“Todo fim na história constitui necessariamente um novo começo”, por Eduardo Jardim

Hannah Arendt e o momento presente
Eduardo Jardim
Há dias estou sozinho em casa ouvindo o que nunca tinha ouvido antes – o sino da igreja do bairro ao meio dia e às 6 horas, o vozerio da favela aqui perto, as conversas entrecortadas dos vizinhos.
Cansado do meu casulo, dessa telinha e de mim mesmo, resolvi dar uma volta na praia, não na areia, porque logo seria advertido pelo apito do guarda, mas no largo calçadão. Salpicados aqui e ali alguns insistentes caminhantes, a maior parte sozinhos, tendo como cenário o mar agitado batendo na amurada.
Estranha experiência – nós nos evitávamos, tomávamos distância ao cruzar alguém, olhávamos até com certo desgosto.
Tenho perguntado nesses dias qual o valor de tantas coisas que aprendi até aqui, de tanta filosofia. Ainda não sei que mundo vou encontrar à frente (tomara que esse seja o caso), e se os projetos que eu tinha ainda vão estar valendo. Estava escrevendo um livro que parei. As histórias que eu vinha contando foram bruscamente interrompidas.
Tento puxar o fio de alguns pensamentos. Não sou inexperiente em matéria de epidemias. Escrevi um livro sobre a aids baseado no que tinha vivido. Sou da geração que viu a doença chegar, quando não havia remédio e tínhamos que enfrentar a morte de cara. Ficou a marca de uma angústia muito intensa e o sentimento de que o tempo é um bem precioso. Naquela época, muitas vezes, o tempo era muito curto e não se podia desperdiçá-lo.
Claro, isso me remete aos filósofos que eu li, como Heidegger, cuja discussão sobre a angústia é a chave para a consideração do homem como ser no tempo. Também tem a ver com literatura, inclusive dos meus contemporâneos, como Caio Fernando Abreu.
Em conversa hoje com um amigo, pela internet naturalmente, buscamos comparar nossa vivência da aids e da covid-19. Comentei que o aparecimento da aids foi muito mais brutal, nos pegou desprevenidos. Vínhamos de uma onda de liberação que, de repente, precisou ser contida. Que prejuízo enorme esse bloqueio nos causou! Já o coronavírus parece que foi criado para o nosso tempo. Uma publicação de um grupo político chinês de oposição avalia os riscos das intervenções nos processos naturais causados pelo capitalismo atual. Falam de uma guerra microbiológica. É possível que o avanço da industrialização avassaladora das cidades e das áreas rurais introduza na natureza elementos de imprevisibilidade e de irreversibilidade que até agora achávamos que eram próprio apenas das ações humanas.  Precisaríamos defender novas formas de naturismo!
Outra diferença entre a aids e a covid-19 tem a ver com os modos diferentes de propagação. Há quarenta anos atrás, a aids atingiu primeiro alguns setores específicos da população. Eram os chamados grupos de risco, os quatro H – homossexuais, haitianos, usuários de heroína e hemofílicos. Para o grande público, já que o contágio se dava sobretudo nas relações sexuais,  os homossexuais, com seu comportamento “desviante”, chegaram a ser considerados os causadores da praga.
A propagação do coronavírus se faz de forma muito mais abrangente. É possível que, ao final, as camadas mais pobres da população que vivem nas grandes aglomerações, como as favelas que vejo da minha janela, sejam as mais prejudicadas. Mas isso é uma decorrência das condições sociais precárias. Nos Estados Unidos, a covid-19 vitimou em alta proporção negros e latinos, que são socialmente mais desprotegidos.
Também a letalidade da aids, ao menos no início, era bem maior do que a do coronavírus. Por alguns anos quem era atingido pelo HIV desenvolvia uma doença fatal. Não é esse, necessariamente, o cenário da covid-19.
Em janeiro passado fui convidado para participar de um evento sobre Hannah Arendt que iria acontecer em maio, na UniRio. Há alguns dias recebi um comunicado avisando que tudo tinha sido adiado por tempo indeterminado. Respondi com uma pergunta: o que pensaria Hannah Arendt sobre o momento que estamos vivendo, ela que atravessou outros tempos sombrios no século XX, o dos totalitarismos nazista e soviético e dos campos de extermínio?
Busco na estante a lida e relida velha edição de “Origens do totalitarismo” e abro no capítulo final, “Ideologia e terror”. Ele só foi incluído no livro tardiamente, depois do debate provocado por sua publicação, em 1951. O texto contém um resumo do argumento, chamando a atenção para a novidade política do terror totalitário, que se deu em seguida à liquidação, no século XX, das instituições políticas tradicionais.
Mas a terrível novidade não caiu da Lua. Hannah Arendt reconhece que ela deve ter raízes em algum aspecto da experiência humana nunca antes investido de significado político.
A solidão é para a filósofa essa experiência. Foi a massa de indivíduos solitários que cerrou fileiras nos movimentos totalitários. O totalitarismo significou para eles uma saída.
Quais as características da solidão, para Hannah Arendt? A solidão foi uma experiência fronteiriça dos doentes e dos velhos, ao longo dos tempos. Estar sozinho significa estar apartado do mundo, da companhia dos outros, e, até de si mesmo, já que precisamos do reconhecimento dos outros para garantir nossa identidade.
A solidão se distingue do isolamento político. Hannah Arendt chama de isolamento o que acontece nos regimes tirânicos e ditatoriais. Nesses casos, as relações políticas entre os homens são destruídas. Mas nem todo o contato com o mundo desaparece: continuamos construindo utensílios e até obras de arte, e continuamos pensando. Sabemos de perto a que Hannah Arendt está se referindo. No período da ditadura, livros foram escritos e canções foram compostas.
A solidão vai além do isolamento, ela é mais radical, já que compromete também o contato com as coisas do mundo. Na situação atual, os homens ficaram reduzidos a meros trabalhadores ocupados com a manutenção de sua própria vida e despreocupados em construir um mundo e de agir entre si em concerto.
A solidão também é distinta do estar a sós. Estar a sós envolve o desdobramento do um em dois. Ele caracteriza a atividade do pensamento, se entendermos com os antigos que pensar é o diálogo silencioso de si consigo. São muitos os testemunhos nessa direção. A começar com Sócrates nos diálogos de Platão que a certa altura anuncia que vai voltar para casa onde um amigo o espera, e esse amigo era ele mesmo. Também em Cícero aparece a mesma ideia na definição que atribui a Catão de que nunca se está menos só do que quando a sós consigo. Também para os estoicos alguém pode estar desacompanhado dos outros, e, nesse caso, estar na companhia de si mesmo. Mas o depoimento mais comovente é o de Nietzsche, ao começar a escrever seu “Zaratustra”. Em um poema ele disse: “Ao meio dia, o Um tornou-se Dois… Certos de que venceremos unidos, celebramos a festa das festas: chegou o amigo Zaratustra, o convidado dos convidados.”
Releio o capítulo “Ideologia e terror” e observo que há dois caminhos para se escapar da solidão. O primeiro é o da fuga para a massa, o da fusão dos indivíduos em um único processo – os totalitarismos. A segunda, o do pensamento – esse caminho que tenho percorrido nesses dias.
Noto ainda a ideia central da filosofia de Hannah Arendt, presente em todos os seus escritos. Por um lado, ela responde à urgência de dar conta do esgotamento da história. É um pensamento da crise. Por outro lado, faz uma aposta de que todo fim traz consigo a possibilidade de um novo começo. O último parágrafo do livro expressa esse movimento com todo vigor:
Mas permanece também a verdade de que todo fim na história constitui necessariamente um novo começo; esse começo é a promessa, a única “mensagem” que o fim pode produzir. O começo, antes de tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente, equivale à liberdade do homem. Initium ut esset homo creatus est – “o homem foi criado para que houvesse um começo”, disse Agostinho. Cada novo nascimento garante esse começo; ele é, na verdade, cada um de nós.
Eduardo Jardim é filósofo e escritor.  Foi professor de filosofia na PUC-Rio entre as décadas de 1970 e 2010. Escreveu livros sobre modernismo no Brasil. Em 2015, lançou a biografia Eu sou trezentos – Mário de Andrade, vida e obra, vencedor do Prêmio Jabuti de Melhor Livro do Ano de Não Ficção. Pesquisou o pensamento de Hannah Arendt e Octavio Paz, colaborando na divulgação de suas obras e publicou sobre eles: A duas vozes – Hannah Arendt e Octavio Paz (2007) e Hannah Arendt – pensadora da crise e de um novo início (2011). Traduziu a coletânea de ensaios A busca do presente, do escritor mexicano Octavio Paz (2017), parte da coleção Ensaios contemporâneos, que dirige na editora Bazar do Tempo. Autor dos recentes livros Tudo em volta está deserto e A doença e o tempo – aids, uma história de todos nós
Texto escrito para Pensar o tempo, em 13 de abril de 2020.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site usa cookies para lhe oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar neste site, você concorda com o uso de cookies.