"É preciso pensar além do medo”, entrevista com Beatriz Sarlo

“É preciso pensar além do medo”
Entrevista com Beatriz Sarlo
Aos doze anos, Beatriz Sarlo respondeu uma pergunta inevitável para qualquer criança: O que você vai ser quando crescer? Sua resposta foi surpreendente: “Quero ser uma intelectual”. Hoje segue reivindicando o termo: “Pode-se dizer qualquer palavra em um sentido depreciativo, mas isso é, antes, parte da ignorância de quem a pronuncia”, diz ela. E acrescenta, sem se esquivar da controvérsia: “O desprezo contra o intelectual faz parte de uma reação populista. As mesmas pessoas que podem adorar o papa, que é um intelectual – de direita, mas é um intelectual – terão desprezo pelo intelectual? Em seu último ensaio, “La intimidad pública” [A intimidade pública] (Seix Barral, 2018), se dedicou a pensar as relações em torno das redes sociais, da exposição, da privacidade e da intimidade.
Sarlo falou de tudo isso com a revista Ñ [suplemento do jornal Clarín], em plena quarentena. Aprofundou-se nos aspectos da vida social que podem mudar a partir de agora, e aqueles que estas circunstâncias excepcionais acentuam.
– Como este confinamento forçado afetou nosso consumo cultural?
– É inevitável que aqueles que aguentem continuar vendo filmes, o façam. Digo “que aguentem” porque é difícil ver cinco ou seis filmes por dia. Mas, nessa situação, será inevitável. Os que estão habituados a ler, leem. E os que estão habituados a escutar música, escutam música. Eu estou mais inclinada a escutar música e ler do que a ver filmes. Não tenho Netflix. O que estas situações de crise fazem é acentuar as características pré-existentes. Não pensemos que isto, de uma hora para outra, mude nossos gostos ou hábitos. Não é que ocorram mudanças fundamentais e as pessoas saiam a copiar passos de balé nas varandas. Não é assim.
– Que papel cumprem a tecnologia e as redes sociais nessa acentuação de hábitos?
– Vamos acentuar todos aqueles modos de comunicação que estamos habituados a usar. Se as pessoas usam muito as plataformas digitais, as usarão mais. Se as pessoas falam muito por Skype com os amigos, o usarão mais. Estamos em um estágio da pandemia em que ainda não cruzamos limites desesperados, mas o cotidiano foi acentuado. E o que faço? Vejo um filme de Albert Serra [cineasta espanhol independente], por exemplo, que se chama “A morte de Luís XIV” (2016). Agora, não posso aconselhar a uma pessoa que não conheça o cinema de Serra a ver esse filme. Essa pessoa talvez tenha outra forma de encarar o tema pelo qual estamos todos obcecados.
– Há algo sobre esses comportamentos que você ache especialmente interessante?
Essas situações de crise, a não ser que se prolonguem muitíssimo, não mudam nossa cabeça da noite para o dia. Acentuam, às vezes, nossas melhores características e, às vezes, as piores. Mas não nos mudam. Não há mudanças da noite para o dia em termos subjetivos, mas acentuações. Reações que antes poderiam ser mais fracas e hoje podem ser mais espetaculares no sentido tanto da intervenção a favor de vizinhos, entre compatriotas, ou o egoísmo: estantes do supermercado que se esvaziam em um minuto. Ainda não avançamos tanto no tempo. Estamos há apenas um mês nesta situação, e um pouco menos de confinamento. [entrevista feita no começo de abril].
– Qual sua opinião sobre o papel da mídia, às vezes obrigada, em situações como esta, a emitir análises precipitadas?
– A mídia poderia recomendar algo que coloque a peste em outra dimensão. Se fala do livro “A peste “ (1947), de Albert Camus. Certo. Seus editores devem estar saltando de alegria, porque o livro havia passado a um discreto segundo plano e agora deve estar vendendo pela internet, para o Kindle, em grande quantidade. Mas poderíamos dizer que há outros autores.
– O que você recomendaria?
– “A morte no ocidente”, de Philippe Ariés, que distingue as diferentes formas da morte desde a Idade Média até a Idade Moderna. Diversos modos os quais as sociedades, as famílias, os indivíduos, os dirigentes, a religião encaram a morte. Talvez também a mídia – e nós mesmos nesta reportagem, por exemplo – poderíamos ver como levamos a discussão para que as pessoas sintam que estão recebendo algo mais do que a ideia da peste e Camus, que parece um rufar de tambores. Que é possível ler algo mais.  Que pensar algo mais é possível pensar algo mais. Se alguém procurar na internet tenho certeza de que encontrará o filme de Albert Serra que mencionei, protagonizado por Jean Pierre Léaud. Ali há uma morte que não é a de “A peste”. E não é a morte de alguém como nós, e sim de um rei. Mas isso permite fazer uma série de reflexões, desde a mais banal: a morte chega a todos, inclusive a Luís XIV, que foi o rei mais poderoso até a Revolução Francesa. No entanto, a ideia é ver se podemos desviar da banalidade do nosso pensamento. Já temos medo demais. O medo reduz as possibilidades intelectuais. Então, trata-se de ver se podemos sair disso. Fala-se muito de Camus e nada de Beckett! Ninguém fala de “Malone morre” (1951), que é o livro de uma agonia. E está traduzido! Não estou tirando do bolso…  “A morte de Luís XIV” é um filme menos conhecido, de festivais… Agora, Beckett não é secreto. Porque ninguém fala de “Malone morre”? Páginas e páginas nas quais alguém que vai morrer, e o que se pergunta é onde caiu o lápis que estava na cama. É quase um exercício de ginástica intelectual e estética.
– Você acha que a mídia impressa perdeu certa profundidade?
– Nunca tenho a sensação de viver processos de decadência. Não é que eu seja uma otimista histórica. Quando defendem que o passado foi melhor, em que estão pensando? Nas “Aguafortes portenhas” de Roberto Artl[i]? Nos textos de Raúl González Tuñón[ii]? Se você vir o jornal “Crítica”, vai ver que esses textos estavam acompanhados de cada porcaria que você não leria. Ignoro o que seja a nostalgia. Talvez o jornalismo de hoje não seja tão bom quanto deveria ser, ou talvez devesse haver mais jornalismo investigativo. Deveria haver menos artigos de opinião, começando pelos meus.
– Retomando sua análise, você sugere sair da paranoia e pensar na finitude, em um sentido mobilizador.
– Não acredito que ninguém possa sair da paranoia. Não tenho autoridade para explicar o assunto. Anos de experiência psicanalítica me explicam que uma pessoa não diz “vou sair da paranoia”. Mas se pode encontrar novos caminhos que ajudem a conviver com estes estados de ânimo que, possivelmente, sejam inevitáveis. Podemos ter meia-hora diferente nas vinte e quatro horas do dia.
– Mas às vezes o cotidiano nestes contextos podem ser horríveis.
– Pode não se tornar horrível, também. Eu tenho uma varanda que dá para duas varandas do edifício da frente, em pleno Caballito [bairro da capital argentina]. Normalmente, não presto muita atenção no que fazem as crianças. De repente, há uma garota numa varanda na mesma altura que a minha, do outro lado da rua. E essa garota começa a acenar para mim. Então estabeleço uma linguagem de sinais, que não é próprio dos meus hábitos socioculturais. Porém, nessas circunstâncias, estabeleço. A reconheço. Ela me procura de manhã, eu a procuro de manhã. Quer dizer que podemos fazer essas pequenas mudanças. Isso me tornará uma adoradora de todas as crianças de Buenos Aires daqui para frente? Não. Mas é possível encontrar, na sua própria subjetividade, detalhes que não tinha percebido.
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Beatriz Sarlo é ensaísta e crítica literária argentina, nascida em Buenos Aires, em 1942. É professora emérita da Universidade de Buenos Aires e durante trinta anos dirigiu a revista cultural Punto de vista (1978-2008), que teve início de forma clandestina durante a ditadura militar e se tornou uma referência para a transição democrática na Argentina. Foi professora-visitante em diversas universidades norte-americanas, como Berkeley, Columbia e Minnesota, e em Cambridge, Inglaterra.Entre seus livros sobre literatura e cultura, destacam-se “A paixão e a exceção: Borges, Eva Perón, Montoneros” (2005), “Tempo passad” (2007) e “Modernidade periférica: Buenos Aires 1920 e 1930” (2010). Em 2009, recebeu do governo brasileiro a Ordem do Mérito Cultural.
Entrevista concedida a Pablo Diaz Marenghi e publicada no suplemento Ñ, do jornal “Clarín”, em abril de 2020. Tradução de Catarina Lins.

[i] Roberto Artl (1900-1942) foi escritor, dramaturgo e jornalista argentino.
[ii] Raúl González Tuñón (1905-1974) foi poeta, escritor e jornalista argentino.

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