Da peste, do  lirismo, da melancolia: a tísica e os pulmões ardentes, por Margareth Dalcolmo

Da peste, do  lirismo, da melancolia: a tísica e os pulmões ardentes
Margareth Dalcolmo  
“Jeovah te ferirá de tísica e de febre, e de inflamação e de calor ardente”
Deuteronômio
Cap. 28, verso 22

Estudos genômicos recentes, em esqueletos e múmias originárias do Vale dos Reis, e posteriormente da região Andina, revelam que a tuberculose, uma doença infecto contagiosa, causada por uma bactéria e transmitida de pessoa a pessoa, acompanha o homem há milênios, e já existia antes da chegada espanhola às Américas. Lesões ósseas compatíveis com a doença têm sido encontradas em diferentes regiões do globo, datando o mais antigo, de cerca de 6.000 anos. A existência da enfermidade na América pré-colombiana foi tema controverso, até que a descoberta de uma múmia de uma criança inca, na Província de Nazca, pela datação do C14, era do ano 700 DC, e revelou a presença do patógeno em vários órgãos.
Os trabalhos originais foram, sem dúvida, os dos gregos, contemporâneos de Péricles, fundamentalmente Hipócrates, que em sua terra, a Ilha de Cós, criou o termo phtisis, ao descrever um quadro sindrômico, as lesões, a disseminação da doença, sendo capaz de apontar prognósticos. Phtisis mais logos, pode-se considerar Hipócrates o pai da tisiologia.
Phtisis, de Hipócrates, em hebraico já a denominaram “shachefet”; chùan-che na China antiga, significando transmissão pelo cadáver, “consumption”, designação que perdurou por muito tempo, febre de abatimento, peste branca, dama branca, febre hética, velha senhora, fraqueza do peito, fimatose, tísica, até a denominação nosológica definitiva, tuberculose. Pectário, fraco do pulmão, e fimatosos os doentes, a consumpção povoou o imaginário social intensamente. Cantado, escrito, em prosa e verso o quadro de sintomas como febre, tosse, emagrecimento, dispnéia e hemoptise, por sua cronicidade inspirou a criação humana nos mais variados domínios.
A enumeração de intelectuais, artistas, criadores, que foram consumidos pelo bacilo de Koch encheria páginas. A tísica reinou soberana nos hagiológios com Santa Terezinha de Jesus, São Francisco de Assis, São Francisco de Borja, São Luiz Gonzaga, São Leopoldo e o recém beatificado José de Anchieta, e por que não citar o primeiro dos jesuítas Manuel da Nóbrega, que ao desenvolver sua missão evangelizadora disseminou o Bacilo de Koch entre os povos indígenas. Anchieta, em 1570, descreve os momentos finais ‘’permaneceu sempre achacado, com alternativas de melhoras e pioras; pelo mês de outubro voltaram-lhe as hemoptises; E com lágrimas nos disse “bendito sejais para sempre, que morro na Companhia, e lançando um pouco de sangue, com muita quietação, deu seu espírito ao Criador, no dia de São Lucas”.[1]
Nos palcos com Sarah Benhardt, Eleonora Duse, Clementina Cazzola, Vivian Leigh, grandes músicos como Chopin, Mozart, Pergolesi, Bellini, Rossini, Paganini, Grieg, Catalani; nos ateliês de pintura e escultura com Wateau, Rosales, David, Rafael, Drake; nos laboratórios de pesquisa, com o grande Laennec, que entendera que a febre dos corpos confundia-se com o fogo das paixões e a exacerbação dos desejos, e as aventuras amorosas intensas como produto e consequência da tísica  (Bertolli Filho); somam-se ainda, Graham Bell, Bichat, anatomista e cirurgião, baluarte da narrativa analítica no espírito do Século das Luzes, que lutou contra a teoria dos humores e estabelece a origem das doenças nos tecidos… Entre os reformadores religiosos, com Calvino, John Wesley.
A vasta lista de políticos, atravessando séculos, inclui Simon Bolívar, que passou grande parte da vida apresentando sinais e sintomas e faleceu de tuberculose. Grotescamente teve seu corpo exumado por determinação do comandante Hugo Chávez com a ideia persecutória de que teria sido envenenado, o que foi formalmente negado pelos exames genéticos feitos em sua ossada. Bolívar vivera com e morrera de tuberculose. Antônio Salazar e Alexander Kerensky foram igualmente portadores da doença.
Nelson Mandela e Desmond Tutu, ambos vítimas da tísica, o primeiro pelas condições insalubres de prisão, e o segundo contaminado em sua juventude, em país de alta prevalência, a África do Sul. Arautos da luta contra a doença, desde o advento da pandemia do vírus hiv e aids.
A corte portuguesa não fora indene à doença. Dom Pedro I (IV de Portugal) morria no palácio de Queluz, onde nascera, em 1834 dizimado pela doença. As dificuldades passadas nos campos de batalha em Portugal, o frio, o haviam enfraquecido. Abalada com a morte do marido, Dona Amélia se dedica à educação da única filha Dona Maria Amélia, que nascera em Paris, quando estavam no exílio, porém esta falece de tuberculose aos 22 anos, na Ilha da Madeira, para onde haviam partido na tentativa de buscar a cura para ela. Ainda existe em Funchal, o hospital por ela fundado em 1853, destinado ao tratamento da tuberculose, hoje instituição que serve aos moradores da ilha.
A tuberculose no Brasil
Começo com Bandeira. Manuel Bandeira, o poeta tísico, em sua própria designação, viveu até os 82 anos. Fez parte da estatística estimada no início do século passado: 50% morriam, 25% permaneciam doentes crônicos e 25% se curavam espontaneamente… Acometido em tenra idade, a longa enfermidade lhe deixara sequelas indeléveis. O Professor Aloysio de Paula, grande mestre tisiologista que o assistira por longos anos, descreveu, em conferência na Academia Nacional de Medicina, o que chamara de “doença da cura”, ou seja, a tuberculose se fora mas deixara um pulmão mutilado e fora de função.
 “Sou bem nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.”    
Assim escreveu Bandeira.
Em carta a Mario de Andrade, de 1924, Bandeira diz: “hoje sou ironicamente, sarcasticamente tísico”. Nesse mesmo espirito irônico, trabalha a amargura e transpõe para versos, em “Pneumotórax” (Libertinagem, 1930)  o veredito de seu médico no Sanatório de Clavadel, na Suíça:
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
–  diga trinta e três
– Trinta e três, trinta e três, trinta e três …
– Respire…
–  O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o direito infiltrado.
– Então doutor, não é possível tentar o pneumotórax ?
– Não, a única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
Ribeiro Couto, diplomata e acadêmico, teve a primeira hemoptise aos 23 anos; conhecera Bandeira no Rio e se reencontraram na icônica Vila Abernésia, em Campos do Jordão, que funcionou como um local intermediário entre os internados e os pensionistas, onde passa dois anos. Ao receber Bandeira na ABL, diz: “Fácil seria provar que a tuberculose explica a poesia de Manuel Bandeira; mas não apenas a tuberculose como enfermidade e sim como um conjunto de condições de vida a que ela o obrigou” e ainda,“ as variações de saúde e de atmosfera psicológica são a carte routière de suas peregrinações físicas e morais”. No poema “Canção a Manuel Bandeira”, Couto verseja:
Já fui sacudido, forte,
De bom aspecto, sadio,
Como os rapazes do esporte.
Hoje sou lívido e esguio
Quem me vê pensa na morte.
Mário de Andrade escreveu, atestando a incidência da doença entre outros poetas: “Entre os cacoetes históricos que organizaram o destino do homem romântico, um dos mais curiosos foi o de morrer na mocidade. Morria-se jovem porque isso era triste e sobretudo, lamentável. Mais lamentável que penoso…”. Os poetas Álvares de Azevedo e Cruz e Souza são exemplo dessas mortes precocíssimas.
Emily Dickinson, exemplo clássico da melancolia relacionada à tísica, revela nesses versos:
Eu me escondi em minha flor
Que em teu peito desfalecia,
Sem o saber me consumias –
E o mais, só os anjos o dirão
Eu me escondi em minha flor
que em tua jarra fenecia
Sem perceber por mim sentias
Uma quase solidão.
Ferreira Gullar, internado no Sanatório de Correias aos 21 anos de idade para tratar a tuberculose, descreve, em “A luta Corporal”, publicado em 1954, com agudeza nada melancólica, o sofrimento da doença:  “O Inferno: se tivesse a certeza de que ao fim destas palavras meu corpo rolasse fulminado, eu faria delas o que elas devem ser, eu as conduziria a sua última ignição, eu concluiria o ciclo de seu tempo, levaria ao fim o impulso inicial estagnado nesta aridez utilitária em cujo púlcaro as forças se destroem. Ou não faria. Não faria: uma vileza inata a meu ser trai em seu fulcro todo o movimento para fora de mim: porque esse tempo é um tempo meu, eu sou a fome e o alimento de meu cansaço: e eu sou esse cansaço comendo o meu peito…. Sou a força contra essa imobilidade e o fogo obscuro minando com sua língua a fonte dessa força. Estamos no reino da palavra, e tudo o que aqui sopra é verbo, e uma solidão irremissível, Inferno.”
Já Euclides da Cunha, definido como homem trágico à vera, seria exemplo paradigmático de epos e pathos, o rigor, o brilho, o texto complexo na forma ao qual se rende o leitor pela pura beleza do conteúdo, explica o comportamento ora melancólico, ora violento, que irrompe de sua natureza. Em sua vasta correspondência, escreve ao pai em 1883, num gesto de sublimação do que deveriam ser seus sintomas e sinais da doença: “Meu pai, eu sinto o maior abatimento – corolário inevitável de preocupações  trabalhos que tenho tido – peço, pois para desculpar o desânimo que transpira desta carta”. Sofria de tosse insistente e dizia levar uma vida miserável, sem higiene ou alimentação regular. O historiador e escritor Carlos Dante de Moraes, em artigo da Revista Brasileira, de 1958, descreve o comportamento do escritor: “com a tuberculose roendo-lhe os pulmões, enquanto a vontade, buscando jugular os sentimentos, criava-lhe uma conduta cada vez mais neurótica, de alarmes súbitos, apatias, interrogações angustiosas, silêncios opressivos, impulsos desabridos“.
A tragédia estava dentro dele mesmo, na sua existência dilacerada, e as circunstâncias  o iam conduzindo passo a passo para a sua consumação.   Não fora pela morte trágica, não estaria incorrendo em erro prognóstico se previsse a morte de Euclides pelo avanço da tuberculose.
Dinah Silveira de Queiroz perdera a avó e mãe, que mal conhecera, de tuberculose. A mãe fora para a Europa para tratar-se com o Dr. Forlanini, o inventor do pneumotórax. Seu primeiro livro “Floradas na Serra”, em estilo sóbrio e feminino, relata a chegada e a permanência no microcosmo sanatorial. Lançado em 1939, teve sua edição esgotada em pouco mais de 20 dias.
Em seu livro de memórias “Minha guerra alheia”, a escritora Marina Colasanti narra sua infância na Itália:  “quando foi que adoeci ? Certamente na primavera porque meu irmão faria a primeira comunhão, e naquele tempo era comum realizá-las nas proximidades da Páscoa…. eu me vi impedida por um prenúncio de tantas pneumonias que teria ao longo da vida . Era uma ameaça, no mundo anterior aos antibióticos, em que o alastrar da tuberculose bastou para apavorar meus pais. (…) um amigo de meu pai, sabedor de minha doença, oferecera-se para me hospedar, na fronteira de Como com a Suíça; nada como o ar da montanha para recuperar pulmões enfraquecidos. Respirar era tudo que eu tinha que fazer. Respirar era tudo o que havia para fazer”.
O universo sanatorial de Roland Barthes
Roland Barthes, um das personalidades que incarna o “physique de rôle“ da tísica, trabalha assiduamente para seu baccalauréat de filosofia, com o grego de sua escolha, quando a dois meses da prova, uma súbita hemoptise, “trágica, catastrófica, uma falha estrutural que modifica a vida“, em suas próprias palavras: “Cet incident, une cassure, a cassé ma vocation” [“Este incidente, uma interrupção, destruiu minha vocação”]. Passa doze anos entre sanatórios nos Pirineus, no Midi, em Bayonne, e a exemplo de outros, faz desse longo, inexorável tempo, em que cada dia é o prenúncio da morte – aqui caberia o enunciado de Manuel Bandeira “ eu faço versos como quem morre”, nada literatura para o poeta, cada poema é uma despedida, cada dia é a véspera da morte – Barthes, sob o isolamento, o medo do contágio, no corpo prisioneiro, vive o verdadeiro começo de seus anos estruturalistas. Sua reflexão do momento se inspira no “O nascimento da clínica”, obra seminal que Foucault publica nesses mesmos anos. Descreve para si o fato mórbido, ou a forma sob a qual se manifesta a doença, com a distinção entre sintomas e sinais, a percepção do médico, o ato de cuidar que define como o contrário do processo vertiginoso de que se reveste a enfermidade, sua combinação de sinais, e morte, a tosse, ah, essa mesma tosse que aterrorizou Hans Castorp, o herói de “A montanha mágica”, ao chegar ao Sanatório de Bergohf, em Davos.
Deitado todo o dia, como prescrito na norma sanatorial, Barthes lê Balzac, Mauriac, Giraudoux, e concebe um novo romance, que abandona pela força da doença. Atento aos menores sintomas, quase obsessivo, seu espirito analítico reflete sobre a interpretação de cada sinal. Quarenta anos depois, a semiótica da ciência da linguagem de Barthes faz a diferença entre a semiologia médica, como a ciência fundamental  que trata dos sinais de doença.
Barthes, como Castorp, plana entre dois mundos, o da melancolia e amargura e o frenesi intelectual fertilíssimo, a viver um rito de passagem. Todas as experiências do sanatório são superponíveis, cada frase do romance de Thomas Mann pode se aplicar à vivência de Barthes: a tuberculose cria uma comunidade, a pessoa entra em uma lógica soi disant trans-individual; e, ao mesmo tempo, adquire uma identidade que nesse universo tão peculiar se revela única. Barthes escreve: “Doença sem dor, incoerente, característica, sem odores, sem ‘isso’: não tem outros vestígios, senão o tempo, interminável, e o tabu social do contágio; quanto ao resto, estava-se doente ou curado, abstratamente, por mera decisão do médico; e enquanto outras doenças individualiza, a tuberculose vos projeta numa pequena sociedade etnográfica, que se assemelha ao povoado, o convento, o falanstério: ritos  vivências, proteções”.
Esse universo sanatorial, tão particular no que condensa de humano, com seus olhares, odores, é exaustivamente descrito em muitos romances, e em muitos registros biográficos, entre eles, os do acadêmico Alberto da Costa e Silva, que em seu “Invenção do desenho ficções da memória”, discorre sobre  os três anos passados em Campos do Jordão, e os define, hoje, com sua sabedoria, como  “anos de serenidade”. “O médico me dissera ‘seu caso não é grave, descoberto logo no início, em pouco tempo estará de volta à vida normal, por enquanto paciência. Repouso absoluto. Nada de leitura, apenas um pouco de música’. Não acreditei no médico. Deitado o dia todo, sabendo-me à espera da morte, comecei a sentir-me, mais do que tranquilo, feliz”. Costa e Silva fez parte dos primeiros pacientes tratados com estreptomicina e PAS, os pioneiros medicamentos anti-tuberculose descobertos após o fim da II Guerra.
Dostoievski e Kafka
No fim dos anos 1870, Dostoievski, cuja mãe morrera de tísica, bem como a ama que lhe criara,  depois também a sua primeira mulher, e sua abnegada estenógrafa Ana Grigorievna, tem sua obra marcada por personagens mórbidos pela enfermidade, ora febris, ora estiolando-se entre a tosse incoercível e as hemoptises. Apenas para dar um exemplo, entre tantos, na criação dessa complexa e poderosa personalidade literária, em “Crime e castigo”, aparece um exemplar típico da tuberculose, que por si só enche a obra do autor e cuja descrição do delírio tísico é verdadeira obra-prima. Catarina Ivanovna, tísica avançada, viúva do personagem Marmeladov, sente-se desamparada ao extremo e a miséria e a doença somadas lhe perturbam a psique; tomada de uma excitação febril, insta os filhos a mostrarem em público suas habilidades coreográficas. Sua morte, agonia descrita magistralmente até o último suspiro, revela a familiaridade do autor com a doença e seu sofrimento, uma vez que essa roupagem do personagem reproduz o triste fim de sua mulher Maria Issaev. O próprio autor, figura frágil, poder-se-ia dizer que há entre sua vida real e o romance literário uma assombrosa semelhança. O seu melhor romance seria, portanto, a própria vida vivida e sentida, ao limite, até a sua religiosidade, sempre exacerbada. Deus e a dor estão em toda a sua obra.
Franz Kafka já publicara “Metamorfose”, “Na colônia penal”, e iniciara “O Processo”, durante os anos finais da Primeira Guerra Mundial, quando, em 1917, apresenta vários episódios de hemoptise e se refugia em casa de sua irmã, em Zurau, na  Boêmia. Em carta à irmã Ottla, de 29 de agosto escreve “Eis que por cerca de três semanas, durante a noite, tenho jorros de sangue que vem dos pulmões. Eram 4 da manhã, me levanto e me surpreendo com ua volume na boca, escarro, e acendo a luz, é estranho, c’est um ‘paté de sang’. Então que tudo começa. Essa fonte que me brotava da garganta e que eu quis crer que não pararia mais ... Como eu poderia sustá-la se não houvera sido eu a abri-la?  Levantei-me, fiz a volta do quarto, fui à janela, olhei o exterior, voltei sobre meus passos – sempre o sangue, e finalmente ele para, e eu durmo melhor do que há muito não conseguira. É a tísica…. é o maior combate que devo enfrentar, ou mais exatamente que me foi dado, … devo dizer que quero uma vitória com essas perdas de sangue, que eu diria suportáveis, nessa minha história privada do mundo, uma coisa qualquer de napoleônico. Parece agora que devo perder o combate dessa maneira!”.
Em 1924, num Sanatório perto de Viena, Kafka agoniza, dilacerado pela doença, que nele provocara lesões graves em todo o trato respiratório, comprometendo a fala e a deglutição. Sua aparência física materializava uma agonia na qual se tornava quase impossível encontrar a esperança de vencer a morte. Aos 41 anos, kafkianamente, Kafka morria de fome, num incrível esforço para revisar as provas tipográficas de seu texto “Um artista da fome”. Em agonia, pede ao seu médico: “Mate-me, senão você é um assassino”. Finalmente, numa terça-feira, 3 de junho, ao meio-dia, Kafka morre.
Nossos poetas enfermos
Casemiro de Abreu, morto no verdor dos anos, em Indaiaçu, distrito de Friburgo, envia seu poema “O leito”, dedicado a Álvares de Azevedo, também doente tísico, por meio de Machado de Assis, a quem se dirigia como Machadinho, como o chamavam os amigos. “Machadinho, por favor entregares este livro a Dona Gabriela e dá-lhe as melhores desculpas de não ir oferecer-lho pessoalmente. Continuo bastante doente e parto para Nova Fribrugo. Adeus, dá-te o abraço, teu Casimiro”.
Sobre ele, Machado de Assis escreve em 1861, “falei de esperanças abertas em flor; falarei de esperanças, mortas também em flor. Faz um ano que um poeta de verdadeiro talento baixou à sepultura. Casimiro, tangendo a lira, que a musa apenas lhe havia dado. A sua curta vida foi um hino que se interrompeu no melhor da melodia… Cantando diante da sepultura de um colega, pronunciou esta sentida e profética estrofe:
Descansa! Se no céu há bem mais puro,
De certo gazarás nessa ventura
De justo a placidez!
Se há doces sonhos no viver celeste,
Dorme tranquilo à sombra do cipreste…
–  Não tarde talvez a minha vez? 
“Ironia e piedade” é a obra seminal de Olavo Bilac. Filho de médico, profissão que gostaria de ter exercido, ele publica neste livro  o texto “A tuberculose”: “Qual de nós, já tendo chegado à idade madura, não poderá dizer o mesmo (a propósito de um poema sobre o tema) com a mesma, inconsolável melancolia? O Rio de Janeiro é a cidade onde se morre cedo”. Bilac chama a doença de ‘a voraz’, ‘a pérfida’, ‘a infame’…  E segue em sua crônica, com a retórica parnasiana:  “E todas as idades lhe servem, e todas as carnes são agradáveis a seu paladar, carnes tenras de crianças, como as ressequidas de valetudinários. E como o cupim insaciável que tanto come as madeiras baratas como os fidalgos cernes de luxo, a tuberculose chupa a vida dos pobres e dos ricos, mina a existência dos banqueiros e a dos pés-no-chão.”
Parnasiano, até a sua causa mortis o é: “Pneumococia impenitente”, seguramente sequelas da doença de juventude.
Castro Alves, filho de médico e professor na Bahia, precoce talento no versejar, considerado poeta social, sensível às ideias liberais do século XIX, devotou-se apaixonadamente à causa abolicionista. Tísico desde os dezessete anos, sua saúde já se ressentira de hemoptises, quando escreveu “Mocidade e morte”, cujo título original seria “O tísico”, e ficou indelevelmente comprometida. Morreu aos 24 anos, deixando inacabado o poema “Os escravos”, o mais ambicioso a que se propusera.
Gonçalves Dias, embora morto em naufrágio nas costas do Maranhão, quando retornava da Europa, para onde seguira em busca de tratamento, já agonizava acometido de grave tuberculose. O grande representante do romantismo brasileiro, lírico e indianista. José de Alencar, pai da trilogia indianista mais conhecida do romantismo brasileiro, com ‘Iracema”, “O Guarani” e “Ubirajara”, é acometido pela doença na terceira década, viaja para a Europa em 1877, para tentar um tratamento médico, porém não teve sucesso. Falece no Rio de Janeiro no mesmo ano, aos 48 anos, vitimado pela tuberculose.
Outro caso é do teatrólogo Martins Pena, que imprimiu ao teatro brasileiro um perfil nacional no início do século XIX. Abraçara a carreira pública, refugium dolorosum de muitos homens de letra e talentos no Brasil, doente de tuberculose, quando trabalhava em Londres como adido, fugindo do frio, partiu para o Brasil, porém faleceu em Lisboa, em trânsito, aos  33 anos.
Afonso Arinos, em suas memórias “A alma do tempo”, relata em diversos momentos, com uma precisão semiológica, os pródromos, o diagnóstico e sobretudo o estigma, em sua trajetória entre o sanatório em Belo Horizonte e posteriormente em Montana, na Suíça. Levando em conta sua longevidade (morreu com quase 85 anos), e trajetória cívica extraordinária, podemos dizer que ele também faz parte da estatística de cura. “No quarto já escuro, meti meu pijama, deitei-me, acendi a lâmpada de cabeceira. Súbito, veio a tosse, o gosto de ferro, a dor no peito, o sangue, vivo, no lenço. Voltei-me para a parede a fim de que o meu amigo não visse a minha angústia, a minha humilhação”. Escritos de Afonso Arinos, que morreu em 1990, continuam valiosos: “Naquele tempo a ideia da tuberculose corria aliada à de morte, pelo menos à de invalidez por toda a vida. Os resíduos da literatura romântica, nimbando-a embora com uma espiritualidade triste, tinham feito da tísica, mais do que uma doença do corpo, mais do que a peste branca ou o flagelo social, da sinonímia terrorista, a enfermidade da alma, o selo indelével dos destinos frustrados. Sífilis e tuberculose, erma então, os espantalhos terríveis da mocidade, no Brasil. Uma doença vergonhosa, mais do corpo, a outra, destino doloroso, mais da alma.”
Nelson Rodrigues e a montanha trágica 
A magistral biografia de Nelson por Ruy Castro, “O anjo pornográfico”, narra a longa trajetória do jornalista, dramaturgo e escritor por sanatórios, iniciada em 1934, quando sua irmã Stella, médica, pede a um colega que o examine. A ausculta e o “diga 33”, revelou o que era terrível à época: sinais de tuberculose pulmonar, ou a morte branca, nome que Nelson acharia “nupcial, voluptuoso, apavorante”, ainda na era pré-antibióticos, com altíssimo índice de letalidade no Brasil. Pobre, Nelson mal pudera pagar as radiografias. Como comum à época, nas febres de origem indeterminada, extraíram-lhe todos os dentes – e a febre continuava.  A solução, confirmado o diagnóstico, era, como numa paródia popular de xarope da época: Tosse, bronquite, rouquidão? Campos do Jordão!
O Professor Aluísio de Paula, ele próprio ex-tísico, como muitos outros tisiologistas célebres, conseguiu garantir à Nelson Rodrigues uma internação gratuita no Sanatório Popular em Campos do Jordão. Nelson descreve com agudeza quase cínica o que seria a vida sanatorial. Após a febre coletiva vespertina, a cacofonia da tosse. Recordista de pneumotórax, em diversos momentos das cinco recaídas nos anos seguintes, até o advento da estreptomicina em 1949, a tísica fora sua companheira por quinze anos, e de par com o tabagismo, lhe deixara sequelas perenes .
Jofre, o irmão mais querido e que parecia o mais atlético, falecera pela doença, aos 21 anos de idade, no Sanatório de Correias. Em 1945, já consagrado com “Vestido de noiva”, o monstro que julgara morto o ataca de novo, e Nelson tem nova recaída. A doença insistia em puni-lo por pecados ancestrais, nas palavras de Ruy Castro. Sofre de novo  o  pneumotórax e retorna a Campos de Jordão. Ao drama rodriguiano, e a comprovar a contagiosidade,  e que o ato de separar pratos, copos e talheres não impediria a transmissão da doença, Nelson sofre uma vez mais, uma vez que acaba por contaminar seu filho Jofre. Este, no entanto, pode ser tratado com dezenas de aplicações de estreptomicina, já nos anos 50.
Não apenas no meio literário, mas  também nas artes, a doença marcou a vida de muitos. A pintora Djanira,nascida em 1914 e cuja infância e adolescência se caracterizam por uma vida simples e pelo trabalho no campo, é internada aos 23 anos em São José dos Campos, onde passa dois anos. Curada, faleceu em maio de 1979 anos, aos 64 anos, vida longa para a época. Lasar Segall, Ismael Nery e Pancetti foram outros grandes artistas  internados no mesmo sanatório em Campos de Jordão.
Noel Rosa
Nássara, o grande cartunista, e Almirante, compositor, cantor e radialista, que escreveram sobre Noel Rosa, o definem como o maior poeta popular deste país. Pequeno, feio e franzino, com sequela de parto à fórceps na face, que a ortopedia da época não tivera meios de restaurar, primogênito de pais que o queriam médico e doutor, Noel cursa até o segundo ano da faculdade, mas, com sua capacidade de versejar, o chamado do samba é irresistível. A boemia impenitente e o álcool minaram-lhe a imunidade e a tuberculose, fazendo todo o sentido epidemiológico da época, lhe captura. Do sanatório em Belo Horizonte, para onde é enviado, escreve para o médico que lhe cuidara no Rio de Janeiro, Dr. Edgar Mello – carta que anos mais tarde seria musicada pelo sambista João Nogueira:
Já apresento melhora, pois levanto muito cedo, E deitar às nove horas para mim é um brinquedo.
A injeção me tortura, e muito medo me mete, mas… minha temperatura, não passa de trinta e sete…
Nessas balanças mineiras, de variados estilos, trepei de várias maneiras, e pesei cinquenta quilos!
Deu resultado comum, o meu exame de urina. Meu sangue – noventa e um por cento de hemoglobina.
Creio que fiz muito mal, em desprezar o cigarro, pois não há material para o meu exame do escarro.
Até agora só isso, para o bem dos meus pulmões, eu nem brincando desisto de seguir as instruções.
Que o meu amigo Edgar, arranque desse papel, o abraço que vai mandar, o seu amigo Noel “ .
Noel Rosa morreu de hemoptise fulminante em 1937, aos 26 anos de idade.
O progresso médico se encontra na confluência de dois tipos de itinerários intelectuais. De um lado a racionalidade, a lógica. Essa ciência médica retira da psicopatologia, o conhecimento das funções normais, e o compreender da doença. A tuberculose não é a última das pestes, como o quiseram alguns autores da metade do século passado, assim entendida com as epidemias que assolam a humanidade.
Comecei com Hipócrates, concluo com o poeta John Keats, a quem presto homenagem cada vez que em Roma visito a casa onde morreu, na escalinata da Piazza de Espanha, aos 27 anos de idade, de hemoptise por tuberculose e o seu verso mais intenso e belo, que traz esperança   “A thing of beauty is a joy forever”. Sobre ele,  Manuel Bandeira fez uma quadra:
A thing of beauty is a joy
forever, Keats exprimiu.
Mas ele próprio sentiu,
quanto essa alegria dói…
Personagens de nosso imaginário, pessoas e personas únicas, poderia dizer são como os meteoros, nos perguntamos sempre se eles realmente passaram  ou existiram. Tão antiga quanto a humanidade, é de se pensar o quão iníquo é haver  9 milhões de casos no mundo, mais de 70 mil no Brasil, 10 mil no Rio de Janeiro, 4.500 mortes a cada ano, no país.  Doença urbana, benigna, diagnosticável e curável virtualmente em sua vasta maioria, é perverso, sem retórica, sua permanência entre nós. Deixou de ser peste. Perdeu o lirismo a velha tísica, e a aids roubou-lhe a iconografia nas últimas três décadas.
O nascimento da medicina foi clínico, seu desenvolvimento semiológico, seu período de glória foi e é científico, seu futuro será necessariamente humano e social. Entretanto essa medicina, fundamentalmente do olhar o outro, só evoluirá sobre esse marco se permanecer fiel à grandeza das descobertas dos dois últimos séculos: o rigor metodológico, o espírito crítico permanente, a recusa de dogmas e ideias pré-concebidas, a consideração do demonstrado pelo experimento científico, e hoje, como ontem, essa exigência permanece.
_______
Margareth Dalcolmo é pneumologista pesquisadora da Fiocruz, Rio de Janeiro. Doutora em medicina pela Universidade Federal de São Paulo.
Este texto tem como origem conferência apresentada na Academia Brasileira de Letras, em 2018, parte do Ciclo Medicina e Literatura.

[1] O professor Jayme Santos neves, meu mestre e grande tisiologista capixaba, em sua obra “A outra história da Companhia de Jesus”, traz memoráveis registros dessas trajetórias.

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