Ceia de Natal – uma carta-conto de Elsa Morante

Elsa Morante

Caro Goffredo,

Com esta carta, envio meus votos de bom Natal e Feliz Ano Novo e te conto, a propósito da data, uma história verdadeira (pelo menos em parte, ou até um certo ponto). Ela aconteceu há mais de 50 anos, no período das festas (acho que era mesmo na festa de Natal). Num colégio de padres, ou de frades, uma dezena de garotinhos foram obrigados, por motivos de família, a passar o Natal por lá. A comida no dia de Natal foi – relativamente – farta. A lista era: Fettuccine – Cordeiro assado com batatas – 1 pera. No fim da ceia, porém, chegou à mesa uma torta magnífica (zuppa inglese)[1] medindo mais ou menos 45 centímetros. O Padre se levantou e disse:

“Filhinhos, neste dia santo convido vocês a pensar nas tantas criancinhas que não têm nem menos um pão para ceiar: e em consideração a esses pobrezinhos lhes convido a oferecer um sacrifício a Jesus. Cada um que está sentado nesta mesa teria direito a uma fatia deste bolo. Eis a minha proposta: abra mão da sua própria fatia de bolo, oferecendo-a como sacrifício a Jesus. Todas as crianças boas que concordarem vão se levantar agora da mesa. Tudo bem?”.

Todos responderam com convicção: “Sim, padre”. E se levantaram. Todos menos um, um certo Egidio, que não respondeu nem se levantou. Uma sensação estranha o prendia à cadeira: aquilo não lhe cheirava bem.

“Egidio! Você não ouviu? Por que não se levantou? Todos os meninos bons se levantaram. E você?”

Egidio ficou vermelho e não encontrou outra resposta: “Eu sou malvado”.

“Ah”, resmungou o Padre com desgosto. E, contra a sua vontade, foi obrigado a cortar um pedaço da torta e colocar no prato de Egidio, que ficou sozinho na mesa com a sua zuppa inglese. O pior era que, entre todos os doces, desse ele não gostava. Ele comeu um pedacinho, mas a torta não lhe desceu bem. Nessa hora, o menino avistou na janela do refeitório um vira-latas que olhava com água na boca para o seu prato. Então, para acabar logo com aquilo, ele deu para o cãozinho o resto do seu pedaço de torta. O vira-latas devorou tudo em um segundo.

Egidio saiu. O Padre voltou. E viu a torta não mais inteira, mas faltando um pedaço, o que redobrou a sua raiva. Primeiro motivo: porque ela era o símbolo material de que na sua congregação tinha uma ovelha desgarrada, um individualista, quem sabe mesmo um aristocrático e, por que não dizer, um reacionário: EGIDIO. Segundo motivo: por razões políticas, como muitas vezes acontece, por trás daquele sacrifício coletivo se escondia um interesse; ou seja, o Padre tinha se comprometido a oferecer aquela torta, dada em sacrifício pelos meninos, a uma poderosíssima, gordíssima e glutona abadessa de um convento nos arredores, que, com razão, lhe daria méritos por esta ação.

Mas agora que a torta estava banguela, sem um dos “dentes”, ele não poderia mais oferecê-la. E, quanto a ele, sofria de diabetes e, por isso, à sua raiva se juntava também um tanto de inveja por Egidio, que, com seu estômago sadio, tinha provado o sabor do açúcar… Em poucas palavras: aquela torta se tornou tão odiosa que ele quase a jogou no vaso!

Naquela hora, por sorte, um pequeno limpa-chaminés chegou ao convento para cobrar o que lhe era devido pelo serviço (o Padre era um mau pagador) prestado durante todo o inverno, quantia que chegava a 2,45 liras (valor de cinquenta anos atrás). Irritado, o Padre lhe dá só 0,50 e diz para rolar a dívida para o ano seguinte. Enquanto falava, olhou de novo para a torta maldita e, para livrar-se logo daquilo, colocou-a no colo do garoto: “Pronto, leva com você e suma da minha frente”. O limpa-chaminés deu no pé e foi comer a torta com seus companheiros de labuta. Fim.

MORAL:

Deus escreve certo por linhas tortas

ou

Todos os caminhos levam a Roma

Não apenas isso. A história, do seu jeito, é (até certo ponto) verdadeira. Não te contei uma lorota. Isso já faz mais de 50 anos (precisamente, se não me engano, 53 ou 54).

______

Tradução de Claudia Lamego
Revisão Isabella Discacciati

Texto publicado originalmente em Gli Asini Rivista

[1] Apesar do nome, é uma sobremesa italiana, cuja preparação varia entre regiões, mas que, em geral, tem camadas de pão de ló, creme de confeiteiro e cerejas em calda (ou chocolate).

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site usa cookies para lhe oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar neste site, você concorda com o uso de cookies.