Como será viver com os vivos?
Ana Kiffer
quando criança tive três pneumonias
numa quase morri
lembro-me de como meu corpo desfalecia sobre as pernas de minha mãe
que o acolhia
por muito tempo entendi que o pneuma era a alma do corpo
mas meu corpo brigou muitas vezes com a minha alma
entristecida do mundo
quando nasci disseram-me que meu pai havia acabado de sair da cadeia
tuberculoso
o médico pedia que nos separássemos
para que minha pequena vida não corresse perigo
mas é que não sabia – viver é perigoso!
minha mãe inteirada nos assuntos do perigo
e já sem poder suportar outro tempo de separação
de reclusão, depois de tanto tempo
depois de tudo,
agora, digo
falo algumas vezes com ela, olho pro seu retrato,
incluso brigo
para lembrar que a vida é feita de batalhas
perigosas
numa delas
morreu
quando ao pulmão e ao cérebro chegou o seu câncer
a peste também era assim
só matava quando atingia esses órgãos
Artaud, que desejou refazer o corpo através da arte,
inventou um corpo sem órgãos
e disse que a peste só matava quando chegava ao pulmão e ao cérebro
porque esses órgãos relacionam-se com a consciência e a vontade
vontade mesmo
já não sei, mas é certo que o momento mesmo da morte
é percebido por quem o vive
este texto está muito terrível
e sei que já não se escreve assim – pior que a vida
por isso a partir de agora vou me dedicar exclusivamente a apenas duas coisas
1. como viver com os vivos
2. e uma imaginação radical
brutal e capaz
de acabar com o capataz
os ás da história por fim ventilando
um novo
diferente
ou mesmo só um possível
mundo
terá que entender
que já não se viverá
sem que consigamos portar a morte de tantos
salvar-se terá o seu custo
vergonhoso
e não heroico
já que o estrondoso barulho silencioso dos corpos
mortos
ficará sob a terra movendo nossos impropérios
até quem sabe conseguirmos
perceber que tudo vive, e mesmo a morte
sem lugar
sem lugar para todos
nada seguirá
senão desgraças sucessivas
talvez ainda outro vírus
mais pestilento
partícipe dos ataques sombrios ao que fizemos nós mesmos
conosco
virá
viverá
aquele que souber viver com os vivos – todo o vivo –
que agora incluirá essa multidão de corpos mortos
virá
viverá
aquele que repensar o nosso vínculo com os espaços de sufocação
eles são ainda as prisões, escolas, asilos, mas muito além
o céu que já não nos protege
e ataca
os campi
a céu aberto
os fuzis estrelares caindo do céu
o céu caindo sobre nós
a inferiorizarão de uma parte imensa de vivos
seus ritos
fundo ancestral de todos nós
os mortos
serão pagos com a nossa cegueira
viveremos quiçá em células sufocadas
os laços primordiais
em parte, ou todos adoecidos
estamos assim porque esquecemos que tudo o que é vivo vive na e da Relação
esquecemos que a Relação é anterior ao individuo e as massas que eles creem governar
matar encurralar
dizimar
palavras que viverão
virão
em nossos dicionários
do futuro, agora associadas aos nomes que as ressignificaram
matando
por dinheiro
acúmulo
avidez
uma quantidade muito grande de nós
como nomes de doenças
de poucas curas
lá estarão eles
imortalizados
já não direi dizimaram tantas pessoas pobres e pretas no meu país
direi #elenão tantas pessoas pobres e pretas no meu país
direi #todoseles tantas pessoas pobres e pretas no meu país
inventarei um novo dicionário
pros tempos vindouros, agora
a hora da penumbra do dia
é onde paro
escuto o canto esquecido
dos pássaros
que voltaram
a alimentarem-se das flores rosas de um jardim qualquer
por onde ela cresce, ainda sem mundo ou jardim
como quando eu nasci
vejo os seus braços longos e finos suplicando a todos
digo, filha
respira
ouça o ar que movimenta toda a nossa imobilidade
abrace-me.
entre as pernas de minha mãe que abrigaram o meu corpo infantil desfalecido
e os braços de minha filha
construirei outro mundo possível
cheio de nós vindouros
sem usurpação do ouro
um mundo de nós
inextricáveis
viverá aquele que souber viver com os vivos
não seremos muitos
nem os melhores
entretanto
encerrados entre eles
nós
inextricáveis ou sem futuro
viveremos
aí mesmo, agora, onde estaremos
imaginando radicalmente outro mundo
neste mundo.
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Ana Kiffer é escritora, pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC -Rio. É colunista da Revista Pessoa na qual vem escrevendo séries de ensaios e de ficções. Em 2018/2019 foi professora visitante sênior pela Capes na Universidade Paris 7, França. Especialista na obra de Antonin Artaud, cujas cartas organizou na publicação “Antonin Artaud, a perda de si” (2018). É autora dos livros de ensaios “Do desejo e devir: o escrever e as mulheres” (2019) e “Antonin Artaud” (2016); e de poemas “Tiráspola e desaparecimentos”(2017) e “Todo mar” (2019). Publicou na Bazar do Tempo, em 2019, com Gabriel Giorgi, o livro “Ódios políticos e política do ódio: lutas, gestos e escritas do presente”.
Texto feito para o Dossiê Respiração, edição especial de Pensar o Tempo, produzido pela Bazar do Tempo. Maio de 2020.