A velhice e a experiência do depois
Eduardo Jardim
O prédio onde moro foi construído nos anos 1960 ou 1970, e alguns de seus primeiros moradores ainda vivem aqui. Desço até a portaria, saio algumas vezes para ir ao mercado, ligo o carro na garagem, não cruzo com ninguém. Os que iam ao jornaleiro na esquina, à padaria logo adiante, ou à academia no outro quarteirão, estão escondidos em casa, fugindo do vírus que os ameaça.
Li em alguns textos, nos últimos dias, que a Covid, além de ser responsável por tantas mortes e de promover a crise do sistema de saúde, põe em evidência os males que já existiam na nossa sociedade. Há, sem dúvida, o da desigualdade social. Outro é o da situação dos velhos.
O escritor colombiano William Ospina chamou atenção para o paradoxo de que hoje em dia ninguém quer envelhecer, mas que a velhice tende a durar cada vez mais, e isso não significa que necessariamente a vida dos velhos seja boa. Ao contrário, a velhice se torna cada vez mais uma experiência marginal, ela é a experiência do “depois”. Em uma sociedade centrada na produtividade, o velho é encarado como um contrapeso, e até mesmo políticas de Estado e protocolos médicos, nesses tempos de pandemia, consideram ter que optar por não lhes dar atenção.
A solidão e a angústia que atravessam a vida dos velhos ficaram agora em evidência. A solidão não significa estar sozinho. Hoje, com a pandemia, pode ter havido uma coincidência. Penso em um bairro como Copacabana, com uma das maiores populações de idosos morando sozinhos, que normalmente saíam para as ruas, iam até a praia, enchiam os restaurantes a quilo, faziam filas nas farmácias, e que agora se encontram sentados diante da TV. Mas também é possível estar cercado de gente e experimentar a solidão. A solidão tem mais a ver com um sentimento de não pertencimento ao mundo comum. Já a angústia está associada à premonição da morte que se aproxima.
Releio um texto de Max Weber que se interroga sobre o valor da ciência e do progresso em sua época e comenta a visão que Tolstói tinha da morte. Para Tolstói, é impossível atribuir um sentido à morte na modernidade. E, por esse motivo, tampouco à própria vida. O texto opõe dois momentos históricos. O do mundo pré-moderno que ignorava o progresso indefinido e concebia cada vida como um ciclo que se encerra com a morte e a apressada modernidade. Em contraste com a noção de tempo cíclico adotado tradicionalmente, a temporalidade tem sido vista nas sociedades modernas como uma linha que aponta para o infinito. Assim, cada vida que termina permanece necessariamente inacabada. Max Weber comenta que Abraão ou os camponeses de outrora morriam velhos e plenos de vida. Ao final de seus dias, a vida os tinha ofertado um pleno sentido. Já o homem moderno pode sentir-se cansado da vida, mas não pleno dela.
Tolstói encarou esta perplexidade por um viés religioso, inaccessível para muitos de nós. O genial conto “A morte de Ivan Ilitch” narra a vida medíocre do personagem, um funcionário da justiça, mas termina em tom elevado, com a conversão, no momento final de uma terrível agonia. A certa altura, o personagem procura o seu habitual medo da morte e não o encontra. Não tinha mais medo, porque também a morte desaparecera de sua frente. Em lugar dela, havia luz, algo divino.
O próprio Max Weber seguiu caminho mais árido. Ele entendeu que o destino de seu tempo (e do nosso também) se caracterizava pelo “desencantamento do mundo”, tendo sido banidos os valores supremos e sublimes. Inserido em um mundo sem transcendência, humano apenas, o homem moderno terá que escolher por sua conta e risco entre perspectivas em confronto.
A pandemia, em alguma hora, vai terminar. Saberemos então o que se passou nos asilos apinhados? Li sobre o desastre vivido na Itália. E entre nós? Quantos morrerão? Será que alguns de seus habitantes acolheram o vírus como uma libertação? Outros, em angústia, se deram conta de que o tempo é um bem precioso? Os velhos voltarão a ocupar as calçadas de Copacabana, agora desertas, e procurarão esquecer tudo mergulhando em seus afazeres? Compreenderemos afinal o que disse o ator Flavio Migliaccio sobre a velhice em sua carta de despedida?
Para além da nobreza de Tolstói e da coragem de Max Weber, encontro um poema da americana Emily Dickinson que não trata da velhice, nem da angústia, nem da morte, mas que convida a uma reflexão:
Não viverei em vão, se puder
Salvar de partir-se um coração,
Se eu puder aliviar uma vida
Sofrida, ou abrandar uma dor,
Ou ajudar exangue passarinho
A subir de novo ao ninho –
Não viverei em vão.
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Eduardo Jardim é filósofo e escritor. Foi professor de filosofia na PUC-Rio entre as décadas de 1970 e 2010. Escreveu livros sobre modernismo no Brasil. Em 2015, lançou a biografia Eu sou trezentos – Mário de Andrade, vida e obra, vencedor do Prêmio Jabuti de Melhor Livro do Ano de Não Ficção. Pesquisou o pensamento de Hannah Arendt e Octavio Paz, colaborando na divulgação de suas obras e publicou sobre eles: A duas vozes – Hannah Arendt e Octavio Paz (2007) e Hannah Arendt – pensadora da crise e de um novo início (2011). Traduziu a coletânea de ensaios A busca do presente, do escritor mexicano Octavio Paz (2017), parte da coleção Ensaios contemporâneos, que dirige na editora Bazar do Tempo. Autor dos recentes livros Tudo em volta está deserto e A doença e o tempo – aids, uma história de todos nós.
Texto escrito para Pensar o tempo, em maio de 2020.