Versos de entreter-se, poemas de Ferreira Gullar

Dois poemas de Ferreira Gullar

VERSOS DE ENTRETER-SE
À vida falta uma parte
–  seria o lado de fora –
para que se visse passar
ao mesmo tempo que passa
e no final fosse apenas
um tempo de que se acorda
não um sono sem resposta.
À vida falta uma porta.

TEU CORPO
O teu corpo muda
Independente de ti
não te pergunta
se deve engordar.
É um ser estranho
que tem o teu rosto
ri em teu riso
e goza com teu sexo.
Lhe dás de comer
e ele fica quieto.
Penteias-lhe os cabelos
como se fossem teus.
Num relance, achas
que apenas estás
nesse corpo.
Mas como, se nele
nasceste e sem ele
não és?
Ao que tudo indica
tu és esse corpo
-que a cada dia
mais difere de ti.
E até já tens medo
De olhar no espelho:
Lento como nuvem
o rosto que eras
vai virando outro.
E a erupção no queixo?
Vai sumir? Alastrar-se
feito impingem, câncer?
Poderás detê-la
com Dermobenzol?
Ou terás que chamar
o corpo de bombeiros?
Tocas o joelho:
Tu és esse osso.
Olhas a mão.
A forma sentada
de bruços na mesa
és tu.
Mas quem morre?
Quem diz ao teu corpo – morre –
quem diz a ele – envelhece –
se não o desejas,
se queres continuar vivo e jovem
por infinitas manhãs?
_____
Ferreira Gullar  (José Ribamar Ferreira, 1930 – 2016), poeta nascido em São Luís do Maranhão e radicado no Rio de Janeiro a partir de 1950. Publicou diversos livros de poemas, como “Dentro da noite veloz” (1975), “Poema sujo” (1976), “Na vertigem do dia” (1980), “Barulhos” (1987), ensaios sobre arte e cultura, entre eles “Vanguarda e subdesenvolvimento” (1969), “Relâmpagos” (2003) e “Experiência neoconcreta: momento-limite da arte” (2007). Também publicou livros de colagens e pequenos textos, como “Zoologia bizarra” (2010),”Bichos do livro” (2013) e “Bananas podres” (2011) , com o qual ganhou o prêmio Jabuti de ilustração.
Poemas do livro “Barulhos”.