Sem medo de pensar a morte, por Tito Marques Palmeiro

Sem medo de pensar a morte
Tito Marques Palmeiro
Repentinamente, entre 2019 e 2020, o Brasil e o mundo se viram ameaçados por uma nova e insidiosa doença. É curioso que ela esteja sendo motivo para a produção de diversos textos. Este é apenas um deles. Ele procura tomar distância de uma espécie de imperativo que insiste em se manter: o de pensar a crise atual a partir de suas possíveis consequências. Aqui não se trata de antecipar se as sociedades se tornarão totalitárias, e nem se o vírus anuncia a possibilidade de uma nova forma de revolução ou de uma economia altamente interconectada, mas apenas de pensar o estranho elemento que tomou o mundo de assalto. Esse elemento sempre nos acompanhou, só que na segura distância do esquecimento. Digamos logo do que se trata — trata-se evidentemente da morte. A morte se misturou com nossas saídas reais ou imaginárias, com nossos gestos, com os sentimentos impregnados em nossas casas, com olhar para os outros e para o Brasil, e mesmo com o íntimo que pulsa em nossos sonhos. Ela está presente entre nós no mundo. Essa é uma situação inusitada que curto-circuita os diversos expedientes neutralizadores da morte tão abundantes em nossa cultura. Apesar de evidentemente irrefutável, procura-se suspender sua efetividade. Reconhece-se a realidade da morte, mas tenta-se, de algum modo, desarmar sua negatividade. Exemplar disso é o conselho de Epicuro na Carta a Meneceu: “Habitue-se a pensar que a morte nada é para nós” (124:6) pois “quando somos, a morte não é, quando a morte é, nós não somos mais” (125:7-8). É compreensível que se criem expedientes para desviar nosso olhar. A morte não teria um lugar singular entre nossas questões; ela teria, na verdade, um não-lugar porque excluiria toda possibilidade de confrontação.
No entanto, agora esse lugar foi alterado. A crise viral mundial abre outra perspectiva. É necessário que se realize algo aparentemente impossível nos termos colocados por Epicuro e por nossa cultura, e que se interrogue a morte. É necessário compreender o que ela significa, o que ela dá a pensar agora.
Eis que em meio aos intensos debates e esperanças que marcam um estranho começo de milênio, a morte lança sua sombria luminosidade no espaço público. Não é a morte produzida em nossas cidades — que é violência urbana —, nem a morte produzida nas guerras — que é o destino de uma causa ou de um povo. É simplesmente a morte sem qualificativos. É um vírus, é aquilo que não somos nós. A morte chega de modo avassalador, incompreensível, de tal modo que o primeiro reflexo é negá-la. Falamos de números; comparamos essa com outras epidemias, com outros tipos frequentes e conhecidos de morte. Procuramos em alguma medida salvaguardar o registro da normalidade, o das conversas e dos problemas de sempre. Se começamos a admitir que algo de estranho está acontecendo, logo desviamos o olhar em direção a suas consequências. Dizemos então aquilo que já sabíamos: que temos que criar novas políticas públicas, um novo modelo econômico, uma nova relação com a natureza…
Mas pensemos melhor. Quando o pai de uma criança está ameaçado de morte, procuramos consolá-la dizendo que ela ficará bem porque receberá uma herança? Ou que poderá finalmente fazer o que sempre quis? São dessa ordem os discursos que pensam consequências. É normal que se procure desviar o olhar; afinal, o que se pode ver na morte? Desde Platão, no livro VI da República, nossa cultura considera que “quando os olhos não se voltam mais para os objetos em cujas cores a luz do dia se fixa, mas sim para as centelhas noturnas, ficam embaçados e parecem quase cegos” (508c-d). E Hesíodo mostra na Teogonia que a morte pertence a esse obscuro registro: “Aí os filhos da Noite sombria têm morada, Sono e Morte, terríveis Deuses, nunca o Sol fulgente olha-os” (211-212). A morte pertence a um registro oposto à clara verdade da ciência e da filosofia. Ela lança uma luz fria, invertida ou negra. Nosso olhar não deve cruzar o seu porque não se quer ser despojado de tudo, e ir para o ponto zero.
Mas… não se trata de se deixar morrer, e sim de pensar. Não se pensa algo tão avassalador quanto a disseminação da morte entre nós em um discurso teórico, inscrito no registro da clara verdade, mas em uma fala pertencendo ao registro da tentativa de acolhida. Voltando ao caso da criança, o que lhe diríamos acerca da presença do Coronavírus entre nós? Uma criança, não um anér, uir, homem, sujeito autônomo. Alguém que se encontra despojado diante da morte — a quem deveríamos dirigir palavras desprovidas das certezas do que se pode conscientemente saber. Esse falar não é uma quimera, pois já está se fazendo; esse ponto zero já está sendo pensado. Não sou eu que me proponho a pensá-lo, de modo exaustivo, até uma resposta — pois nem quero saber que resposta a morte espera. Quero apenas indicar que já se encontra em jogo um pensamento liberado da luz da consciência, efetivo nas inesperadas transformações atualmente em curso de posições e de sensibilidades. Em toda parte, governos, instituições, empresas e pessoas passaram a dizer o que parecia até há pouco impossível. Em suas palavras transparece a desimportância da economia e de suas urgências, assim como dos valores e debates que animaram esse começo de milênio.
Bolsonaro é muito mais que o presidente de um país, ele é o símbolo da não acolhida a esse evento. Esse símbolo tem um papel heurístico importante: seu esforço por não mudar nada mostra o quanto o mundo vem se transformando em poucos dias. É verdade que essas mudanças serão temporárias, pois voltaremos em algum momento ao normal. Consequências se imporão, mas não é isso que importa. O que importa é que novas possibilidades se abriram para pensar o mundo e nosso lugar nele, e que possibilidades não se medem pela luz das consequências. Possibilidades do pensamento, enquanto possibilidades, não podem ser fechadas. Isso significa que o contexto no qual se fazem projetos de vida ou de sociedade foi alterado porque muitos de nós sentimos que ele não depende de uma série de valores até há pouco tidos por básicos. Essa alteração no contexto constitui igualmente uma alteração no pensar. Ela não pode ser precisada, por não ser da ordem do que pode ser recortado e tornado consciente, mas se mostra enquanto o “sentimento particular” ou o “clima geral” de um pensar liberado da tarefa de dissolver o que se lhe opõe. Nem que seja por um pequeno lapso de tempo, o ponto zero da cultura não foi apenas a intuição de alguns poucos, mas uma experiência coletiva de pensamento.
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Tito Marques Palmeiro é professor do departamento de filosofia da UERJ e das especializações em Arte e filosofia e Filosofia contemporânea da PUC-Rio. Estuda o sentido do momento contemporâneo e sua relação com a tradição, interrogando particularmente as relações entre arte, saber e técnica. É autor de diversos artigos em periódicos acadêmicos sobre as obras de Heidegger e de Merleau-Ponty, assim como sobre a filosofia da computação e a linguagem.
Texto escrito em 8 de abril de 2020.

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