O Vestido de Alina
Ala kachuu (Bride kidnapping), Quirguistão, 2019.
O vestido de noiva que ilustra a capa da edição brasileira de As estruturas elementares da violência, de Rita Segato, pertence à jovem Alina, sequestrada aos 21 anos no Quirguistão e obrigada a se casar com o seu sequestrador. “A primeira vez que o vi foi no dia do casamento. Seus amigos me levaram até ele. Eu amava outro homem e sonhava em ser sua mulher. Mas acabei sendo forçada a casar com o homem que me sequestrou”, relata Alina, em seu depoimento à fotógrafa Laila Abril, que produziu a imagem em 2019 como parte de seu trabalho “On rape” (Sobre estupro).
Uma das artistas mais engajadas e admiradas de sua geração, a espanhola Laila Abril, nascida em 1986, tem se dedicado a dar visualidade a temas que atravessam a vida de mulheres. Nos últimos dez anos, a fotógrafa elaborou o projeto História da Misoginia, uma trilogia em que investiga o aparato cultural e social de opressão e violência contra as mulheres a partir de pesquisas históricas, em arquivos de diferentes lugares do mundo, reunião de objetos, depoimentos pessoais e fotografias, que inventaria em livros e exposições.
A primeira etapa da trilogia, ou o capítulo gênesis, como ela chama, foi apresentado em 2016: “On mass hysteria” (Sobre histeria em massa). O tema chamou a sua atenção quando leu um artigo publicado em 2003 que descrevia o fenômeno em uma escola no Nepal em que dezenas de meninas desmaiavam em grupo, sempre na presença dos professores, todos homens. Laia levantou diversos casos similares desde a Idade Média e suas interpretações sempre cercadas de forte caráter misógino e depreciativo. A partir de seu trabalho, munido de profunda pesquisa histórica e de campo, ela oferece uma leitura da histeria como uma linguagem de protesto e resiliência, em resposta a contextos opressores e de forte pressão psicológica para meninas e mulheres. O corpo expressando um mal da alma, como ela observa.
Em seguida, Laia empreendeu diversas viagens para elaborar o capítulo “On abortion” (Sobre aborto), reunindo um conjunto de imagens para formar um impressionante repertório visual em torno do tema. Nele, estão presentes, por exemplo, instrumentos médicos, fotos de clínicas clandestinas e retratos de mulheres mortas ao buscar serviços informais para a interrupção de gravidez indesejada. Não nos surpreende encontrar no livro histórias de mulheres brasileiras que perderam a vida nesse contexto. Está em foco nessa abordagem a violência do controle sobre os corpos das mulheres ao longo do tempo.
O terceiro e último capítulo da História da Misoginia tem em foco a cultura do estupro. Interessa a Laia Abril identificar estereótipos e mitos baseados no gênero, bem como preconceitos e equívocos que perpetuam a cultura do estupro em todo o mundo. Mais uma vez, a fotógrafa se alia à história para rastrear a origem de comportamentos, leis e crenças, como a violação sexual usada como arma e guerra, o culto da virgindade e a legislação que obrigada vítimas a casar com seus violadores. É nesse contexto que aparece o vestido de noiva de Alina. “Eu era uma jovem universitária que tinha um sonho de ser designer de moda”, ela diz.
Ao lado do vestido de Alina estão o hábito de uma freira argentina, a roupa de esporte de uma mulher da África do Sul, o uniforme militar de uma estadunidense. Cada peça tem por trás uma história de violação sexual. Laia inventaria e documenta em imagens índices de diferentes naturezas que formam um amplo repertório visual para falar de maneira ao mesmo sutil e eloquente de temas que atravessam a vida de todas as mulheres.
Laia Abril e Rita Segato se dedicam, cada uma a sua maneira, ao mesmo objetivo: expor, denunciar, questionar as violências e opressões as quais as mulheres são submetidas em todo o mundo. Buscam, assim, novas imagens para todas elas.
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