Sobre a Eureka[1]
Paul Valéry
Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback
Para Lucien Fabre
Eu tinha vinte anos e acreditava na força do pensamento. Sofria estranhamente de ser e de não ser. Por vezes, sentia forças infinitas dentro de mim. Elas colapsavam diante dos problemas; e a fraqueza de minhas forças positivas me desesperava. Eu era sombrio, leve, aparentemente fácil, duro no fundo, extremo no desprezo, absoluto na admiração, fácil de me impressionar, impossível de ser convencido. Tinha fé em algumas ideias que tinham chegado a mim. Entendia a sua conformidade com o meu ser que as havia gerado como a marca certa de seu valor universal: o que aparecia com bastante nitidez para o meu espírito lhe parecia invencível; o que o desejo engendra é sempre o que há de mais claro.
Conservava essa sombra de ideias como meus segredos de Estado. Tinha vergonha da sua estranheza; temia que fossem absurdas; sabia que eram, mas que também não eram. Eram vãs em si mesmas, mas potentes pela força que a confiança que nelas sentia propiciava. O zelo por esse mistério de fraqueza me enchia de uma espécie de vigor.
Tinha parado de fazer versos e quase não lia mais. Os romances e poemas me pareciam apenas aplicações particulares, impuras e semi-inconscientes de algumas propriedades inerentes a esses famosos segredos que eu esperava um dia descobrir, com base nessa única segurança sem trégua de que eles tinham que necessariamente existir. Quanto aos filósofos, que conhecia pouco, sentia uma irritação com esse pouco porque eles nunca respondiam a nenhuma das dificuldades que me atormentavam. Eles só me davam tédio; nunca o sentimento de comunicarem algum poder verificável. E, ainda, me parecia inútil especular sobre abstrações sem as definirmos inicialmente. Como fazer de outra maneira? A única esperança para uma filosofia é tornar-se impessoal. É preciso esperar esse grande passo bem antes do fim do Mundo.
Andei esmiuçando uns místicos. Deles é impossível falar mal, pois neles só encontramos o que colocamos.
Estava nesse ponto quando Eurekacaiu surgiu em meu olhar.
Orientados por meus ternos e tristes mestres, os estudos me fizeram acreditar que a ciência não era amor; que seus frutos podem ser úteis, mas a sua folhagem é muito espinhosa e sua casca terrivelmente áspera. Reservava a matemática para uma espécie de espíritos aborrecidamente exatos, incomensuráveis com o meu.
A literatura, por outro lado, com frequência me escandalizava pela sua falta de rigor, coerência e obstinação às ideias. No mais das vezes, o seu objeto é mínimo. Nossa poesia ignora ou até duvida de toda a épica e a patética[2]do intelecto. E quando às vezes se arrisca em considerá-las, mostra-se tépida e maçante. Nem Lucrécio nem Dante são franceses. Não temos de modo algum poetas do conhecimento. Talvez nosso sentimento tão acentuado pela distinção de gêneros literários, ou seja, pela independência dos diversos movimentos do espírito, não nos deixe perceber de forma alguma as obras que os combinam. Não sabemos fazer cantar o que não precisa de canto. Mas de uns cem anos para cá, a nossa poesia mostrou recursos tão ricos e uma força tão rara de renovação que o porvir haverá de conceder, talvez rapidamente, a algumas dessas obras de grande estilo e de uma nobre severidade que dominam o sensível e o inteligível.
Em poucos instantes, Eureka me ensinou a lei de Newton, o nome de Laplace, a hipótese que ele propôs, a própria existência de pesquisas e especulações sobre as quais não se falava para adolescentes, por medo, imagino, que não mostrassem qualquer interesse, em vez de medir a surpreendente extensão do momento com sonhos e bocejos. O que mais estimulava o apetite da inteligência era então colocado entre os arcanos. Era a época em que os grandes livros de física não sopravam uma só palavra sobre a lei da gravidade, sobre a conservação de energia nem o princípio de Carnot;[3]preferiam as torneiras com três válvulas, os hemisférios de Magdeburgo e os raciocínios laboriosos e frágeis que o problema do sifão lhes inspirava.
Seria, no entanto, uma perda de tempo despertar nas jovens mentes as origens, a alta destinação e a virtude viva desses cálculos e proposições bem áridas, infligidas sem nenhuma ordem e não obstante com uma incoerência bastante admirável?
Essas ciências ensinadas tão friamente foram fundadas e desenvolvidas por homens que lhe dedicavam um interesse apaixonado. Eurekame fez sentir algo dessa paixão.
Confesso que fiquei surpreendido e seduzido apenas em parte pelas enormes pretensões e ambições do autor, pelo tom solene de seu preâmbulo e pelo estranho discurso sobre o método que abre o livro. Essas primeiras páginas enunciaram, porém, um pensamento guia, se bem que recoberto de um mistério que sugeria tanto alguma impotência como uma reserva deliberada, certa relutância da alma entusiasta em disseminar o que havia encontrado de mais precioso… E nada disso podia me desgostar.
Para alcançar o que chama deverdade, Poe invoca o que chama de consistência (consistency). Não é muito fácil definir com nitidez essa consistência. O autor não o faz, mesmo tendo tudo o que seria preciso para fazê-lo.
Segundo ele, averdadeque busca só pode ser apreendida por uma adesão imediata a uma intuição tal, que torna presente e como que sensível ao espírito a dependência recíproca entre as partes e as propriedades do sistema em consideração. Essa dependência recíproca se estende às fases sucessivas do sistema; aí a causalidade é simétrica. Para um olhar que abraça a totalidade do universo, uma causa e seu efeito podem ser tomados um pelo outro e ter seus papéis invertidos.
Duas observações nesse ponto. Farei apenas uma indicação sobre a primeira, que haverá de nos levar bem longe, o leitor e eu. O finalismo tem um lugar capital na construção de Poe. Essa doutrina não está mais na moda; não tenho nem a força nem o desejo de defendê-la. Mas é preciso admitir que as noções de causa e adaptação quase que inevitavelmente conduzem a ela (sem falar das enormes dificuldades e, portanto, das tentações provocadas por certos fatos como a existência dos instintos etc.). O mais simples é dispensar o problema. Nossos únicos recursos para resolvê-lo são os meios da pura imaginação. Que ela seja exercida em outro lugar.
Façamos outra observação. No sistema de Poe, a consistência é ao mesmo tempo o meio da descoberta e a própria descoberta. Essa é uma concepção admirável: exemplo e exercício de apropriação recíproca. O universo está construído sobre um plano cuja simetria profunda está de algum modo presente na íntima estrutura de nosso espírito. O instinto poético deve nos levar cegamente para a verdade.
Encontramos com bastante frequência ideias análogas a essas entre os matemáticos. Eles costumam considerar as suas descobertas não como “criações” de suas faculdades combinatórias, mas, sobretudo, como capturas feitas pela sua atenção dentro de uma riqueza de formas preexistentes e naturais, apenas acessível pela rara conjugação de rigor, sensibilidade e desejo.
Todas as consequências desenvolvidas em Eurekanão são sempre deduzidas com exatidão nem desenvolvidas com a clareza que se poderia desejar. Há muitas sombras e lacunas. Há intervenções bem pouco explicadas. Há um Deus.
Para o amador de drama e comédia intelectuais, nada é mais interessante do que a engenhosidade, a insistência, as escamoteações, a ansiedade de um inventor ocupado com a sua própria invenção, cujos vícios ele conhece admiravelmente, cuja beleza ele quer necessariamente mostrar, explorar as vantagens, dissimular as misérias e, a todo preço, fazer dela uma imagem do que deseja. O mercador enfeita a sua mercadoria. A mulher se ajeita diante do seu espelho. O padre, o filósofo, o político e, em geral, todos aqueles que se devotaram a nos propor coisas incertas são sempre uma mistura de sinceridade e silêncios (no mais favorável dos casos). Não querem que vejamos o que eles não gostam de considerar…
A ideia fundamental de Poe é, no entanto, uma ideia profunda e soberana.
Não seria exagerar a sua dimensão reconhecer na teoria da consistência uma tentativa bem precisa de definição do universo em termos de suas propriedades intrínsecas. No oitavo capítulo da Eureka, encontramos a proposição: Cada lei da natureza depende em todos os pontos de todas as outras leis. Não é essa a fórmula ou ao menos a expressão de uma vontade de relatividade generalizada?
O parentesco entre essa tendência e as concepções recentes se torna evidente quando descobrimos no poemaa afirmação sobre as relações simétricase recíprocas entre matéria, tempo, espaço, gravitação e luz. Grifei a palavra simétrico: trata-se, com efeito, de uma simetria formal que é a característica essencial da representação do universo segundo Einstein. Ela constitui a sua beleza.
Mas Poe não se limita aos constituintes físicos dos fenômenos. No seu propósito, ele insere a vida e a consciência. Quantas coisas não nos vêm aqui ao pensamento! O tempo não mais se define com base na simples distinção entre o material e o espiritual. Toda a argumentação repousava num conhecimento acabado da “matéria” da qual se perde a posse, em suma, na aparência!
A aparência da matéria é de uma substância morta, de uma potênciaque só passa ao ato pela intervenção de algo exterior e inteiramente estranho à sua natureza. Dessa definição, tiravam-se anteriormente consequências inevitáveis. Mas a matéria mudou de fisionomia. A experiência fez conceber o contrário do que a observação pura permitia ver. Criando uma espécie de reléspara os nossos sentidos, a física moderna nos persuadiu de que a nossa antiga definição não tinha valor absoluto nem especulativo. Ela nos mostra que a matéria é estranhamente diversa e indefinidamente surpreendente; que é um conjunto de transformações que continuam até se perder no mais pequeno e mesmo nos abismos desse pequeno; diz-se que talvez se dê um movimento perpétuo. Há uma febre eterna nos corpos.
Atualmente não se sabe mais o que o fragmento de um corpo qualquer pode ou não conter ou produzir, no instante ou depois. Por menos que se queira, a própria ideia de matéria se distingue muito pouco daquela de energia. Tudo se aprofunda em agitações, rotações, trocas e irradiações. Nossos olhos, nossas mãos, nossos nervos são feitos disso; e as aparências de morte ou sono que a matéria apresenta inicialmente, a sua passividade, o seu abandono às ações exteriores são compostos em nossos sentidos como as trevas obtidas por certa superposição de luzes.
Pode-se resumir tudo isso escrevendo que as propriedades da matéria parecem depender apenas da ordem de grandeza na qual nos posicionamos para observá-la. Mas, com isso, as suas qualidades clássicas, sua falta de espontaneidade, sua diferença essencial em relação ao movimento, a continuidade ou homogeneidade de sua textura não podem mais se opor absolutamente aos conceitos de vida, sensibilidade e pensamento, uma vez que essas características tão simples são puramente superficiais. Aquém da ordem de grandeza em que são feitas observações grosseiras, todas as antigas definições mostram-se incorretas. Sabemos que propriedades e potências desconhecidas se exercem no infra-mundo, já que descobrimos algumas que nossos sentidos não eram feitos para observar. Mas não sabemos enumerar essas propriedades nem mesmo consignar um número finito à pluralidade crescente dos capítulos da física. Nem mesmo sabemos se a generalidade de nossos conceitos não é ilusória quando os transportamos para esses campos que limitam e sustentam o nosso campo. Falar de ferro ou hidrogênio é supor entidades – das quais nada pode nos assegurar a existência e a permanência, a não ser uma experiência bem restrita e bem pouco prolongada. Ademais, não há razão alguma para se pensar que nosso espaço, nosso tempo, nossa causalidade preservem algum sentido lá onde nosso corpo é impossível. Sem dúvida, o homem que tenta representar a intimidade das coisas pode apenas adaptar a ela as categorias usuais de seu espírito. No entanto, quanto mais ele desenvolve as suas pesquisas e até aumenta os seus poderes registradores, mais ele se afasta do que se poderia chamar de optimumdo conhecimento. O determinismo se perde em sistemas inextrincáveis, com milhares de variáveis nas quais o olho do espírito não consegue mais seguir as leis e parar diante de alguma coisa que se conserva. Quando a descontinuidade se torna a regra, a imaginação, antes usada para alcançar a verdade que as percepções haviam feito suspeitar e que os raciocínios haviam tecido numa unidade, deve declarar-se impotente. Quando os objetos de nossos juízos sãomédias, deixamos de considerar os próprios acontecimentos. Nosso saber tende ao poder, afastando-se de uma contemplação coordenada das coisas; são necessários prodígios de sutileza matemática para lhe devolver a unidade. Não se fala mais de primeiros princípios; as leis não são mais instrumentos sempre passíveis de aperfeiçoamento. Elas não governam mais o mundo, sendo aparelhadas para a incapacidade de nossos espíritos; não podemos mais repousar sobre a sua simplicidade: como uma ponta persistente, há sempre algum decimal não satisfeito que nos lembra a inquietude e o sentimento do inesgotável.
Por essas observações, pode-se ver que as intuições de Poe sobre a constituição geral do universo físico, moral e metafísico não são nem negadas nem confirmadas pelas numerosas e tão importantes descobertas feitas depois de 1847. Algumas de suas visões podem muito bem ser incorporadas, sem solicitações excessivas, em concepções bem recentes. Quando Edgar Poe mede a duração do seu Cosmos pelo tempo necessário para realizar todas as combinações possíveis dos elementos, pode-se pensar nas ideias de Boltzmann[4]e nos seus cálculos de probabilidade aplicados à teoria cinética dos gases. Há em Eurekaum pressentimento do princípio de Carnot e da representação desse princípio pelo mecanismo da difusão; o autor parece ter adiantado os espíritos audaciosos que salvam o universo de sua morte fatal através de uma passagem infinitamente breve por um estado infinitamente pouco provável.
Não tendo aqui a intenção de uma análise completa de Eureka, falarei bem pouco do uso feito pelo autor da hipótese de Laplace. O objetivo de Laplace era limitado. Ele se propunha apenas a reconstituir o desenvolvimento do sistema solar. Imaginou uma massa gasosa em vias de resfriamento que possuía um núcleo já fortemente condensado e animado de uma rotação em torno de um eixo passando pelo seu centro de gravidade. Ele supunha tanto a gravidade como a invariabilidade das leis da mecânica e assumiu como a sua única tarefa explicar os sentidos de rotação dos planetas e de seus satélites, a pouca excentricidade das órbitas, a fraqueza das inclinações. Nessas condições, a matéria, submetida ao resfriamento e à força centrífuga, escorre dos polos em direção ao equador da massa e se dispõe numa zona que é o lugar dos pontos onde o peso e a aceleração centrífuga se equilibram. Dessa maneira, forma-se um anel nebuloso que deve se romper bem rapidamente; os fragmentos desse anel se aglomeram enfim num planeta…
O leitor de Eurekaverá como Edgar Poe expandiu a lei da gravitação e a hipótese de Laplace. Sobre esses fundamentos matemáticos, construiu um poema abstrato, que é um dos raros exemplares modernos de uma explicação total da natureza material e espiritual, uma cosmogonia.
Cosmogonia é um gênero literário de persistência admirável e de variedade surpreendente, um dos gêneros mais antigos.
Dir-se-ia que o mundo não é muito mais antigo do que a arte de fazer o mundo. Com um pouco mais de conhecimentos e bem mais de espírito, poderíamos deduzir de cada uma dessas gêneses, quer venha da Índia, da China, da Caldeia, quer pertença à Grécia, a Moisés ou ao senhor Svante Arrhenius,[5]uma medida da simplicidade desses espíritos em cada época. Encontraríamos sem dúvida que a ingenuidade da intenção é invariável; mas seria preciso confessar que a arte é bem diferente.
Assim como a tragédia tem a ver com a história e a psicologia, o gênero cosmogônico se aproxima das religiões, com as quais se confunde em alguns pontos, e da ciência, da qual necessariamente se distingue pela ausência de verificações. Ele compreende livros sagrados, poemas admiráveis, narrativas excessivamente bizarras, cheias de belezas e ridículos, de pesquisas físico-matemáticas de uma profundidade digna às vezes de um objeto menos insignificante do que o universo. Mas pertence à glória do homem poder despender suas forças no vazio; e isso não é apenas a sua glória. As investigações insensatas são parentes de descobertas imprevistas. O papel do inexistente existe; a função do imaginário é real; e a lógica pura nos ensina que o falso implica o verdadeiro. Parece que a história do espírito pode se resumir nos seguintes termos: é absurdo pelo que busca, é grande pelo que encontra.
O problema da totalidade das coisas e aquele da proveniência desse todo surgem da intenção mais ingênua. Desejamos ver o que teria precedido a luz; ou então tentamos descobrir se uma combinação particular de nossos conhecimentos não teria precedência sobre todos os demais e não poderia engendrar o sistema que é a sua fonte e que é o mundo e o seu autor, que somos nós mesmos.
Se acreditamos ouvir uma Voz infinitamente imperiosa romper de algum modo a eternidade; seu grito primal propagar a extensão como uma novidade sempre mais grávida de consequências quanto mais se pronuncia até os limites da vontade criadora, e a Palavra abrir espaço para as essências, para a vida, para a liberdade, para a disputa fatal das leis, das inteligências e do acaso; – ou se (caso relutamos em nos lançar do puro nada para qualquer estado imaginável) achamos um pouco menos duro contemplar toda a primeira época do mundo na ideia obscura de uma mistura de matéria e energia, compondo uma espécie de lama substancial, só que neutra e impotente à espera indefinida do ato de um demiurgo; – ou, enfim, se melhor equipados, mais profundos mas não menos alterados pelas maravilhas, nos esforçássemos em reconstituir, por meio de todas as ciências, a mais antiga figura possível do sistema que é o objeto da ciência – todo o pensamento da origem das coisas não deixa de ser sempre apenas um devaneio de sua disposição atual, uma espécie de degenerescência do real, uma variação sobre o que é.
O que precisamos efetivamente para pensar nessa origem?
Se precisamos de uma ideia do nada, a ideia do nada é nada, ou melhor, já é alguma coisa: é um fingimento do espírito que apresenta uma comédia do silêncio e das trevas perfeitas nas quais bem sei que estou escondido e pronto para criar, simplesmente relaxando a minha atenção; onde sinto que sou, que sou presente, voluntário e indispensável a fim de conservar, por um ato consciente, essa ausência tão frágil de toda imagem e essa aparente nulidade… Mas é uma imagem e é um ato; por uma convenção momentânea, eu me chamoNada.
Se colocar na origem a ideia de uma desordem extrema, estendida até as menores partes, perceberei facilmente que esse caos inconcebível está ordenado pela minha intenção de conceber. Eu mesmo embaralhei as cartas para poder desembaralhá-las. Ademais, seria uma obra-prima da arte e da lógica definir uma desordem tão confusa que nela não mais se pudesse descobrir nem o menor traço de ordem nem substituí-la por um caos mais íntimo e mais avançado. Uma confusão verdadeiramente inicial deve ser uma confusão infinita. Mas, nesse caso, não podemos derivar daí o mundo, e a própria perfeição da mistura não nos deixa fazer dela nenhum uso.
Quanto à ideia de um começo – entendo aqui de um começo absoluto – esta é necessariamente um mito. Todo começo é coincidência; seria preciso conceber não sei que contato entre o tudo e o nada. Tentando pensar isso, descobre-se que todo começo é uma consequência – todo começo completaalguma coisa.
Mas precisamos sobretudo da ideia desse Todoque chamaremos universo e que desejamos ver começar. Antes da questão da sua origem nos inquietar, vejamos se essa noção, que parece se impor a nosso pensamento, que lhe parece tão simples e tão inevitável, não se desintegra sob o nosso olhar.
Pensamos obscuramente que o Todoé alguma coisae imaginando alguma coisao chamamos de Todo. Acreditamos que esse Todo começou como toda coisa começa e que esse começo do conjunto que deve ter sido bem mais estranho e solene do que o das partes, deve ser infinitamente mais importante de se conhecer. Formamos do todo um ídolo e um outro da sua origem e não podemos concluir que exista um determinado corpo da natureza cuja unidade, por corresponder à nossa própria natureza, nos dê segurança.
Tal é a forma primitiva e como que infantil de nossa ideia de universo.
É preciso olhar mais de perto e se perguntar se essa noção muito natural, ou seja, bem impura, pode figurar num raciocínio não ilusório.
Observarei em mim mesmo o que penso sob esse nome.
Uma primeira forma de universo me é oferecida pelo conjunto das coisas que vejo. De um lugar a outro meus olhos estimulam minha visão e são afetados por toda parte. Minha visão estimula a mobilidade de meus olhos que continuamente a aumenta, alarga, perpassa. Não há nenhum movimento desses olhos que encontre uma região de invisibilidade; não há nenhum ponto que não gere efeitos coloridos; e, pelo conjunto desses movimentos que se encadeiam uns nos outros, estou como que trancado na minha propriedade de perceber. Toda a diversidade de minhas visões se integra na unidade de minha consciência motriz.
Adquiro a impressão geral e constante de que uma esfera de simultaneidade está ligada à minha presença. Ela se transporta junto comigo e seu conteúdo é indefinidamente variável, embora conserve a sua plenitude, apesar de todas as substituições que possa sofrer. Posso me deslocar, e os corpos que me cercam podem se modificar, mas a unidade de minha representação total, a propriedade que possui de me cercar não se altera em nada. Posso fugir quanto quiser, agitar-me de todas as maneiras possíveis e estarei sempre cercado por todos os movimentos-visionáriosdo meu corpo, que se transformam uns nos outros e me reconduzem inevitavelmente para a mesma situação central.
Vejo portanto um todo. Digo que é um Todo, pois de certo modo esgota minha capacidade de ver. Não posso ver nada a não ser nessa forma compacta e nessa justaposição que me cerca. Todas as minhas outras sensações referem-se a algum lugar desse círculo cujo centro pensa e fala.
Eis o meu primeiro Universo. Não sei se quem nasce cego poderia ter uma noção tão nítida e imediata de uma soma de todas as coisas, pois me parece que as propriedades particulares do conhecimento ocular são essenciais para a formaçãopor mim mesmode um campo inteiro e completo. A visão assume de algum modo a função da simultaneidade, ou seja, da unidade como tal.
Mas essa unidade – que necessariamente compõe o que eu pude ver num instante, esse conjunto de ligações recíprocas ou manchas das quais depois eu decifro e atesto a profundidade, a matéria, o movimento e o acontecimento, este conjunto onde vejo e descubro o que me atrai e o que me inquieta – me comunica a primeira ideia, o modelo e como que o germe do universo total, que acredito existir em torno de minha sensação, por ela mascarados e revelados. Irresistivelmente imagino que um imenso sistema velado suporta, penetra, alimenta e absorve cada elemento atual e sensível de minha duração, forçando-o a existir e a se resolver; e assim que cada momento é o nó de uma infinidade de raízes prolongando-se até uma profundidade desconhecida numa extensão implícita– no passado – na estrutura secreta de nossa máquina de sentir e de combinar, que se refaz incessantemente no presente. Considerado como uma relação permanente entre todas as mudanças que me tocam, o presente me faz sonhar com um sólido ao qual minha vida sensitiva estaria ligada como uma anêmona do mar ao seu seixo. Como construir sobre essa pedra um edifício fora do qual nada poderia existir? Como passar do universo limitado e instantâneo ao universo completo e absoluto?
A questão seria agora conceber e construir em torno de um germe real uma figura que satisfaça a duas exigências essenciais: uma que é tudo admitir, ser capaz de tudo e de nos propiciar uma representação de tudo; a outra, poder servir nossa inteligência, prestar-se a raciocínios, instruir-nos melhor sobre a nossa condição e nos tornar um pouco mais possuidores de nós mesmos.
Mas basta precisar e aproximar uma dessas necessidades do conhecimento da outra para que subitamente surjam as intransponíveis dificuldades inerentes à menor tentativa de dar uma definição utilizável do Universo.
Universonão passa, portanto, de uma expressão mitológica. Os movimentos de nosso pensamento em torno desse nome são perfeitamente irregulares, inteiramente independentes. Tão logo se deixa o instante, tão logo tentamos aumentar e expandir nossa presença fora de si mesma, esgotamo-nos em nossa liberdade. Toda a desordem de nossos conhecimentos e potencialidades nos cerca. Somos sitiados pela lembrança, pelo possível, pelo imaginável, pelo calculável, por todas as combinações de nosso espírito, em todos os graus da probabilidade, em todos os estados da precisão. Como formar o conceito do que não se opõe a nada, que não se parece com nada? Assemelhando-se a alguma coisa, já não seria tudo. Se não se assemelha a nada… E se essa totalidade possui a mesma força que o nosso espírito, o nosso espírito não tem nenhum poder sobre ela. Todas as objeções levantadas contra o infinito em ato, todas as dificuldades encontradas ao se pretender ordenar uma multiplicidade, aqui se declaram. Nenhuma proposição consegue dar conta desse assuntotão desordenado em sua riqueza que todos os atributoslhe convêm. Assim como o universo escapa à intuição, ele também transcende a lógica.
E quanto à sua origem – NO COMEÇO ERA A FÁBULA. E sempre será.
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NOTAS:
[1]Esse texto foi escrito originalmente como introdução à tradução feita por Charles Baudelaire do poema Eureka, de Edgar Allan Poe, publicada em 1921. Para a tradução brasileira de Eureka, cf. a de Marilene Felinto com introdução de Julio Cortázar (que o traduziu para o espanhol), publicado pela editora Max Limonad em 1986. (N.T.)
[2]Valéry usa pathétiqueaqui como Immanuel Kant, no sentido do conjunto dos sentimentos (em grego, pathémata), formando o termo de maneira análoga à estética. Provavelmente alude também à sonata de Beethoven conhecida como Patética. Valéry sem dúvida pensa no caráter patético de sentimentalismos intelectuais. (N.T.)
[3]Nicolas Léonard Sadi Carnot (1796-1832) foi um engenheiro militar e físico francês cujo trabalho contribuiu de forma essencial para a fundamentação da termodinâmica. É considerado o descobridor da força motriz do fogo e autor de uma teoria por meio da qual foi possível inventar uma máquina térmica para obter um rendimento máximo. Suas investigações serviram de base para a formulação por Lord Kelvin da segunda lei da termodinâmica e pode ser considerado aquele que esboçou os fundamentos para o conceito de entropia. (N.T.)
[4]Ludwig Eduard Boltzmann (1844-1906) foi um físico austríaco que desenvolveu a mecânica estatística pela qual foi possível explicar pela primeira vez como as propriedades dos átomos determinam as propriedades físicas da matéria tais como viscosidade, condução térmica e difusão. (N.T.)
[5]Svante Arrhenius (1859-1927) foi um físico sueco que recebeu o prêmio Nobel em química em 1903 e foi o primeiro a usar princípios básicos da físico-química para calcular até onde as emissões de dióxido de carbono, causadas pelo ser humano, aumentam a temperatura da terra. As suas pesquisas pioneiras apresentam hoje grande atualidade no que diz respeito aos problemas do aquecimento global. (N.T.)
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Paul Valéry (1871-1945), poeta, ensaísta, crítico de arte, pensador, formou-se em Direito, em Montpellier, instalando-se em Paris em 1894. Em 1917, após longo período de silêncio poético, sob influência de André Gide, voltou a escrever e publicou o poema “A jovem parca”,que o tornou imediatamente célebre. A este logo seguiram “O cemitério marinho”(1920) e “Charmes”(1922), que o consagraram como um dos grandes poetas franceses. Profundamente marcado por Stéphane Mallarmé, assume a reflexão sobre a linguagem, a forma, o sentido e a inspiração poéticas como meio de conhecimento do mundo. Sua obra está marcada pela elaboração de uma poética do pensamento, que pode ser acompanhada em seus Cadernos [Cahiers], escritos entre 1894 e a sua morte em 1945. Depois da Primeira Guerra Mundial, já muito célebre, Valéry faz inúmeras viagens e assume diferentes funções dentre as quais a de membro da Academia Francesa e professor de poética no Collège de France. Paul Valéry influenciou várias gerações de artistas, poetas e filósofos, como Rainer Maria Rilke, T. S. Eliot e James Joyce. Suas reflexões sobre o mundo contemporâneo, marcaram vários pensadores contemporâneos como Jacques Derrida e seus escritos sobre a relação entre arte e pensamento foram decisivos para as reflexões de Maurice Merleau-Ponty.
Marcia Sá Cavalcante Schubacké professora titular de filosofia na Universidade de Södertörn (Suécia). Entre 1994 e 2000 foi professora adjunta do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autora, entre outros, de Olho a olho: ensaios de longe(2011)e o mais recente Time in Exile: in conversation with Heidegger, Blanchot and Clarice Lispector(2020). Algumas de suas traduções são Ser e tempoe A caminho da linguagem,de Martin Heidegger; Hipérion, deHölderlin; Mares do leste, de Tomas Tandströmer; e, para o sueco, as Primeiras estórias, de Guimarães Rosa.