Uma jornada pela história dos golpes de Estado, por Leonardo Cazes

Uma jornada pela história dos golpes de Estado

por Leonardo Cazes*

Desde 2016 não se fala de outra coisa no Brasil: foi golpe ou não foi? Seja o impedimento da presidenta Dilma Rousseff, seja a tomada do poder pelos militares em 1964, a presença do termo “golpe de Estado” no debate público e as discussões inflamadas sobre seu uso motivaram Newton Bignotto, professor titular aposentado de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) a investigar sua origem em “Golpe de Estado: história de uma ideia”.

Afinal, se não há dúvidas de que golpes de estado “fazem parte da linguagem política e do repertório de ações que estruturam o mundo moderno e contemporâneo”, como afirma o autor, bem menos claro é o caminho que este conceito percorreu ao longo dos séculos até o nosso presente.

A história que Bignotto conta tem seu ponto de partida em Maquiavel, no século XVI. Antes que golpe de Estado se tornasse um conceito bem delineado, o que só ocorreria no século seguinte com Gabriel Naudé, o autor florentino fez formulações fundamentais sobre a tópica da conquista e da conservação do poder. Este será, inclusive, o pilar sobre o qual todo o livro está estruturado.

Em particular, o professor procura articular dois níveis de análise propostos pelo italiano: uma análise fenomenológica das conjurações, abordando as diferentes formas de ataque ao poder, com um ponto de vista que chama de “topológico”, onde importa mais a geografia interna e o espaço ocupado por cada ator no momento em que o poder está ameaçado. A articulação entre estes dois níveis de análise se mostra uma chave interpretativa muito rica para compreender os golpes de Estado ao longo dos séculos.

Bignotto demonstra, também, que nem sempre golpe de Estado teve uma conotação negativa nem se restringia à tomada do poder. O francês Gabriel Naudé, no século XVII, separa o conceito de conspiração, que mantém sua conotação negativa, e positiva o conceito de golpe de Estado como ação capaz de influenciar a marcha dos acontecimentos e defender o Estado — e o rei — das suas ameaças.

No século XVIII, aponta o professor, o sentido atribuído aos golpes de Estado parecem estar pacificados e não se observa um grande debate sobre o tema. Sua vinculação à defesa do poder monárquico parecia evidente. Revolução, por sua vez, emerge como o conceito fundamental do vocabulário político do período.

A França entre as décadas finais do século XVIII e as primeiras do XIX é o cenário escolhido por Bignotto para apresentar como essas ideias políticas foram sendo mobilizadas por diferentes atores políticos em tempos extremamente conturbados. Golpes de Estado eram aplicados, mas nem sempre identificados desta forma.

É ao longo do século XIX, quando foram registrados inúmeros golpes de Estado, sendo o mais famoso deles o 18 Brumário de Luís Bonaparte, que o conceito vai ganhando contornos mais próximos ao que conhecemos no presente: uma forma de tomada do poder fora das regras previstas pelas Constituições, mas comuns na cena pública.

Esta tensão entre golpes de Estado e as leis, o uso da força para a manutenção da ordem legal, no entrecruzamento entre a filosofia política e o Direito, é muito explorada pelo professor nos capítulos dedicados aos séculos XIX e XX — este último trazendo ainda toda a discussão acerca do estado de exceção.

Há algo, entretanto, que escapa ao que foi dito até agora sobre o livro e nem poderia ser resumido neste espaço. O grande mérito de Bignotto em seu trabalho é mostrar como o conceito de golpe de Estado foi formulado e mobilizado por atores de carne e osso ao longo do tempo, atravessados por experiências políticas que moldaram suas ideias e suas visões de mundo, e acabaram transformando o próprio conceito.

Sua história das ideias é construída num imbricamento permanente com a história política de cada período analisado, com a reconstituição de episódios significativos e apresentação de vasta bibliografia sobre cada tema — boa parte dela inacessível ao leitor brasileiro. A síntese realizada por Bignotto se torna, assim, um ponto de partida inescapável para compreender a natureza dos golpes de Estado que, como o próprio autor destaca ao final do livro, “pode ajudar a combater um mal que não foi expurgado de nossas vidas com o desenvolvimento das forças econômicas e políticas ao longo dos últimos séculos.”


Leonardo Cazes é jornalista e mestre em História (UFF)

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