de outubro de 1921.
[8] M. Gandhi, op. cit., p. 77.
[9] Annie Besant (1847–1933) foi uma escritora inglesa, socialista, teosofista, ativista pelos direitos da mulheres e fervorosa defensora do autogoverno da .ndia.
[10] M. Gandhi, op. cit., p. 297.
[11] Carta para Rameshandra, 13 de dezembro de 1927.