A história da solidão
Jill Lepore
A chipanzé fêmea do Jardim Zoológico da Filadélfia morreu de complicações decorrentes de um resfriado no início da manhã do dia 27 de dezembro de 1878. A “Senhorita Chimpanzé”, de acordo com os jornais, morreu “enquanto recebia as atenções de seu companheiro”. Tanto ela quanto seu companheiro – um macho de quatro anos – nasceram perto do Rio Gabão, na África Ocidental. Eles chegaram à Filadélfia em abril, juntos. “Estes macacos podem ser capturados apenas quando jovens”, explicou o superintendente do zoológico, Arthur E. Brown, e geralmente apenas dois ou três são capturados por vez. Na natureza, “eles vivem juntos em grupos pequenos de meia dúzia e constroem plataformas entre os galhos, a partir de ramos e folhas, sobre as quais dormem”. Na Filadélfia, entretanto, na casa dos macacos – onde havia apenas dois deles –, os chimpanzés “acostumaram-se a dormir um nos braços do outro, sobre um cobertor no chão”, apertando um ao outro, desesperada e dolorosamente, durante a longa e fria noite.
O Jardim Zoológico da Filadélfia foi o primeiro zoológico nos Estados Unidos. Abriu em 1874, dois anos após a publicação de “As expressões e emoções nos homens e Animais”, de Charles Darwin, no qual ele relatava o que havia aprendido sobre as ligações sociais dos primatas com Abraham Barlett, o superintendente da Sociedade Zoológica de Londres:
“Muitos tipos de macacos, como afirmam trabalhadores dos jardins zoológicos, encontram prazer em fazer e receber carinho uns dos outros, e de pessoas das quais são próximos. Mr. Bartlett me descreveu o comportamento de dois chimpanzés, mais velhos do que os animais normalmente importados para este país, quando foram colocados juntos pela primeira vez. Eles sentaram em lados opostos, tocando um ao outro com os lábios projetados; um colocava a mão no ombro do outro. Então eles se envolveram mutualmente em seus braços. Depois, ficaram de pé, cada um com um braço no ombro do outro, levantaram a cabeça, abriram a boca, e gritaram de alegria.”
O Sr. e a Senhorita Chimpanzé, da Filadélfia, eram dois dos únicos quatro chipanzés nos Estados Unidos. Quando ela morreu, observadores humanos lamentaram sua morte, mas, acima de tudo, eles comentaram sobre o comportamento de seu companheiro. Por um longo período, contaram, ele tentou em vão acordá-la. Então, ele “entrou em um frenesi de dor”. Esse paroxismo está inteiramente de acordo com o que Darwin descreveu nos humanos: “Pessoas em sofrimento excessivo frequentemente procuram alívio em movimentos violentos e quase frenéticos”. O macaco em luto começou a puxar o cabelo de sua cabeça. Ele gemia fazendo um som que o funcionário do zoológico nunca havia escutado antes: Hah-ah-ah-ah-ah. “Seu choro foi ouvido por todo o jardim zoológico. Ele se atirava contra as barras da jaula e batia sua cabeça no fundo de madeira, e quando essa explosão de sofrimento havia terminado, ele enfiou a cabeça debaixo da palha em um canto e gemeu como se seu coração fosse se partir”.
Algo assim nunca havia sido testemunhado. O superintendente Brown preparou um artigo acadêmico, “Sofrimento entre os Chimpanzés”. Mesmo muito tempo depois da morte da fêmea, relatou Brown, o macho “invariavelmente dormia em uma viga no topo da jaula, voltando ao hábito hereditário e mostrando, provavelmente, que a apreensão de perigos invisíveis havia aumentado devido a sua sensação de solidão”.
Solidão é sofrimento, expandido. Pessoas são primatas, e ainda mais sociáveis do que chimpanzés. Nós desejamos intimidade. Sem isso, secamos. E, ainda assim, muito antes da presente pandemia, com seu isolamento forçado e distanciamento social, os humanos começaram a construir suas próprias casas de macaco. Antes da era moderna, muitos poucos humanos viviam sozinhos. Lentamente, começando não mais do que há um século, isso mudou. Nos Estados Unidos, uma em cada quatro pessoas vive sozinha; em algumas regiões do país, especialmente em grandes cidades, esta percentagem é muito maior. Pode-se viver sozinho sem ser solitário, e é possível ser solitário sem viver sozinho, mas as duas coisas estão intimamente ligadas, o que faz com que o confinamento seja tão mais difícil de aguentar. Solidão, parece desnecessário dizer, é péssimo para sua saúde. Em 2017 e 2018, o então Cirurgião Geral dos Estados Unidos, Vivek H. Murthy, declarou uma “epidemia da solidão”, e a Inglaterra nomeou um Ministro da Solidão. Para diagnosticar essa condição, médicos na UCLA criaram uma Escala da Solidão. Você, frequentemente, às vezes, raramente ou nunca se sente assim?
Estou infeliz fazendo tantas coisas sozinho.
Não tenho com quem conversar.
Não posso tolerar estar tão sozinho.
Sinto como se ninguém realmente me entendesse.
Já não sou próximo de nenhuma pessoa.
Não há ninguém para quem eu possa recorrer.
Sinto-me isolado dos outros.
Na era da quarentena, uma doença produz outra?
“Solidão” é um termo da moda, e como todos os termos da moda encobre vários tipos de coisas que as pessoas preferem não nomear e não têm ideia de como corrigir. Muitas pessoas gostam de ficar sozinhas. Eu mesma adoro ficar sozinha. Mas reclusão, uma coisa que que adoro, é diferente da solidão, que é uma coisa que odeio. A solidão é um estado de angústia profunda. Neurocientistas identificam a solidão como um estado de hipervigilância cujas origens remontam aos nossos ancestrais primatas, e em nosso passado de caçadores-coletores. Muito da pesquisa nesse campo foi conduzida por John Cacioppo, no Centro para Neurociência Cognitiva e Social, da Universidade de Chicago. Cacioppo, que morreu em 2018, era conhecido como Dr. Loneliness (Dr. Solidão). Em seu novo livro “Together: The Healing Power of Human Connection in a Sometimes Lonely World” [Juntos: O poder curativo da conexão humana em um mundo às vezes solitário], Murthy explica como a teoria evolucionária da solidão, de Cacioppo, foi testada por antropólogos na Universidade de Oxford que traçaram suas origens até 52 milhões de anos atrás, até os primeiros primatas. Primatas precisam pertencer a um íntimo grupo social, uma família ou um bando, para conseguir sobreviver. Isso é especialmente verdade para humanos (humanos que você não conhece podem muito bem te matar, o que é um problema não compartilhado pelos macacos). Separados do grupo – seja estando sozinho ou em um grupo de pessoas que você não conhece e que não te entendem – desencadeia uma resposta de “luta ou fuga”. Cacioppo argumenta que seu corpo entende estar sozinho, ou estar entre estranhos, como uma emergência. “Ao longo de milênios, esta hipervigilância em resposta ao isolamento se incorporou ao nosso sistema nervoso para produzir a ansiedade que associamos com a solidão”, escreve Murthy. Respiramos rápido, nosso coração dispara, a pressão sanguínea aumenta, não dormimos. Agimos com medo, na defensiva e auto-centrados, o que afasta pessoas que poderiam na realidade querer ajudar, e tende a impedir as pessoas de fazer o que mais as beneficiaria: aproximar-se de outras pessoas.
A epidemia da solidão, neste sentido, é mais como a epidemia da obesidade. Evolutivamente falando, sentir pânico quando se está sozinho, assim como achar comidas super-calóricas irresistíveis, é altamente adaptativo. Mais recentemente, entretanto, em um mundo onde as leis (na maioria das vezes) nos proíbem de matar uns aos outros, precisamos trabalhar com estranhos todos os dias, e o problema provavelmente será muita comida calórica ao invés de pouca. O tiro sai pela culatra.
A solidão, Murthy argumenta, está por trás de uma série de problemas – ansiedade, violência, trauma, crime, suicídio, depressão, apatia política, e mesmo polarização política. Murthy escreve com compaixão; no entanto, este argumento de que “tudo pode ser reduzido à solidão” é difícil de engolir, até porque muito do que ele tem a dizer sobre solidão foi dito sobre a questão dos sem-teto nos anos 1980, quando “homeless” era o termo da moda – uma palavra, de certa maneira, mais fácil de dizer do que “pobreza” – e falar dela não ajudou. (Desde então, o número de moradores de rua nos Estados Unidos aumentou). Curiosamente, Murthy frequentemente mescla os dois, explicando a solidão como o sentimento de estar “sem casa”. Pertencer é se sentir em casa. “Estar em casa é ser reconhecido”, ele escreve. Casa pode ser qualquer lugar. Sociedades humanas são tão intrincadas que as pessoas têm laços íntimos e significativos de todos os tipos, com diferentes tipos de grupos de pessoas, mesmo à distância. Você pode se sentir em casa com seus amigos, no trabalho, no refeitório de uma faculdade, na igreja, em um estádio ou no bar da esquina. Solidão é não se sentir em casa em nenhum lugar. “Em uma comunidade após a outra”, escreve Murthy, “conheci pessoas solitárias que se sentiam sem lugar mesmo que tivessem um telhado sobre suas cabeças”. Talvez, o que as pessoas que experimentam a solidão e os moradores de rua precisem seja de casas com outros humanos dentro, que os amem e precisem deles, e saber que eles também são necessários para outras pessoas em sociedades que se preocupam com eles. Isso não é uma agenda política. É uma acusação contra a vida moderna.
No livro “A Biography of Loneliness: The History of an Emotion” (Oxford) [A biografia da solidão: A história de uma emoção], a historiadora britânica Fay Bound Alberti define solidão como “um sentimento cognitivo e consciente de alienação ou ausência de relação com pessoas que importem”, e ela se opõe à ideia de que a solidão seja universal, trans-histórica, e a fonte tudo o que nos aflige. Ela argumenta que a condição realmente não existia antes do século XIX, ao menos não de maneira crônica. Não que as pessoas – viúvos e viúvas, em particular, e os muito pobres, os doentes e os exilados – não sentissem solidão; mas uma vez que era impossível sobreviver sem viver entre outras pessoas, e sem ligações com outras pessoas seja por laços de feição, lealdade ou obrigação, a solidão era uma experiência passageira. Monarcas eram, provavelmente, cronicamente solitários. No entanto, para a maioria das pessoas, a vida diária envolvia tantas teias intrincadas de dependência e troca – e abrigo compartilhado – que ser cronicamente ou desesperadamente solitário era o mesmo que estar morrendo. A palavra “solidão” muito raramente aparece em inglês antes de 1800. Robinson Crusoé estava sozinho, mas nunca sentiu solidão. Uma exceção é Hamlet: Ofélia sofre de solidão; e então se afoga.
A solidão moderna, na visão de Alberti, é filha do capitalismo e do secularismo. “Muitas das divisões e hierarquias que se desenvolveram desde o século XVIII – entre o eu e o mundo, indivíduo e comunidade, público e privado – foram naturalizadas através da política e da filosofia do individualismo”, escreve ela. “Seria coincidência que uma linguagem da solidão tenha surgido ao mesmo tempo?” Não é coincidência. A ascensão da privacidade, ela mesma um produto do capitalismo de mercado – sendo a privacidade algo que se compra – é um vetor da solidão. O mesmo vale para o individualismo, pelo qual também é preciso pagar.
O livro de Alberti é uma história cultural (ela oferece uma leitura anódina de “O morro dos ventos uivantes”, por exemplo, e outra das cartas de Sylvia Plath). Mas a história social é mais interessante e, neste ponto, o estudo demonstra que qualquer epidemia de solidão que se possa dizer que exista está intimamente ligada a viver sozinho. Se morar sozinho é o que faz com que pessoas se sintam solitárias, ou se as pessoas moram sozinhas porque já se sentem solitárias, é difícil dizer, mas a maioria das evidências aponta para a primeira: é a força da história, e não a escolha, o que leva as pessoas a viverem sozinhas. Isso é um problema para pessoas que tentam lutar contra uma epidemia de solidão, porque a força da história é inexorável.
Antes do século XX, de acordo com amplos estudos demográficos, mais ou menos 5% de todas as famílias (ou, em torno de 1% da população mundial), consistia em apenas uma pessoa. Este índice começou a aumentar em torno do ano de 1910, impulsionado pela urbanização, pelo declínio do número de empregados que viviam nas casas, o declínio da taxa de natalidade, e a substituição da família multigeracional tradicional pela família nuclear. Quando David Riesman publicou “The Lonely Crow”, em 1950, 9% de todas as casas eram ocupadas por apenas uma pessoa. Em 1959, a psiquiatria descobriu a solidão em um ensaio da analista alemã Frieda Froom-Reichmann. “Solidão parece ser uma experiência tão dolorosa e assustadora que as pessoas farão praticamente qualquer coisa para evitá-la”, escreveu. Ela própria também recuou de medo ao encará-la. “O desejo por intimidade interpessoal acompanha todo ser humano, desde a infância e por toda a vida”, escreve Froom-Reichman, “e não há nenhum ser humano que não se sinta ameaçado por sua perda”. Pessoas que não estão sozinhas têm tanto medo da solidão que evitam os solitários, com medo de que essa condição possa ser contagiosa. E pessoas que são solitárias estão tão horrorizadas pelo que estão experimentando que se tornam reservados e auto-referidos – “o que produz a triste convicção de que ninguém mais sentiu ou irá sentir o que eles estão sentindo ou sentiram”, escreveu Fromm-Reichmann. Uma tragédia da solidão é que pessoas que se sentem sozinhas não conseguem ver que inúmeras outras pessoas se sentem da mesma maneira.
“Durante a última metade do século, nossa espécie embarcou em um experimento social singular” o sociólogo Eric Klinenberg escreveu em “Going solo: The extraordinary Rise and Surprising Appeal of Living Alone”, de 2012. “Pela primeira vez na história humana, um grande número de pessoas – de todas as idades e lugares, e de diferentes inclinações políticas – começaram a se estabelecer como solteiros” Klinenberg considera isso, em grande parte, um triunfo; mais plausivelmente, é um desastre. Começando nos anos 1960, a percentagem de famílias constituídas por uma única pessoa aumentou consideravelmente, estimulada por uma alta taxa de divórcios, taxa de natalidade ainda decrescente, e, acima de tudo, devido à maior expectativa de vida. (Depois da ascensão da família nuclear, os mais velhos começaram a viver sozinho, com as mulheres normalmente tendo mais tempo de vida do que seus maridos). A literatura médica da solidão começou a surgir nos anos 1980, ao mesmo tempo em que se começava a dar mais importância às políticas relacionadas aos sem-teto, o que é uma condição muito mais extrema do que ser a única pessoa em uma casa: ser sem-teto é ser a única pessoa de uma casa, mas sem a casa. Cacioppo começou sua pesquisa nos anos 1990, mesmo que naquele momento os humanos tivessem construindo uma rede de computadores para conectar todos nós. Klinenberg, que se formou na faculdade em 1993, está particularmente interessado em pessoas que escolheram viver sozinhas exatamente naquela época.
Acho que fui uma delas. Eu tentei viver sozinha quando tinha 25 anos, porque parecia importante para mim, assim como possuir um móvel que eu não tivesse encontrado na rua parecia algo importante, como um sinal de que eu tinha atingido a maioridade, podia pagar aluguel sem precisar sublocar um quarto em apartamento alugado. Eu podia pagar pela minha privacidade, posso dizer agora, mas na época com certeza eu teria dito que tinha me tornado “minha própria pessoa”. Isso durou apenas dois meses. Eu não gostava de ver televisão sozinha, e tampouco tinha uma televisão, e aquela era, se não a época dourada da televisão, a era dourada dos Simpsons, e eu comecei a ver televisão com meu vizinho. E fui morar com ele, e então nos casamos.
Esta experiência não se encaixa tão bem na história contada por Klinenberg. Ele argumenta que tecnologias de comunicação em rede, começando com a adoção generalizada do telefone, nos anos 1950, ajudou a fazer com que morar sozinho fosse possível. Rádio, televisão, internet, mídias sociais: podemos nos sentir em casa online. Ou não. O influente livro de Robert Putnam sobre o declínio dos laços na comunidade Estadunidense, “Bowling alone”, foi lançado em 2000, quatro anos antes do lançamento do Facebook, que monetiza em cima da solidão. Algumas pessoas dizem que o sucesso das redes sociais é um produto da epidemia da solidão; outras, que foi algo que contribui para isso; outras dizem que é o único remédio para esse problema. Conectar! Desconectar! O semanário The Economist declarou que a solidão é “a lepra do século XXI”. A epidemia só fez crescer.
Esta não é uma peculiaridade do fenômeno americano. Viver sozinho, ainda que seja comum nos Estados Unidos, é ainda mais comum em muitas partes do mundo, como Escandinávia, Japão, França, Reino Unido, Austrália e Canadá, e está crescendo em lugares como China, Índia e Brasil. Viver sozinho funciona melhor em nações com forte apoio social. Funciona pior em lugares como os Estados Unidos. É melhor ter não apenas internet, mas uma rede de segurança social.
Então o grande confinamento global começou: isolamento forçado, distância social, confinamentos, um humano, porém inumano, jardim zoológico. O Zoom é melhor do que nada. Mas por quanto tempo? E o que dizer do momento em que a comunicação cai: o pânico, o último laço cortado? Você se atira contra as paredes da sua jaula? Você, trancado, se debate e chora e geme? Às vezes, raramente ou nunca? Mais hoje do que ontem?
Jill Lepore é uma historiadora e escritora americana, professora de História da América na Universidade de Harvard. Desde 2005, contribui para a revista The New Yorker, escrevendo principalmente sobre história americana, literatura, política e direito. É autora de “The Name of War” (ganhador do Prêmio Bancroft), “New York Burning” (finalista do Prêmio Pulitzer na categoria História), “Book of ages” (finalista do National Book Award), “The secret History of Wonder Woman” e “These Truths: A History of the United States”.
Texto publicado na revista The New Yorker em 30 de março de 2020. Tradução de Catarina Lins.