Romper o silêncio. A escrita de “No muro da nossa casa”, de Ana Kiffer

Por Felipe Maciel

A imagem de um muro intransponível permeia o novo romance da escritora Ana Kiffer, No muro da nossa casa.  Filha de João e Cléa, mãe de Clara, sua vida e história foram moldadas – assim como as de tantos outros brasileiros – pela história do Brasil do final dos anos 1960, quando o país mergulhou em uma ditadura civil-militar. Após a prisão de seu pai, com a casa invadida pelas forças armadas e o muro pichado inúmeras vezes, sua mãe, que a trazia na barriga, foi também presa e interrogada.

Um romance epistolar, uma autoficção ou uma biografia ficcionalizada? Ao romper as fronteiras que demarcam os gêneros literários, Ana Kiffer criou uma estrutura narrativa híbrida, quase uma dramaturgia, que se desenvolve em sete atos. Nesse diálogo entre mãe e filha, intercalam-se as duas vozes, que buscam desatar o nó do passado e superar o trauma e as cicatrizes herdados pela filha, que nunca terá uma lembrança daquilo que não viveu, mas que algo guarda, como uma ferida no corpo que não cicatriza.

 

Apesar de breve, o livro No muro da nossa casa traz uma história de intensa carga dramática. Como surgiu a ideia do livro? Como foi o processo de escrita? E por que decidiu contar essa história?

O breve foi todo um trabalho de depuração, para que “a carga dramática” pudesse ser, digamos, a terceira voz nessa estrutura de diálogo do livro. O livro quer tocar as pessoas, não convencê-las de algo. A ideia, antes de se tornar uma forma, era uma necessidade: falar dessa história da qual eu não tenho memória, mas que hoje me dou conta que marcou tanto a minha vida, e muitas vezes até determinou escolhas sem que eu mesma me desse conta.

O processo de escrita foi muito penoso, ele começou em 2018 quando eu já estava fora do Brasil, com uma bolsa do Governo (CAPES) e tudo o que acontecia aqui me espantava, por vezes me apavorava. Depois, houve o mergulho nos arquivos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e nos arquivos do DOPS, os da prisão do meu pai. Essa experiência também foi penosa. E ainda, talvez o mais difícil tenha sido essa “evocação” constante da minha mãe, a busca por construir a sua personagem, que se misturava, obviamente, aos meus afetos e memórias da nossa relação, os bons afetos, e a falta que ela me faz, e também os difíceis.

Esse convívio diário com a sua presença-ausente foi certamente o mais duro. Junto aos depoimentos das mulheres torturadas pela ditadura civil-militar no Brasil me fizeram parar e voltar muitas vezes à escrita desse livro. O que sim, desde o início tomou forma, e sobre o quê estava certa é que o foco deste livro estaria nas histórias das mulheres. Mesmo através da voz de duas personagens falariam muitas mulheres e diferentes gerações.

 

A obra apresenta um diálogo ficcionalizado entre mãe e filha. A partir de um relacionamento áspero e marcado pelo afeto contido e o silêncio, acompanhamos uma sequência de diálogos marcados por ressentimento e dor. Apesar de ficcionalizada, a narrativa é inspirada na relação verídica entre você e sua mãe. O que a levou a falar sobre um tema tão íntimo e torná-lo público?

Porque é importante falar sobre esses afetos difíceis, porque talvez se tivéssemos falado teria sido mais fácil para ela. Porque toda uma geração de pais e mães não conseguia falar de amor com os seus filhos. Não nos damos conta, mas essa mudança é muito recente. Não sei se há tanto ressentimento no livro, se há é porque sobrou ainda algum (risos). Porque eu depurei, escrevi e reescrevi. Mas, enfim, o ressentimento é parte fundamental do processo das relações entre gerações, entre pais e filhos, entre cidadão e sociedade, e não trazer esse “feio” das relações seria quase negar a nossa história, fingir que vivemos num mundo que não existe. Só em regimes autoritários e baixo o silêncio é que não podemos dizer como nos ressentimos com tanta injustiça, com tanta violência, com tanta dor.

Dizer é um exercício de liberdade e de emancipação.

Mas para mim, quando isso se torna texto, se faz literatura, já não sou eu e minha mãe, somos mães e filhas, muitas, várias, todas que com essa história sentirem algo, encontrarem algo, desenterrarem algo e saírem dali as mesmas e diferentes. Um pouquinho diferentes, porque já não mais sozinhas. Acompanhadas naquilo sobre o quê não falamos. Porque é duro mesmo, e preferiríamos que tudo fosse diferente. E ressentimento entre mãe e filha não precisa de ditadura para haver, em alguma medida talvez sempre haverá. Então diferentes gerações, classes, grupos de pessoas nesse Brasil tão diverso podem ler esse livro também sob esse prisma – o da relação entre uma mãe e uma filha. E como é difícil criar uma filha, depois que temos é que descobrimos. Este livro é também para as filhas, a minha decerto, já que é uma homenagem à memória da avó que ela pouco conheceu, mas também a todas as filhas.

Foi muito importante como ao longo do livro compreendi coisas sobre as quais minha mãe nunca falou, como compreendi o seu silêncio. E, ao compreendê-la, vivi um pouco na carne toda uma geração recatada, do lar. Ainda, sob a ditadura, vivendo o “in-xílio”, como dizer?

 

Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e semifinalista do Oceanos, seu livro anterior, O canto dela(Patuá), transita entre o ensaio, a crônica, a poesia e a ficção. Neste novo livro, você também visita gêneros híbridos. Autoficção, romance epistolar, memórias. Como classifica No muro da nossa casa nesse emaranhado? 

(risos) Eu rio porque venho dizendo aos alunos que vivemos todes, de uma forma ou outra “transtornos de gênero” (Judith Butler). Isso quer dizer que a literatura contemporânea está em plena mutação (como outros pilares das sociedades) e os gêneros existentes já não nos comportam. Para mim esse é um problema menor, na medida em que o que importa é se o leitor consegue se identificar com o que lê.

Este livro, enquanto estrutura narrativa, me parece bastante simples, é quase uma dramaturgia: um diálogo, duas vozes até o fim, em torno de um nó que é a prisão grávida dessa mãe e essa filha que nunca terá uma lembrança disso (obviamente), mas que algo guarda, tipo marcado no seu corpo. Como são as experiências traumáticas. O canto dela (Patuá) era mais experimental, porque ali eu inseri a personagem-narradora ( Marie-Aude Alia, uma francesa nascida em Togo) também como autora. E isso criou essa sensação de vertigem e confusão de vozes. Aqui é uma filha personagem, que o leitor pode dizer que sou eu, e uma mãe personagem, que é o único personagem cujo nome coincide com o nome verídico: Cléa era mesmo o nome da minha mãe.

Por que não é auto-ficção? Porque não sou eu o centro da história, mas minha mãe. Seria então alter-ficção, como diz o Julián Fuks? Mas aí o que eu faria com toda a pesquisa nos arquivos da CNV? Que já não dizem respeito à história da minha mãe, mas incluem de forma romanceada em sua voz a história de diferentes mulheres? Então é romance. Se voltamos à concepção radical de romance. Aquela onde Cervantes inseriu no meio da sua história a recepção do público leitor ao primeiro volume do Dom Quixote. Ou quando Flaubert diz: Madame Bovary sou eu. Nesse sentido o romance continua sendo um experimento aberto, a ser reinventado sempre. Acho que podemos deixar assim não é?

 

No texto de quarta capa, o escritor Julián Fuks define a obra como “um breve romance saturado da dor de um país, dor escrita com tinta que não se apaga”. Ainda que o tema central seja o relacionamento subjetivo entre mãe e filha, o pano de fundo político é fundamental para o contexto da narrativa. De que maneira as vidas subjetivas são marcadas e alteradas pelas circunstâncias históricas?

Pois é, essa talvez tenha sido a outra grande descoberta que fiz com esse livro: como pude ter sido tão marcada por uma história que vivi no ventre da minha mãe? Ou durante uma primeira infância da qual pouco lembro? Como minha mãe foi marcada pela pobreza de sua família e pela crença numa “justiça social” no Brasil? Como, para ela, cujas violências da vida dura já eram certamente muitas, ficou difícil se “reconectar” a esse nosso mundo, a esse nosso país, a re-investir nos sonhos e desejos que são, em alguma medida, sempre dependentes da política?

Então, de fato, as subjetividades são marcadas pelas políticas no sentido amplo geral e irrestrito, para ser irônica. E as mudanças bruscas da história alteram a vida das pessoas. Num certo sentido já não há mais a ideia de vida pacata. A de um interior de um Brasil idílico. As vidas negras e pobres sempre foram marcadas pelas circunstâncias históricas, elas são decorrência disso no Brasil até hoje. Outra história sobre a qual falamos pouco: a da escravização das pessoas negras.

A anistia geral e irrestrita, pacto que nos fez sair da ditadura civil-militar brasileira, foi também um modo de calar a boca. Depois ficamos comparando o número de mortos entre as ditaduras do Chile e da Argentina para dizer que a nossa ditadura foi branda, porque fazemos isso né? Sempre abrandamos tudo, às vezes é bom, mas às vezes é péssimo. Ora, todo e qualquer tipo de violência – psicológica, física, psicossocial, etc – é violência e altera a vida das pessoas. E já não temos como mensurar em detalhes como essas violências se mesclaram: às da pobreza, a da escravização das pessoas negras com às da ditadura naqueles anos.

No caso do No muro da nossa casa essa história é sentida na dor da filha que viu como sua mãe não pôde se reconectar plenamente à vida, e nesse sentido essa história louva à memória da minha mãe e a sua coragem. Mas ela acabou também tendo que navegar nos nossos anos difíceis 2019-20, quando essa filha põe em questão as suas escolhas, as suas utopias e desejos de mudar as coisas nesse país. Então são duas grandes circunstâncias históricas que marcaram rumos, e às vezes não nos damos conta disso, porque a vida segue. É quando o tempo da literatura chama a gente para dar uma volta, quem sabe nessa volta fazemos uma espiral e saímos por uma brecha diferente da que entramos.

 

Não há heróis, heroínas ou um sentido explícito de redenção no livro. A dor imposta pela censura, a perseguição política e a tortura alterou o curso da vida de uma família e nada mais foi como antes. Para você, a publicação deste romance seria uma forma de reparação do passado?

Acho que reparação é um termo muito grande e não me sentiria à vontade para utilizá-lo. Mas sei que essa história quis louvar especificamente a memória da minha mãe e a de muitas outras mulheres que sofreram com a violência nesse país. Também acho que é um livro que servirá às gerações mais novas para se informarem, através da emoção vivida e vívida das vozes dessas duas mulheres sobre parte da história desse país. Depois também penso que era preciso falar da ditadura no Brasil e sua violência através de histórias que não foram trágicas, terríveis, e sim, porque não dizer, heróicas. Muitas delas me inspiraram desde a minha adolescência até a escrita desse livro. Mas não foi essa a história que vivi.

Por outro lado, penso que há algo no Brasil que é ainda hoje da ordem da colonialidade e que faz a gente preferir e dar mais valor ao exterior àquilo que é nosso. Me pareceu também interessante mostrar o que foi a experiência de não “sair do Brasil” mesmo depois de banido. Então é isso, meus pais ficaram in-xilados, meu pai, que tinha altíssima consciência política, depois de preso, chamou a vida inteira o Golpe de Revolução, e eu tive que decifrar esses dois vocabulários. Tive que entender o que era isso. Que gramática era aquela. Qual dicionário tinha que criar. Como é duro ter que se identificar até certo ponto com o seu agressor para sobreviver. Tenho certeza de que essa história não é só minha, e muito menos que ela se encerrou com a ditadura no Brasil.

Também era importante ver esse prisma micro, menor, não-heróico, porque em parte acho que a literatura tem a ver com isso. Vou vendo que para mim se delinea algo assim, através dos meus antepassados quero contar umas histórias menores que são histórias que ainda nos tocam, que estão lá e cá, no passado e no presente. Mas preciso fazer isso, de algum modo, a partir de um elo com uma história que me chegue afetivamente. Essa, com a minha mãe, foi decerto a encruzilhada de tudo isso. Porque foi aí também que comecei a falar com os mortos, a ouvir os mortos. E esse é um outro mistério da literatura.

 

Durante a ditadura militar, sua mãe foi presa grávida de você e submetida à violência do regime. O trauma foi calado. Sobre essa dor irreparável, Manuela D’ávila escreve: “Naqueles anos, eu pensava na mãe de Ana, nas mães de Anas, nas mulheres que foram torturadas gestando, que viram suas crianças torturadas, que tiveram suas crianças roubadas. Essas mulheres, essas filhas, nos protegeram, nos guiaram, me inspiraram a seguir.“ Como mulher, filha e mãe, como reverberou em você a descoberta da violência brutal que sua mãe sofreu?

Nunca descobri as violências que minha mãe sofreu ao longo da vida, antes da ditadura, em sua infância muito pobre, ou quando começou a trabalhar aos 11 anos, ou durante a ditadura. Todas as cenas de tortura fui buscar nos relatos da CNV, precisei dessas outras mães e mulheres, como disse a Manuela, para me aproximar da minha. Decerto não foi a experiência vivida por ela, mas essa eu não sei ao certo qual foi, e agora também não importa porque isso a literatura faz: ela dá destino. Ela não responde, talvez não mude nada, mas ela dá destino. Então agora há uma história.

Era isso que importava: criar uma história, colocar palavras ali onde estava o silêncio. Porque como dizia minha mãe eu sempre fui muito faladeira (risos). E tenho profundo amor e respeito pela palavra. E neste caso faltaram palavras. O trauma, se não foi calado, foi minimizado, o que é uma operação tipicamente brasileira, como já disse. Mas para mim, desde a minha perspectiva ou falta de perspectiva, o trauma foi um buraco. O buraco do ventre, do umbigo, do cordão umbilical por onde eu respirava no momento em que ela mais sofria. Depois que fui mãe, e nossa como eu quis ser mãe, demorou viu, não foi assim como para muitas mulheres, um acontecimento “natural”, eu vi como estava feliz na minha gravidez, com o barrigão, com o sonho de ter uma filha.

Mas também, a partir dessa experiência, não pude deixar de ver o que teria sentido a minha mãe. E sobre isso uma mãe não fala a uma filha ou a um filho, ela cala. Esse era o duro, o compreensível de que por um lado ela tenha desejado me abortar, mas ela não me abortou! Ou, por outro lado, que ela tenha se apoiado em mim para não morrer. Nos dois casos pesa.

Eu não inventei esses casos, eu li, e isso é comum, precisamos viver com isso, mães e filhas. Agora, porque é comum experimentar essas sensações sob violência não quer dizer que seja fácil não é?

 

Complementando a pergunta anterior, na sua avaliação, o que levou sua mãe a se calar pelo resto da vida em relação ao passado traumático? E, por fim, em quais circunstâncias você tomou conhecimento do que ocorrera com ela durante a ditadura?

Digamos que ela não se calou para o resto da vida. É verdade que sobre a cena que dá título ao livro ela se calou sim. Mas sobre a cena com o governador, por exemplo, não. Então essa ênfase no silêncio é parte da estrutura dramática do livro, porque, digamos, noves fora zero, o silêncio ganhou da palavra. Penso que ela se calou mais do que falou por várias razões, a começar pelo protagonismo do meu pai. Era ele o político. Ela era a mulher do político. Mas eles se conheceram na vida política estudantil. Logo, ela era altamente politizada. Era advogada criminalista. Conhecia a vida né? Depois acho que se calou porque o seu trauma estava disseminado no cotidiano da vida da mulher com os filhos pequenos, na gravidez, como falar disso? Que desejou por alguns momentos não ter o filho/a? Que sua casa foi invadida pelos militares e seus filhos pequenos viram aquilo? Ela tinha vergonha.

Esse é um outro tipo de trauma, a vergonha. Depois porque de fato, diferente do meu pai, para ela estava claro que a única forma de sobreviver no in-xílio era cindindo com o que foram antes. Ela não queria mais saber de política. Não queria mais falar disso. Não queria que meu pai se reconectasse aos antigos amigos depois da anistia. Eles eram muito diferentes nesse modo de viver as coisas. Ela quando cortava não tinha volta. Minha mãe tinha uma imensa solidez.

Com ela, começamos a falar disso no momento da anistia, e neste momento fomos nós duas que fomos pegar os arquivos do meu pai e dela no DOPS. Ele não queria. Depois, quando eu estava fora do Brasil, fazendo parte da minha tese, ela veio me ver, ficou um mês comigo. Foi o nosso grande encontro na vida. E ali eu insisti para que ela me contasse tudo (risos). Como se isso existisse.

Com o tempo, com a literatura, a gente aprende que não há como contar tudo, nem como explicar tudo. Como disse a Annie Ernaux no livro A Vergonha: “Se estou de fato começando a escrever um livro, como tenho a sensação por uma série de indícios – a necessidade de reler as linhas escritas, a impossibilidade de fazer outra coisa -, então assumi o risco de ter revelado tudo de uma vez só. Mas, na verdade, nada foi revelado, além do fato bruto”.

Tenho essa sensação com a minha mãe e com esse livro, aí está a razão de sua brevidade: o fato bruto.

 

O golpe militar de 1964 completou 60 anos em 2024. No entanto, a data não motivou amplas discussões sobre o passado histórico recente do país e mesmo o governo federal com viés de esquerda optou por calar-se. Por que a sociedade brasileira insiste em não reavaliar o passado? Por que o silêncio permanece?

Acho que parte disso fui respondendo, ou ao menos indicando ao longo da entrevista. As democracias frágeis temem o seu passado. A anistia ampla e irrestrita dificultou o caminho. O cenário recente, com o golpe contra Dilma, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro mostrou um país dividido. Dentro de um mundo cada vez mais dividido. O crescimento mundial da extrema direita faz sinal de alerta e nos deixa entre o temor e o desejo de não acender a besta. Mas de fato é pior, precisamos falar de tudo isso, precisamos sanar medos, mesmo quando não sanamos as feridas. O Brasil é bom em muitas coisas, mas não é bom em lidar com dissonância, conflito, discordância. Aqui tudo sempre tem que estar bem. Minha tese é que inventamos que a diversidade nos uniu. Mas entendemos o unir como unidade, unificação. E aí já não tem mais diversidade né? Tem essa invenção de um amálgama. Esse centrão impedindo todo e qualquer gol (risos).

E também, é claro que dedo em riste, esse mundo acusatório, persecutório, prenhe de julgamentos não ajuda, acaba caindo no outro extremo. Então o contexto é complexo.

Mas aqui também a literatura vem ajudando a fabular o que não fomos capazes de contar. A colocar palavras no que apagamos. Acho que há hoje esse movimento na literatura mundial, e isso é muito significativo, muito significativo que se faça através da escrita, porque foi justamente da escrita que foram cortados esses registros e/ou esses corpos.

 

Escrever para contar. Esse tema permeia No muro da nossa casa, que aborda segredos, interdições e o silêncio da vida íntima das mulheres. Contar pode doer, mas ajuda a colocar as coisas em novos lugares?

Sim ajuda. Não cura, mas ajuda (risos).

Acho até que No muro da nossa casa indica, insinua, inscreve, deixa ali gravado (como no muro, como um murro), mais do que propriamente conta relatos muito detalhados e íntimos. Mas sim, algumas passagens, algumas cenas. Um abraço poderia ser mais do que um abraço entre um homem bêbado e destruído e uma menina de 5 anos de calcinha? Como a violência política militar se une à violência erótica? A tortura durante a ditadura militar no Brasil não dissociou a utilização sexual e erótica do corpo da mulher da tortura. Isto é um fato histórico! Ora, há algo aí não?

Então: como as mulheres sobreviveram historicamente à sucessivas violências em seus corpos e até hoje é tão difícil falar disso? Acho que é mais difícil não só porque dói, mas porque ainda é. É isso que faz a gente patinar, meio que gaguejar. Porque dizer algo assim é revelar um incômodo que é da ordem do presente: assédio, feminicídio, estupro são fatos cotidianos. Então é como se a gente ficasse manchada ao dizer. É como a tinta do muro que não sai. No momento em que você diz uma avalanche cai sobre você. E, no entanto, devíamos só acolher, e dizer: vem para aqui. Estamos perto. Há um mundo que te protege.

É só isso que se quer quando se sobrevive a qualquer violência: queremos proteção. Mas daí vem tudo isso de novo: temos que ser fortes para dizer, fortes para aguentar a enxurrada de olhares como se tivéssemos nos tornado uma mancha no retrato limpo, temos que nos empoderar para lutar pelo que já deveria estar garantido: direitos básicos decorrentes da violência sobre o corpo da mulher. Então sim, em algum ponto dizer algo, cada uma ao seu modo, porque ninguém tem que sair exigindo nada de ninguém e muito menos sob um determinado molde, é preciso. Ainda é preciso. E a gente faz isso por todas as brechas, com as armas que temos. A escrita, nesse caso, é também uma arma. Isso já havia dito Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere, um homem, um outro livro, uma outra ditadura brasileira…

 

A maternidade fora do pedestal e o relacionamento, muitas vezes complexo, entre mães e filhas é um assunto que ganhou relevância em diversas obras literárias brasileiras contemporâneas. Como avalia esse movimento em que se destacam as mulheres?

Eu gostaria de ver as mulheres se destacando em tudo, porque acho que ainda é muito pouco do ponto de vista histórico e estatístico. Mas, sim, estamos indo.

Sobre mães e filhas, é verdade, surgem alguns romances recentes, e não só no Brasil. Eu não sei, pensei em parte que poderia ser algo geracional. Mulheres que se vêem mães no mundo de hoje, e que são requisitadas nessa função de formas muito diferentes das que foram suas mães. E isso acaba implicando numa espécie de duelo interior com o que aprendemos ser e com o que tentamos ser. Ou porque perdemos os nossos pais, ou eles adoeceram. Também aí há um outro tipo de fator geracional. Mas não sei.

É preciso dizer que tenho vivido algo desde que assumi a minha escrita literária: não consigo ser crítica e escritora ao mesmo tempo. Algo cindiu em mim. E acho bom. Não sei pensar como intelectual sobre o que escrevi ou estou escrevendo. Essa é uma pergunta que gostaria de fazer para a Beatriz Rezende, que é quem vem pensando sobre romances entre mães e filhas. Até para que eu entenda melhor.

No que diz respeito à escrita de No muro da nossa casa, mesmo que fora do pedestal, mesmo em preto e branco, e já não mais em tinta vermelha, a gente sempre é, em algum lugar, uma menina, quando olhamos para as nossas mães. Aí só queremos amar e sermos amadas. Eu espero que minha mãe tenha sentido isso: o nosso amor. Porque eu senti!

 

Felipe Maciel é jornalista e

 

 

 

 

 

 

 

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