Nos queremos (TODAS) vivas
Lourdes Maria Bandeira
O título foi retirado de um vídeo que circula na internet realizado pelas mulheres espanholas denunciando os crimes de feminicídio lá ocorridos e nos demais países europeus, nos quais as mulheres estão vivendo sob a situação de isolamento social em tempos da pandemia do coronaviros. No vídeo são denunciadas as alarmantes situações de violência doméstica contra as mulheres, e, ao mesmo tempo, elas reivindicam ações e políticas públicas de combate por parte dos governos. A frase traduz absolutamente uma verdade incontestável que todas nós mulheres queremos viver! No entanto, a realidade aqui e além mar é bem outra. Todos os dias somos bombardeadas pelas diversas mídias nacionais e internacionais que denunciam que o isolamento social é o ‘causador’ do aumento das situações e dos relatos de violência contra as mulheres. São denúncias de violência física, sexual, psicológica, patrimonial e moral chegando até a prática de crimes de feminicídio que se multiplicam em escala geométrica, nos cinco continentes. E o mais chocante é que esses índices de violências contra as mulheres aumentaram transversamente, no mundo, em torno de 30%, depois da irrumpção da pandemia da Covid-19.[1]
É ainda mais dramático o fato de que estes números ainda não ofereçam a possibilidade de compreender a extensão e a complexidade do fenômeno, como por exemplo, a condição étnica/racial, de classe e de territorialidade das mulheres vítimas de violência. A redução do problema a estatísticas, isto é, ao quantitativo da faixa etária das pessoas mortas (68% de homens, 32% de mulheres, cuja faixa etária vai de 30 até mais de 80 anos, tendo maior incidência a partir dos 70 anos, em ambos os sexos)[2]. Reduzir a números a morte, evidencia o objetivo da “prioridade política” das ações que vem sendo tomadas neste campo, como se fossem parte de uma disputa no jogo político, mais do que a de preservação da vida.
Esta situação de violência durante o confinamento é denunciada em quase todos os países pelos sites internacionais: Estados Unidos, China, Espanha, França, Itália, Índia, Tunísia, México, Brasil, Argentina, entre outros, o que torna o fenômeno um fato comum a todos, independentemente de suas diferenças civilizatórias. As denúncias são alarmantes, se espalham em manchetes: “Assassinatos de mulheres em casa dobram em SP durante quarentena por coronavírus”;[3] “Coronavirus: en Chine, les violences conjugales en hausse pendant le confinemenr”;[4] “Les signalements liés aux violences contre les femmes explosent un peu partout dans le monde”;[5] “Confinement: l’augmentation des violences domestiques s’observe partout dans le monde”.[6]
E o que dizem as autoridades mundiais? Que soluções propõem? Antonio Guterres, Secretário-geral das Nações Unidas, lançou o seguinte alerta sobre este fenômeno global:
“Peço a todos os governos que façam da prevenção da violência doméstica uma prioridade em seus planos de combater o Covid-19 (…). Vimos um aumento horrível na violência doméstica. Em alguns países, o número de mulheres ligando para o número de apoio dobrou.” [7]
Por sua vez, a ONU julga que, à medida que se prolongue o tempo do confinamento da população é provável que a violência contra as mulheres assuma formas mais complexas. A exposição ao coronavírus usado como ameaça poderá acirrar as práticas de violência podendo chegar a consequências imprevisíveis como mulheres expulsas do lar, sem ter lugar para onde irem, espancamentos e assassinatos.
Vale dizer que senão todos, a maioria das/os especialistas converge na atribuição do elemento causal desta tragédia em relação à situação de crise que estamos vivendo atualmente: a coabitação forçada nos domicílios, que acentua os conflitos familiares, uma vez que obriga a mulher a compartilhar de forma ininterrupta os mesmos espaços com marido, companheiro, filhos e idosos. Portanto, claramente, o confinamento agrava a violência já presente ou facilita exercê-la, como também possibilita a identificação de violências por parte das vítimas que ainda não haviam se dado conta do problema pelo qual estavam passando. Assim, sem discordar do argumento de que o confinamento agrava a violência já presente no convívio familiar, porém buscando contribuir com o debate sobre esta relação perversa, gostaria de trazer outros elementos para esta discussão.
Quais são os impactos do isolamento social provocado pela pandemia Covid-19 sobre as desigualdades entre mulheres e homens?
O impacto do confinamento sobre as desigualdades já existentes entre mulheres e homens ocorre ao quadrado: 1) as desigualdades remetem à divisão sexual do trabalho (d.s.t.) no interior das famílias em relação ao uso do tempo de cada um dos seus membros; 2) caracterizam as profundas e estruturais “desigualdades” e “diferenças” de “classe social”, categoria que, embora em “desuso”, é ainda a que configura e caracteriza melhor a situação socioeconômica, educacional e cultural de mais da metade da população brasileira, com predomínio sobre o segmento feminino. Ocorre, historicamente, desde as origens da formação do estado brasileiro.
No que diz respeito à divisão sexual do trabalho, isto é, o uso do tempo por homens e por mulheres, assim como a distribuição de tarefas no âmbito familiar, as diferenças aparecem com força total. Se antes estavam cobertas pelas sombras de um cotidiano mais confortável, até mesmo com a presença da empregada doméstica, as exigências de trabalho doméstico agora impõem às mulheres, uma vez confinadas em casa, maior responsabilidade, maior carga de trabalho, além da possibilidade de perceberem e questionarem essas desigualdades. Quanto tempo os homens, que permanecem no isolamento, vem se dedicando às tarefas domésticas e educacionais, no caso da presença de filhos pequenos? Como ocorre a frequência e equidade na distribuição das tarefas e lidas domésticas entre os casais? O rei ficou nu! Sem dúvida, constam-se que há, além das diferenças visíveis, cobranças de responsabilidades que, com certeza, podem causar tensões, conflitos, brigas e discussões, cada vez mais acirradas, culminando em episódios de violência, que, sabemos, nesse período excepcional de confinamento, acabam explodindo.
Esta situação não é novidade. Ao contrário: a desigual e persistente divisão sexual do trabalho sempre existiu, embora, na maioria das vezes, os conflitos estivessem invisíveis, “diluídos” na rotina cotidiana. Verifica-se agora que, em situações de “convívio forçado ou imposto”, as expressividades de violências diversas emergem com potencialidades incontroláveis atingindo a carga mental, física e sexual das mulheres. No entanto, as desigualdades podem se apresentar menos severas em segmentos sociais da “classe média”. Estes, por sua vez, dispõem de mais recursos econômicos, de maior espaço físico, salário ou dinheiro assegurado na conta bancária para compra de alimentos, a segurança de ter plano de saúde, além da possibilidade de contarem com aspectos de entretenimento, uma vez que possuem a parafernália de acesso às ofertas de lazer e cultura na internet e canais a cabo. Ademais, não se deve confundir as situações de conflitos conjugais e violência nas relações entre casais. O confinamento pode originar sentimentos de ansiedade, raiva e desentendimentos entre os membros de um casal, mas disso não necessariamente surge uma situação de violência.
Vemos, assim, que certas condições materiais e culturais podem “amenizar” situações de animosidade, de conflitos e de violência. Porém, o longo prazo do isolamento nem sempre garante que as mulheres pertencentes a a segmentos médios e mais aquinhoados enham garantia de segurança em relação a agressões. Mas e certo que essas mulheres, com mais conhecimento e autonomia, mesmo no caso de enfrentarem o medo e a insegurança, dispõem de recursos e conseguem denunciar e até romper com as situações da violência doméstica.
Por sua vez, em outro contexto de ‘classe social’, raça/etnia, em que mulheres habitam em comunidades, favelas, assentamentos, periferias urbanas, regiões afastadas [trabalhadoras rurais, mulheres do campo e da floresta, mulheres indígenas, idosas], além de outros grupos vulneráveis, a situação das desigualdades se torna profundamente outra e acentuada. Além de serem mulheres mais carentes que dependem, na maioria das vezes, de recursos públicos, como bolsa família, auxilio BPC, escola parcial e/ou integral que garante alimentação aos filhos, ou precisam contar com o acolhimento em certas redes de assistência social, elas são, neste momento, as mais esquecidas ou mesmo abandonadas pelas politícas públicas, uma vez que os recursos oferecidos (R$ 600,00) pelo estado só podem ser obtidos após atravessarem verdadeiros labirintos burocráticos, o que faz com que uma grande maioria não chegue a ser “beneficiada”.
Em geral estas mulheres vivem em espaços reduzidos, aglomerados, por vezes em casas germinadas em que uma única parede divide, ao mesmo tempo, o quarto da casa com a casa do vizinho. São “casas” ou “habitações” que não têm mais de um ou dois cômodos, cuja divisória é uma lâmina de compensado ou um pedaço de plástico. Ali, mulheres convivem com filhos, pais, idosos e outros familiares, com parcos recursos, sobretudo para assegurar a alimentação indispensável. Muitas delas já se encontravam em situação de precariedade de emprego ou mesmo desempregadas, em contextos muitas vezes de famílias monoparentais, isto é, em que são elas as chefes de família, únicas responsáveis pelo seu sustento. Aqui o vírus da covid-19 não pede licença para entrar, simplesmente entra e se instala, pois nem existem portas que o impeçam!
A situação é mais complicada quando há os/as filhos/as em ambiente de agressões. Pois quando o marido/companheiro/padrasto é abusivo ou violento, ele acaba o sendo também com os filhos/as. Pesquisas no domínio da psicologia social já constataram que mesmo quando as crianças não são vítimas diretas da violência, mas testemunham estas agressões, acabam por desenvolverem exatamente os mesmos sintomas de psico-trauma das vítimas diretas. Lamentavelmente abundam as denúncias de abusos e violências extensivos às crianças nesse momento.
Este é, ligeiramente, o traçado das desigualdades. Por que o segmento de mulheres pobres é mais atingido pela violência doméstica? A resposta é obvia, mas precisa ser reafirmada: além da imensa situação de precariedade material, a maioria já convivia com relacionamentos abusivos de maridos e companheiros, e sofrem com as violências domésticas agravadas no momento atual do confinamento, o que as torna ainda mais fragilizadas e vúlneráveis. Portanto, em situação de pandemina a vida se torna mais difícil para essas mulheres, que sofrem com o aumento de sua jornada de trabalho, acumulam o estresse emocional diante das incertezas, somando ainda o fato de que elas, na maioria das vezes, não dispõem de recursos necessários para atender às necessidades básicas de filhos e idosos dependentes.
O concreto é que houve um aumento comprovado da violência doméstica em tempos de coronavirus, uma vez que a vida das vítimas – na maioria, mulheres – fica cada vez mais exposta a seus agressores por longo período. E este contexto traz consequências danosas, seja porque a insegurança financeira, e falta de ajuda social e institucional, muitas vezes a impedem de deixar seus agressores, e estes “aproveitam” das medidas de quarentena mantendo as vítimas “reféns”. Assim, verificamos que as desigualdades “de classe” se verificam tão profundas entre as mulheres que se manifestam até mesmo na morte, uma vez que neste contexto morrem mais mulheres da periferia, pobres, negras e vulneráveis, com marcas visíveis de violências.
Por fim, nesse contexto dos diferentes impactos causados pelas desigualdades entre homens e mulheres, a falta de dados impede que os diferentes segmentos sociais recebam apoio para garantir que a polícia e outros serviços de atendimentro possam responder aos padrões específicos de violência doméstica em tempos de crise da covid-19.
Estruturas violentas: manifestações de violências exacerbadas
Qualquer forma de violência, de abuso ou de maus-tratos, é uma manifestação de poder, dominação e controle. A covid-19 explicitou a dramaticidade desta questão. Pois, quando as mulheres-vítimas são forçadas a permanecerem em casa no convívio com o agressor ou perto dele com maior frequência, este acaba por se utilizar do contexto do confinamento para abusar dessa situação estressante e colocar sua vítima sob agressão, emocional e/ou física. Desse modo, a conjuntura atual desta pandemina não deixa de repetir e exacerbar, de maneira intensa e cruel, o que historicamente sempre ocorreu em relação a exposição das mulheres à violência. Não é de hoje que as feministas têm chamado atenção para o fato de que o fenômeno da violência de gênero precisa ser priorizado como fato politico, no domínio da saúde pública, uma vez que sua complexidade aponta articulações com os avanços do processo civilizatório da humanidade.
O que o contexto da covid-19 traz de novo? Bem, ele faz emergir as situações de conflitos e violências subjacentes, dando visibilidade às práticas de dominação ocultadas ou dissimuladas historicamente, que causam a desapropriação do outro, posto em situação de tutela, como a apropriação do corpo das mulheres.[8]
Na conjuntura da covid-19, a posição estrutural distinta dos homens e das mulheres é inquestionável, apesar de ainda não existirem comprovações científicas de como a doença se comporta em cada um desses grupos, com suas especificidades. Os dados divulgados até o momento não deixam minimizar a perspectiva de uma dissemetria no conhecimento e na apreensão da situação do coronavírus, onde fica nítido que mulheres são as mais atingidas pela doença, embora o percentual de morte tem atingido mais os homens.
Tal agravamento, em relação às mulheres, é mais uma vez decorrente do postulado histórico da “superioridade natural dos homens sobre todas as mulheres, que subentende a instituição família e a distinção público-privado na comunidade política moderna”, como aponta Eleni Varikas, uma vez que, segundo a autora, “a dominação de sexo não é somente legitimada: ela se torna invisível com a dominação”.[9]
Associada à observação acima, a conjuntura da covid-19 manifesta a preocupação com o que vem sendo chamado de “nuneralização”, uma dinâmica em que as ações imediatas dos governos se voltam para os números das testagens e das mortes. Mas quem são as pessoas que morrem? Qual é a história de cada um/a? Que características as especificam? Enfim, a “numeralização”ou a “estatisticação” remetem à vala comum, onde todas e todos são tratados como uma categoria homogênea, cujas ações são organizadas a partir deste entendimento ou postulado.
Portanto, vale lembrar que se as políticas de saúde pública até agora não deram atenção aos impactos de gênero das epidemias passadas, a situação não é diferente para a covid-19. Pesquisadoras/es dos cinco continentes começam a considerar a inclusão das vozes das mulheres na resposta política a esta epidemia, quando atualmente estão sub-representadas seja nos órgãos de tomada de decisão, seja na distribuição de recursos para a preservação da vida.
O paradoxo que faz exacerbar as contradições da Divisão Sexual do Trabalho
Como já afirmado, se a numeralização homogeniza todas as pessoas mortas em um grupo apenas, na realidade do coronavírus, a situação distingue a condição de sexo/gênero, não apenas das mortes, mas também de quem se ocupou ou se ocupa delas. Paradoxalmente, a divisão sexual do trabalho se pontecializa e desmascara a demanda pelo trabalho de cuidado das mulheres, que enfrentam cotidianamente, nos hospitais e prontos-socorros, executando as tarefas mais árduas e penosas do contexto da pandemia, expondo ao risco sua príórpia vida. Há maior situação de violência do que esta? Em recente artigo Drauzio Valerella, “As enfermeiras”,[10] ele aponta:
“É voz corrente que as enfermeiras ajudam os médicos a cuidar dos pacientes, inversão de valores injusta – nós é que as ajudamos, quem cuida são elas (…) Amparar o doente enfraquecido no caminho até o banheiro, pegar veias invisíveis para administrar soro e os antibióticos, trocar o pijama e os lençóis da cama, recolher a urina, dar banho depois de um episódio de diarreia e tranquilizá-lo nos momentos de fragilidade psicológica na solidão das madrugadas não são tarefas realizadas por médicos.”
O trabalho de cuidado das enfermeiras é tão invisível quanto socialmente necessário. Com certeza não existem somente médicos homens, embora ainda sejam a maioria; felizmente, a presença feminina vem aumentando nos quadros da medicina. Entretanto, o processo sócio-historico de feminização da enfermagem associado às tarefas do cuidado particularmente hospitalares,[11] cuja presença de mulheres, nas diversas hierarquias e formações, constitui aproximadamente 70% nos quadros hospitalares. Elas são atores sociais imprescindíveis, sobretudo neste momento, priorizando, em detrimento de sua própria família, a atividade profissional sem acovardar-se frente aos riscos a que estão expostas. Muitas das profissionais de enfermagem habitam em regiões distantes, periféricas, com dificuldades de locomoção e de segurança, realidade que contribui para situações de violências emocionais e formas de estigamtização, uma vez que, quando identificadas, são discriminadas, como se fossem “transmissoras” da covid-19.
Esse contingente feminino dedicado ao “cuidado” tenta fazer sua voz ser ouvida nas redes sociais, aqui e além mar. Têm sido amplamente divulgadas fotos de cuidadoras que demandam mais recursos econômicos e mais proteção no exercício do trabalho. Em uma das publicações diárias o jornal italiano La Repubblica publicou a foto de uma enfermeira dormindo em uma mesa após mais de dez horas de serviços inteeruptos dedicados aos pacientes com covid-19. A imagem viralizou.[12]
Além daquelas que trabalham em hospitais, com certeza dispondo de mais recursos, há centemas de outras menos visíveis que também formam um contingente elevado de cuidadoras, aquelas que compõem equipes de trabalho de auxiliares de enfermagem e atuam nas regiões remotas. Falamos do Brasil profundo, onde existem precárias condições de serviços de saúde pública. São essas mulheres que exercem a lida de parteiras, práticas de enfermagem que trabalham em comunidades, que podem ser associadas a outros segmentos – predominantemente femininos urbanos, tão precários e vulneráveis como as anteriores: caixas, faxineiras, auxiliares de limpeza, diaristas, empregadas doméstica, enfim, todas aquelas que não têm direito ao teletrabalho e correm riscos todos os dias, expondo-se ao coronavírus. Portanto, são essas “mulheres invisíveis”, cuja saúde mental, saúde emocional e física são diariamente violadas e ameaçadas no contexto da covid-19. São todas estas mulheres, em suas diversas lidas do ato de cuidar, parte das “profissões” mais solicitadas para a gestão da epidemia, todas se colocando na linha de frente deste combate.
A máscara caiu: e se o confinamento fosse um luxo privilegiado?
Solicitam as autoridades públicas nacionais e internacionais – como a Organização Mundial da Saúde –OMS, o isolamento da população, o uso de máscara, de álcool gel, e de outros cuidados, sem perceberem o tamanho das desigualdades predominates, seja de acesso aos equipamentos públicos, seja de recursos, falta de saneamento básico, sobretudo nos países abaixo da linha do Equador, onde tais negligenciamentos são históricos. A propósito, li recentemente o artigo “A romantização do confinamento, esse ‘luxo’ das mulheres privilegiadas”, de Clément Arbrun,[13] no qual ele afirma:
“Devemos enfrentar os fatos: a situação excepcional de confinamento durante a epidemia de coronavírus só agrava a discriminação. Não satisfeito com a invisibilização das mulheres vítimas de violência doméstica, de pessoas sem-teto, o confinamento destaca os privilégios de certas pessoas, em detrimento das demais.”
Portanto, essa demanda de isolamento social torna mais visível e aprofunda as estruturais, históricas e dramáticas desigualdades sociais, que sempre estiveram presentes, sendo a violência contra as mulheres uma de suas manifestações mais fortes e na maioria das vezes ignorada. Consequentemente, a demanda genérica pelo confinamento social nos impele a refletir sobre esta “nova” forma de “luta de classes” que (re)surge em tempos em que o micro-coronaviros, ao se introduzir, não faz distinção social e nem econômica entre aqueles que podem dispor de todo o bem-estar e conforto – e que idealizam esse isolamento – e aqueles/as mais precários/as, que nada possuem, e que continuam a ser as “vítimas preferenciais”.
O cientista e médico norte-americano Sharon Moalem acredita que as mulheres serão menos atingidas pelo vírus covid-19. Em artigo publicado no jornal The New York Times, ele afiruma vez que o sistema imunológico feminino tem maior capacidade de combater infecções devido a sua constituição genética. Paradoxalmente, embora as mulheres tenham maiores “defesas” para combater o coronavirus, é alarmante que elas estejam morrendo neste contexto, não obrigatoriamente em consequência direta do coronavírus, mas pelas características que configuram suas condições de vida: isolamento prolongado, sobrecarga excessiva de trabalho, convivência “obrigatória” com o abusador, taxas alarmentes de estresse mental, acúmulo de responsabilidades, além de todas as outras expressões de violência.
Segundo recente notícia publicada pelo jornal Folha de S. Paulo,[14] os números apontam um aumento em São Paulo de 66% dos crimes de feminicídios consumados ou tentados, em menos de um mês de isolamento. Todos foram praticados na casa da vítima, a partir de 24 de março, data em que passou a valer o fechamento do comércio na região.
“’As mulheres já viviam numa situação de violência, isso não é uma novidade trazida pelo coronavírus. O confinamento faz com que o conflito se escale, e as mulheres sejam assassinadas. Infelizmente, é provável que haja um aumento ainda maior nos próximos meses’, afirma Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pesquisadora do tema (…). A pandemia não transforma o homem em uma pessoa violenta. Mas os fatores de estresse podem fazer com que um homem que já carrega dentro de si esses padrões pratiquem o ato ou o intensifiquem”.
Se as mulheres foram “privilegiadas” pela biologia por um sistema imunológico mais resistente, já não o foram pelas condições histórico-sociais.
Vale destacar que algumas iniciativas inovadoras, por parte de organismo da sociedade civil, voltadas para as mulheres em situação de isolamento, vêm trazer algum alento. Nesta direção, a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), por meio do Núcleo de Pesquisa em Gênero, Raça e Etnia (NUPEGRE), publica uma cartilha para que as mulheres não tenham dúvidas em relação aos seus direitos. “COVID-19 Confinamento sem violência. Juntas somos mais fortes. DENUNCIE”.[15]Com tal iniciativa a Escola cumpre o compromisso de disseminar o conhecimento e de levar informação para toda a sociedade.
Ademais, há esperanças mais amplas que chegam do cenário internacional, com as novas lideranças femininas-feministas que vem se destacando no enfrentando da crise da covid-19. Novas formas de um fazer feminino, que se reflete no fazer política e de cuidar da população. Desde a Islândia, sob a liderança da primeira-ministra Katrín Jakobsdóttir, passando por Jacinda Ardern, premiê da Nova Zelândia, e Sanna Marin, chefe de estado na Finlândia, Tsai Ing-wen, presidente em Taiwan, e Angela Merkel, a chanceler da Alemanha, todas estas mulheres estão mostrando ao mundo como lidar com uma situação complicada, que atinge cada país de maneira própria, de forma equilibrada, corajosa e, na medida do possível, bem-sucedida. Esses exemplos revelam que as mulheres partem de outros valores para exercer o poder e a tomada de decisão.
Concluo, voltando para este nosso país tão real e desigual, o Brasil, onde há várias maneiras de se morrer. A pandemia da covid-19 acarreta a morte corporal, que é irreversível. No entanto, há tantas outras mortes não corporais que dele decorrem: as mortes causadas pelas violências físicas, as simbólicas, psicológicas e emocionais decorrentes do estresse mental, da exaustão silenciosa, da exposição diária aos riscos para saúde, do excesso de trabalho e de responsabilidades, da invisibilidade de “vidas que não importam”, ou “vidas precárias”,[16] cuja desimportância passa a ser percebida apenas como mais um número somado às estatísticas. Todas essas “mortes” deixam marcas profundas na existência das mulheres. Independentemente de todas as formas de se morrer, nós – MULHERES – nos queremos todas vivas!
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Lourdes Maria Bandeira é formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília (UNB) e doutora em Antropologia pela Universidade René Descartes de Paris V, com pós-doutorado na área de Sociologia do Conflito na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), Paris. É professora titular no Departamento de Sociologia da UNB, dedicada a temas do feminismo, violência nas relações de gênero, corpo e sexualidade e políticas públicas, com ênfase na crítica feminista. É membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa da Mulher (Nepem/UnB), e uma das autoras presentes no livro “Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto” (Bazar do Tempo, 2019).
Texto escrito especialmente para Pensar o Tempo, Bazar do Tempo, abril 2020.
Referências Bibliográficas
ALEMANY, Carme. “Violências”. In: Helena Hirata et all. (Ogs.) Dicionário Critico do Feminismo. São Paulo: Unesp. 2009.
APFELBAUM, Erika. “Dominação”. In: BUTHER, Judith. Vida Precária. Os poderes do luto e da violência. São Paulo: Autêntica, 2019.
LOPES Marta Júlia Marques, LEAL, Sandra Maria Cezar. “A feminização persistente na qualificação profissional da enfermagem brasileira”. Disponível: Cadernos Pagu (24), janeiro-junho de 2005, pp.105-125 (http://www.scielo.br/pdf/cpa/n24/n24a06.pdf
VARIKAS, Eleni. “Igualdade”. In: Helena Hirata et all. (Ogs.) Dicionário Critico do Feminismo. São Paulo: Unesp. 2009.
[1] Consultar: https://www.cnews.fr/france/2020-03-29/coronavirus-les-signalements-de-violences-conjugales-ont-augmente-de-plus-de-30
[2] Informações disponíveis em: https://setorsaude.com.br/os-riscos-do-novo-coronavirus-perfil-dos-obitos-por-faixa-etaria/
[3] Folha de S. Paulo, 15/04/2020. Edição online:https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/assassinatos-de-mulheres-em-casa-dobram-em-sp-durante-quarentena-por-coronavirus.shtml?origin=folha
[4] Frédéric Lemaître (28/03/2020): Fonte: https://www.lemonde.fr/international/article/2020/03/28/coronavirus-hausse-des-violences-conjugales-en-chine-a-cause-du-confinement_6034753_3210.html
[5] Louis-Valentin Lopez (07/04/2020). Fonte: https://www.franceinter.fr/monde/les-signalements-lies-a-des-violences-contres-les-femmes-explosent-un-peu-partout-dans-le-monde.
[6] The Guardian, Londres (28/03/2020). https://www.courrierinternational.com/article/societe-confinement-laugmentation-des-violences-domestiques-sobserve-partout-dans-le-monde
[7] Consultar: https://news.un.org/pt/story/2020/04/1711382(acesso:24/04/2020).
[8] Erika Apfelbaum, “Dominação”. In: BUTLER, Judith. Vida Precária. Os poderes do luto e da Violência. São Paulo: Autêntica, 2019.
[9] Eleni Varikas, “Igualdade”. In: Helena Hirata et all. (Ogs.) Dicionário Critico do Feminismo. São Paulo, Unesp. 2009.
[10] Artigo completo a ser consultado: (Folha de S. Paulo, 12/04/2020), Caderno B13.
[11] Marta Júlia Marques Lopes e Sandra Maria Cezar Leal: “A feminização persistente na qualificação profissional da enfermagem brasileira”. Disponível: Cadernos Pagu (24), janeiro-junho de 2005, pp.105-125 (http://www.scielo.br/pdf/cpa/n24/n24a06.pdf) acesso:22/04/2020.
[12] Informação disponível no site: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n24/n24a06.pdf(acesso:22/04/2020)
[13] “La romantisation du confinement, ce ‘luxe’ de femmes privilégiées”. Por Clément Arbrun (tradução livre): fonte: https://www.terrafemina.com/article/coronavirus-la-romantisation-du-confinement-le-luxe-de-femmes-privilegiees_a352945/1(19/03/2020)
[14] ‘Assassinatos de mulheres em casa dobram em SP durante quarentena por coronavírus”. Texto assinado por Daniel Mariani, Diana Yukari e Thiago Amâncio, e 15/04/2020.
Disponível: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/assassinatos-de-mulheres-em-casa-dobram-em-sp-durante-quarentena-por-coronavirus.shtml
[15] Cartilha: Juntas somos mais fortes. Podemos te ajudar. DENUNCIE. Disponível: http://cepia.org.br/wp-content/uploads/2020/04/Cartilha-final.pdf
[16] Judith Buttler, Corpos que importam: os limites discursivos do sexo. São Paulo: Crocodilo e N-1 Edições, 2019.