A beleza do marido, de Anne Carson – Nota das tradutoras

Nota das tradutoras

Emanuela Siqueira e Julia Raiz

 

Dançar um tango até o fim.

Dançar um casamento até o fim.

Dançar uma tradução até o fim.

Como podem duas tradutoras dançarem juntas? É possível cocriar coreografias? Que espaço toma o improviso na dança­-tradução? Como dançar&traduzir em dupla balança os limites entre conduzir e ser conduzida?

Segundo a lógica do tango argentino, duas mulheres não po­dem dançar juntas. Mas Anne Carson não se importa e nos dá o aval (o cabeceo) para essa dança. Ela quer sustentar a beleza e fazer a esposa, antes conduzida pela milonga-casamento, assumir um papel ativo no tango.

Quem conduz a beleza? Quem conduz aqui a dança da entrega?

Essa tradução é um caso de amor com o traduzir. E toda tra­dução termina, o que continua é a tentativa de manter a beleza.

Com as possibilidades de dar um passo e esperar que a compa­nheira faça o mesmo, nosso procedimento espelha a dança: cada uma traduziu um tango, criando e ensaiando a sua própria coreo­grafia. E depois retraduzimos tudo juntas em voz alta, reapresen­tando o livro uma para outra, acertando o passo em um ensaio geral. Dançar é sempre um risco, exige confiança. E o tango é uma encenação sobre condução.

Uma das lições mais curiosas que essa escolha de procedi­mento nos trouxe foi: é chato dançar sozinha, sobretudo um tango. Uma parceira precisa da outra. Como o livro precisa da perspectiva da esposa e do marido, das memórias boas embola­das com as dolorosas. A tradução esteve bastante atenta a como esse atravessamento vaza para os pronomes: que pessoa é ela que pessoa é ele que pessoas são nós. Algumas vezes é impossível saber o que é pergunta, o que é resposta. Isso também faz parte da dança.

E isso nos faz pensar que A beleza do marido é uma elaboração em forma de ensaio ficcional do que Anne Carson estava teori­zando em Eros, o doce-amargo. Os passos deslizantes entre Eros e a Escrita. As cartas de amor, o alfabeto, a aula de latim, as bordas, os limites, o gelo derretendo, rei Midas com seu toque triste de ouro, tentar dar-se a ver o tempo. Tudo reaparece aqui, como se os quinze anos que separam os dois livros fossem necessários para Carson aprender a dançar o tango e elaborar a sua própria triangulação erótica, em movimento.

Mas o que são quinze anos diante de uma obsessão? Diante de uma equação antiga:

Se BELEZA = VERDADE

BELEZA do marido = VERDADE do marido

Aqui, em vez de Safo temos Keats, aquele jovem poeta que morreu de tuberculose aos 25 anos e escreveu cartas um tanto piegas para Fanny Brawne, a vizinha que despertou nele uma pai­xão missivista. Foi Keats que disse: “Beleza é verdade, verdadei­ra beleza.” Talvez ele não tenha dito exatamente dessa maneira (quem disse foi uma urna grega) mas assim, também, é o jeito de Anne Carson começar cada tango com fragmentos, bem moidi­nhos e picotados, dos versos do poeta. É esperada a verdade das tradutoras? Do marido, com suas cartas e promessas exageradas? Da esposa, figura de muitas voltas, que conta as mentiras como se fossem fofocas?

A tradução seguiu a confusão entre o que é verdade ou men­tira neste mundo de adultério, codependência, casamento, amor, tortura. Não é à toa que aparece no livro um filme brasileiro com torturadores (eles se dizem generais). O Brasil também aparece como cenário de uma carta encenada sobre relações que entram em combustão.

Contudo, mais do que na diluição entre verdade e mentira, sentimos que a força do livro também está no cafona. O cafona que é o lugar entre o clichê e a catástrofe. Um lugar do meio onde falar da beleza é possível. A tradução precisou criar o lugar da “cafonice” assim como eram as letras de pagode fazendo o instru­mental de Eros soprando.

Há como falar de amor sem ser cafona? Como as tradutoras dançam a dramaticidade do exagero das letras de tango que vão do amor apaixonado, da saudade até a violência física, como se estivessem brincando e não sendo conduzidas?

A beleza do marido faz jus aos exageros. O marido que é o mais cafona dos escritores de cartas. Ladrão de cadernos espiralados. O muso às avessas (na esteira de Tamara Kamenszain em Garotas em tempos suspensos, traduzido pela Paloma Vidal), bonito e ca­fona, bonito e embosqueiro, bonito e poeta meia-boca. Bonito e amado apenas por sua beleza. É excessivo mesmo, é dramático, é tango for God’s sake!

O marido rouba o poema “Sobre defloração” e publica com o nome dele. Esse é apenas um dos passos rasteiros, com o pé rente ao chão deslizante, que encontramos nesse livro. Além das falas curtas, das coisas não ditas, das palavras ouvidas do outro lado do telefone, os ruídos, os murmúrios. Traduzir com a orelha colada na parede deste mundo de desconfianças.

Foi um desafio trabalhar um livro que é a junção da liberdade criativa do ensaio ficcional (Carson diz que usa “ensaio ficcional” porque ninguém sabe bem o que é, ou seja, nele vale tudo) e uma coreografia altamente estruturada. Improviso e rigidez: tudo que pode definir um tango em tradução.

Traduzir um livro sobre amar exige saber seduzir. Como tra­dutoras, precisamos conquistar quem está lendo para que as ligações, mensagens, cartas de amor o/a conquistem também. Somente assim o relacionamento com o texto continuará a ser desejado. É preciso saber dosar o tom casual e os tons inflamados das conversas com as palavras que parecem ter sido tiradas de dicionários antigos.

Traduzir este livro sobre amar é trabalhar com o tesão soprado por Eros que gera quase imediatamente vergonha por esse desejo doloroso, o desespero da armadilha. Anne Carson é hábil na con­taminação. Sentimos o que a narradora está sentindo e nos apro­ximamos da posição insustentável que ela tenta sustentar, apaixo­nada pela beleza de um marido. Para isso, não é preciso nunca ter amado um marido, mas é preciso já ter amado uma beleza.

 EMANUELA SIQUEIRA E JULIA RAIZ são pesquisadoras e tradutoras.

 

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